O ser humano criado por Deus como um ser tricótomo à luz das Escrituras Sagradas

O ser humano criado por Deus como um ser tricótomo à luz das Escrituras Sagradas


A dicotomia e a tricotomia têm alguns pontos em comum, com a tricotomia humana realçando aspectos distintos da substância imaterial do ser humano evidenciados na Bíblia

Atemática em apreço não pode ser analisada objetivamente sem atentar para os seus aspectos históricos e teológicos, em especial no escopo bíblico, visto que é assimétrica, já que, de um lado, há os que são da linha dicotômica e de outro, os da linha tricotômica, com cada uma apresentando bases assentes na intenção de ratificar seus pontos de vista. Destarte, há que se realçar logo de momento que as Sagradas Escrituras, em seu bojo, não trazem qualquer definição com intenção imperativa de defender a dicotomia ou a tricotomia; todavia, como sempre, esse embate se dá no campo teológico.

Nós, que somos pentecostais, sempre fomos ensinados pelos nossos bons e sinceros teólogos quanto ao posicionamento tricotômico. Exemplo clássico vem da obra Teologia Sistemática, de Eurico Bergstén (2006, p. 129), na qual salienta: “Assim como o Tabernáculo está dividido em três partes, também o homem o é [...]”. Os que são da linha dicotômica, isto é, bipartida, advogam o seguinte: “É costume, especialmente nos círculos cristãos, entender que o homem consiste de duas partes distintas, e de duas somente, a saber, corpo e alma" (BERKHOF, 2007, p.177).

A começar o assunto pelo aspecto histórico, os que buscam depreciar os seguidores da visão tripartida ou tricotômica asseveram que tal linha de pensamento originou-se da filosofia grega, afirmado a relação mútua existente entre o corpo e o espírito humano, envolvendo o aspecto analógico da relação entre Deus e o mundo material. Passou-se então a conjecturar que era preciso, para se ter comunhão uns com os outros, uma terceira via, isto é, uma substância intermediária, no caso, a alma. Quando essa alma passasse a entrar em contato com a mente ou o pneuma, buscando adaptar-se, ela seria imortal; mas, quando buscava relacionar-se com o corpo, seria carnal e mortal.

É a partir desse entendimento, segundo os dicotomistas, que surge a tricotomia, que passa a dizer que o corpo é a parte material; a alma, o princípio da vida animal; e o espírito seria a parte racional, imortal, que pode se relacionar com Deus. É considerável que muitos pais da Igreja Grega, de Alexandria, como Clemente de Alexandria, Irineu, Orígenes, Gregório de Nissa, ainda no primeiro século da Igreja Cristã, eram a favor da tricotomia. Por outro lado, não faltaram teólogos que aderissem também à defesa da dicotomia, como Apolinário, Atanásio e Teodoreto. Na Igreja Latina, boa parte defendia a dupla divisão da natureza humana.

No período da Idade Média, a crença na dicotomia era co mum e, quando chega a Reforma Protestante, quase não houve mudança, sendo bem poucos os da linha tricotômica, pois desde Apolinário tal ensino começou a definhar. No século 19, houve um reavivamento da tricotomia em outros moldes por meio de teólogos ingleses e alemães: Roos, Olshausen, Beck, Delitzsch, Auberlen, Oehler, White e Heard; todavia, os tais não tiveram no início muito apoio no campo teológico. Hoje, porém, como bem pontua Timothy Munyon, o tricotomismo é bastante popular nos círculos conservadores.

A exposição das duas linhas de pensamento: dicotomia e tricotomia

Os dicotomistas asseguram que a sua exposição em defender o posicionamento bipartido, tendo apenas dois aspectos, o material e o imaterial, é puramente bíblico, pois firma-se em Gênesis 2.7, dando início, assim, a uma criação com dois estágios, mas apenas gerando uma única pessoa, unitária. Na parte material, estariam presentes diversos elementos: artérias, cérebro, músculo, cabelo etc. Já a parte imaterial era composta pelos seguintes elementos: alma, espírito, emoção, vontade, consciência etc.

Na visão dicotômica, as palavras alma e espírito são usadas de modo intercambiáveis, inclusive com a colocação paralela de “espírito e alma” (Lucas 1.46.47; Jó 27.3). Alma e espírito seriam, por vezes, termos usados como sinônimos. Em Mateus 6.25, Jesus chama a vida de psuchê; no capítulo 10.28 de Mateus, Ele diz: “Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma”.

