Houve falar em línguas no Antigo Testamento?

Houve falar em línguas no Antigo Testamento?


Há alguma relação entre a profecia e o falar em línguas no Novo Testamento com o texto de Números 11.24-29?

No Novo Testamento, percebemos uma clara distinção entre o dom de falar em línguas e o de profecia (1 Coríntios 14.3-4). O primeiro manifesta-se em um idioma desconhecido pelo falante, enquanto o segundo ocorre na língua nativa daquele que profetiza. No entanto, no Antigo Testamento, percebemos uma confluência mais ambígua. Em Números 11.24-29, encontramos o “Pentecostes do Antigo Testamento”. A passagem descreve um momento em que 70 anciãos de Israel são cheios do Espírito Santo. A parte b do versículo 25 diz: “...e, tirando do Espírito que estava sobre ele [Moisés], o pôs sobre aqueles setenta anciãos; e aconteceu que, quando o Espírito repousou sobre eles [os anciãos], profetizaram” (ARC). O termo hebraico central usado aqui é naba’, tradicionalmente traduzido como “profetizar”. Em muitos contextos bíblicos, especialmente nos livros proféticos, naba’ claramente denota a proclamação ou anúncio de mensagens divinas em linguagem corrente. No entanto, o uso de naba’ em Números 11, junto com outros textos semelhantes (1 Samuel 10 e 19), sugere uma dimensão mais extática e carismática da profecia.

Sobre esse episódio, John Goldingay escreve: “O sinal dessa transferência é que eles ‘profetizaram’, o que significa algo como falar em línguas, um sinal para os líderes e para a comunidade de que o Espírito de Deus veio, de fato, sobre eles e que, assim, estão aptos a compartilhar a responsabilidade com Moisés”(1). John Walton declara: “O contexto e a terminologia hebraica sugerem que os anciãos estavam tendo experiências extáticas”(2). Gordon J. Wenham afirma: “Como aconteceu com Saul, a profecia descrita aqui foi provavelmente uma enunciação ininteligível feita durante um êxtase, fenômeno que o Novo Testamento chama de falar em línguas”(3). Todos os citados não são pentecostais, mas reconhecem o caráter carismático do texto.

Quando os hebraístas falam em “êxtase”, não se referem a um estado alterado de consciência, nem a episódios de descontrole ou confusão mental, comuns em transes. O êxtase, diferente do transe, não afeta a lucidez, a memória ou o livre-arbítrio da pessoa. Como está escrito, “os espíritos dos profetas estão sujeitos aos próprios profetas” (1 Coríntios 14.32 – NAA).

A Bíblia ainda diz: “Profetizaram; mas, depois, nunca mais” (v. 25c). A profecia dos 70 anciãos aconteceu como um fenômeno pontual, indicando que sua experiência foi distinta da típica função profética. Walter Kaiser observa: “Não nos é dito qual foi o conteúdo das profecias, mas foi certamente um sinal e indicador do fato de que o Espírito Santo estava equipando-os para o trabalho que eles precisariam fazer para tirar um pouco da pressão de Moisés”(4). Assim como em Atos 2.4, essa manifestação serviu de sinal visível do enchimento do Espírito(5).

Notas

(1) GOLDINGAY, John. Pentateuco para todos: Números e Deuteronômio. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021. p. 53.

(2) KEENER, Craig e WALTON, John. NIV Cultural Backgrounds Study Bible. Nashville: Zondervan, 2016. p. 251.

(3) WENHAM, Gordon J. Números: Introdução e Comentário. São Paulo: Edições Vida Nova, 1985. p. 116. Na mesma linha, exegetas mais antigos também podem ser citados como, por exemplo: GRAY, George Buchanan. A Critical and Exegetical commentary on Numbers. New York: C. Scribner’s Sons, 1903. p. 113.

(4) KAISER JR, Walter C. “The Pentateuch”, em: BURKE, Trevor J. e WARRINGTON, Keith (ed.). A Biblical Theology of the Holy Spirit. Londres: SPCK, 2014. p. 8.

(5) RIGGS, Ralph M. The Spirit Himself. Springfield: Gospel Publishing House, 1977. p. 74.

por Gutierres Fernandes Siqueira

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