Em 1 Coríntios 5.3, Paulo fala em estar ausente no corpo (soma), mas presente no espírito (pneuma). Tanto o corpo como o espírito expressam a totalidade da pessoa. Importante levar em consideração que tanto perder o pneuma quando a psuchê, em certos momentos, fala de morrer (Mateus 27.50; Lucas 9.24; João 19.30).

Os dicotomistas veem a natureza humana como uma unidade, jamais como dualidade, tendo dois elementos diferentes, como segue a interpretação grega, que é totalmente alheia à Palavra de Deus. Há que se dizer que, para os dicotomistas, a questão da natureza humana é bem complexa, porém cada ato do homem é considerado como um ato do homem todo; não é simplesmente a alma, mas, sim, o homem, corpo e alma que são redimidos em Cristo Jesus, isso porque essa unidade se concretiza na passagem de Gênesis 2.7.

Para os dicotomistas, no momento em que forma o homem, Deus faz isso não de modo mecânico, como tendo primeiro formado o corpo do homem e somente depois ter colocado nele a alma; não, tal ato se deu de imediato e simultâneo, visto que, no momento em que forma o corpo, Deus já o forma de um modo que, pelo sopro do seu Espírito Santo, se torna, de imediato, alma vivente –hÃCyax HepÆn (nepheshhayya) (Jó 33.4; 32.8).

Entende-se o ne pheshhayya como a alma ou ser vivente denotando o ser vivo, o homem na sua completude. É claro que, pela expressão, nota-se os dois elementos no homem, os quais expressam a unidade orgânica no seu todo. A distinção que se faz entre corpo e alma, como parte material e imaterial, não vem logo de imediato do Velho Testamento. Na verdade, ela é tardia, sendo que posteriormente vai surgir devido ao pensamento grego, que irá influenciar pensadores cristãos.

Para os dicotomistas, julga-se que, ao se falar sobre os dois aspectos ou antíteses – o inferior e o superior, o animal e o divino, o terreno e o celeste –, na verdade não quer dizer que sejam dois elementos, mas, sim, dois fatores que se ligam e formam o homem, o qual passou a ser alma vivente (Jó 27.3, 32;8 e 33.4; Eclesiastes 12.7). Importante ressaltar que, ao se referir à parte superior do homem, as Escrituras salientam alma, espírito, coração e mente, ao passo que, para falar do lado inferior, expressa isso pelas palavras barro, carne, pó, ossos, entranhas, rins.

O posicionamento tricotômico, por sua vez, é o de que o ser humano é constituído de três elementos: corpo, alma e espírito. O corpo seria a parte material do ser humano que faz junção com os demais seres viventes. Nesse poliedro, ele é definido em sua existência física. A alma é vista com o princípio da vida física ou animal; vale dizer que os animais têm alma, que se evidencia em suas reações e comportamentos. Note que em Gênesis 1.20 os animais são descritos como almas viventes (hÃCyax HepÆn, nepheshrayya). É compreensível e notado claramente que há uma distinção entre o homem e os animais, os quais, por sua vez, se diferem das plantas.

O espírito é definido como a parte espiritual, ou melhor, o poder que cria ou a possibilidade de o ser humano penetrar na dimensão espiritual, capacitando-o a ter comunhão com Deus. Os teólogos da linha tricotômica fazem distinção entre o espírito e a alma, sendo que o espírito é visto como a sede das qualidades espirituais do homem, ao passo que na alma estão presentes os traços da personalidade. Os tricotomistas esclarecem que a alma sobrevive à morte por ser ela energizada pelo espírito; as duas partes, alma e espírito, jamais podem ser separadas, pois estão entretecidas na própria textura da alma. São caldadas na mesma substância.

A base bíblica dos tricotomistas para sustentar seus pontos de vistas estão baseados em algumas passagens bíblicas. A primeira é 1 Tessalonicenses 5.23, seguida por 1 Coríntios 2.14 -3.4, Hebreus 4.12 e 1 Coríntios 15.44. Obviamente, os dicotomistas vão se opor a alguns desses textos, como, por exemplo, 1 Tessalonicenses 5.23, alegando que esse versículo em específico dá ênfase ao sacrifício completo. No caso de Hebreus 4.12, dizem que o objetivo do autor não é separar a alma do espírito, dando a ideia de tricotomia, mas que, na verdade, o propósito seria mostrar que a Palavra penetra até dividir alma e espírito, trazendo ao lume os aspectos mais íntimos do homem, não deixando nada oculto. Ambos contra-argumentos são claramente discutíveis. Há ainda o caso de 1 Coríntios 15.44, com os dicotomistas afirmando que Paulo tinha o objetivo de apenas fazer uma distinção entre o corpo atual, com alma, e o corpo ressurreto, isto é, espiritual.

A ambiguidade nos termos

Pela exposição acima, entre as duas linhas de pensamento, dicotômica e tricotômica, a questão é bem delicada e tudo isso se deve ao fato de serem ambíguos e coincidentes em certos momentos, de modo que é preciso ser criterioso quando se fala de corpo, alma e espírito. Na visão judaica, para o corpo se usava a palavra hebraica rAWAÐb (basar), carne, referindo-se ao corpo de seres humanos e de animais, o próprio corpo; a alma é chamada de HepÆn (nephesh), ser, vida, criatura, pessoa, apetite, mente, ser vivo, desejo, emoção, paixão; aquele que respira, a substância ou ser que respira, o ser interior do homem, ser vivo. A grande questão é que ambos, basar e nephesh, poderiam significar corpo (Levíticos 21.11; Números 5.2).

No hebraico, falando da alma, nephesh, que ocorre 755 vezes no Antigo Testamento, seu uso era feito com frequência com o sentido de vida, próprio eu, a pessoa (Josué 2.13, 1 Reis 19.3 e Jeremias 52.28). Diz-se que em tais citações o que se tem é o uso de alma no sentido amplo, passando a descrever o que realmente somos: pessoas, almas. O nephesh, entretanto, pode significar vontade (Gênesis 23.8 e Deuteronômio 21.14), fome física (Deuteronômio 12.20), desejo sexual (Jeremias 2.24), desejo moral (Isaías 26.8,9). Note-se que, na passagem bíblica de Isaías 10.18, nephesh aparece juntamente com basar, carne, de modo que se compreende que o profeta procura destacar a pessoa por inteiro.

No Novo Testamento, falando de alma, a palavra grega é quch (psuche), um substantivo feminino que fala de respiração, fôlego da vida, força vital que anima o corpo, e é reconhecida pela respiração de animais, de pessoas. Essa palavra ocorre 101 vezes no Novo Testamento e é usada para descrever a alma humana. Na verdade, esse substantivo tem variados significados. Pode ser visto como a sede da vida ou a própria vida (Marcos 8.35); pode se referir ao ego, à alma em contraste com o corpo e, no seu aspecto conceitual, aos seres humanos. Pode também se tratar de vontade, discernimento, disposição, poderes (Mateus 22.37).

Outro termo precisa ser analisado: o espírito, que, no hebraico, é Þxûr (ruach), vento, hálito, mente, espírito. Aparece 387 vezes no Antigo Testamento e seu sentido básico é o ar em movimento; em essência, porém, fala da totalidade da consciência imaterial do homem (Provérbios 16.32; Isaías 26.9). Pela análise que se faz de Daniel 7.15, o ruach está envolvido com o corpo e o texto de Gênesis 35.18 e almo 86.13 mostra que ruach e nephesh podem sair do corpo no momento da morte, passando a existir em um estado separado dele. Espírito no grego é pneuma (pneuma). Strong oferece diversos significados para esse substantivo neutro, o espírito, isto é, o princípio vital pelo qual o corpo é animado, espírito racional, o poder pelo qual o ser humano sente, pensa, decide, ama. Seu sentido primário é vento, hálito, e se refere ao espírito de um homem ou de uma mulher. É esse espírito que cria vínculo com o mundo espiritual e busca envolvê-lo nessa grandiosa dimensão.

Ao analisarmos as passagens de Mateus 27.50, Lucas 23.46 e Atos 7.59, vemos que, no momento da morte, o espírito se afasta do corpo e este deixa de representar toda a pessoa. Falando desses termos no seu aspecto ambíguo, na obra As Grandes Doutrinas da Bíblia, Raimundo Ferreira de Oliveira escreve: “Em geral, os escritores bíblicos, de uma forma especial os do Antigo Testamento, não fazem distinção precisa entre psyche, alma animal, que é a parte inferior do ser humano, e pneuma, espírito ou alma racional, parte superior do homem. Por isso é comum o uso de ambos os vocábulos como designando uma mesma coisa. Ordinariamente, os escritores sagrados referem-se ao homem como sendo um composto de corpo e alma, ou corpo e espírito, e não de corpo, alma e espírito, a não ser no Novo Testamento” (OLIVEIRA, CPAD, 1987, p.161).

O homem, um ser tricótomo

Portanto, pelo que expusemos, constatamos que o debate teológico em torno da natureza humana, interpretada por duas linhas, que são a dicotomia e a tricotomia, é um debate amplo. Ainda que possamos fazer uma definição a partir de aspectos analógicos envolvendo o Tabernáculo e a Trindade, isso não é suficiente. Como bem pontuado na Teologia Sistemática organizada por Stanley Horton (HORTON, CPAD, 1996, p. 249), as duas visões são corretas em muitos aspectos, estando o segredo no equilíbrio: “A dicotomia é provavelmente o conceito mais sustentado no decurso da maior parte da história do pensamento cristão. Seus adeptos, assim como acontece entre os tricotomistas, têm a capacidade de declarar e defender suas opiniões sem cair em erros doutrinários. Pearlman declara: 'Os dois pontos de vista são corretos, sendo devidamente compreendidos. Quando, porém, os componentes do dicotomismo perdem o equilíbrio, podem surgir erros'”.

Já vimos que os autores bíblicos usam os termos alma e espírito por vezes como sinônimos, enquanto, em outros momentos, eles são bem distintos. Além disso, em certo sentido, os termos "carne", "sangue", "corpo" e "alma" podem expressar a totalidade da pessoa humana ou do próprio eu (Mateus 16.17; Gálatas 1.16; Efésios 6.12; Hebreus 2.14). O Antigo Testamento, por sua vez, apresentava a pessoa individual no seu aspecto unificado. Isso quer dizer que não se pode falar do ser humano em parte, mas no seu todo: ele tanto faz parte do mundo material como imaterial, isto é, físico e espiritual.

Nem a dicotomia nem a tricotomia podem afirmar que o corpo físico é mau, ruim, pois foi criado por Deus, enquanto o pensamento sustentado pelos gnósticos dizia que o corpo era mau. Biblicamente, podemos notar o valor do corpo no seu aspecto escatológico, pois, quando a pessoa morre, resta apenas o corpo, chamado de cadáver; o que passou a estar com o Senhor é a parte imaterial, o espírito, o qual possui existência e consciência pessoal. No dia da ressurreição, porém, o corpo será transformado, glorificado, não podendo mais morrer (1 Tessalonicenses 4.13-17).

Alguns da linha tricotômica falam do homem como sendo corpo e alma ou corpo e espírito, mas vendo o espírito como parte distinta da alma (Números 16.22; Hebreus 12.9). Ainda que estejam relacionados em suas atividades, o termo psyche, no pensamento do apóstolo Paulo, deixa de ter tanta ênfase, com o termo pneuma passando a figurar como central (1 Coríntios 2.14; 3;1; 15.45; Efésios 1.3; 5.19; Colossenses 1.9; 3.16).

Os que defendem o pensamento tricotômico não seguem a visão do dualismo platônico, vendo o corpo como uma prisão, nem que a alma já era preexistente, existindo no mundo celestial em forma de ideia, nem tampouco a filosofia de Aristóteles; pelo contrário, a base é a Palavra.

Concluindo, as Escrituras Sagradas não definem a natureza humana em termos de dicotomia ou tricotomia, mas no seu todo (Gênesis 2.7), como um ser global, de modo que, quando da queda, o homem foi atingido por inteiro e, quando do momento do novo nascimento, o homem precisa ser transformado igualmente por inteiro (João 3.3,5; 2 Coríntios 5.17).

O entendimento do homem como um ser tricotômico – corpo, alma e espírito – é sustentado por nós, pentecostais, pela análise, à luz da Bíblia, das facetas imateriais do homem – a alma e o espírito –, com a primeira faceta apontando para a vida, isto é, nephesh, o homem alma vivente (Gênesis 2.7). A psyche – "alma", em grego – fala tanto da pessoa individual como da pessoa completa (Atos 2.41; 27.37), mas realça também o lado imaterial do homem (Mateus 10.28). O ruach, que vem do hebraico, e pneuma, que vem do grego, salientam ambos o lado imaterial do homem no seu todo, referindo-se ao homem apenas em sua constituição imaterial, que, nesse caso aqui, se distingue da alma, a qual pode se referir ao homem no seu todo, envolvendo os dois lados, físico e não físico, ou seja, material e imaterial.

por Osiel Gomes da Silva

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