Há diferença entre o dom de profecia e a exposição de um sermão?

Há diferença entre o dom de profecia e a exposição de um sermão?


A primeira Carta de Paulo aos Coríntios pode ser definida como um tratado sobre a ação sobrenatural do Espírito Santo na vida da comunidade cristã. Através dessa missiva, o apóstolo Paulo procurou disciplinar o uso dos carismas do Espírito naquela comunidade helênica do primeiro século. Entre os diversos dons listados entre os capítulos 12 a 14, um deles ganha proeminência: trata-se do dom de profecia. Muitas dúvidas são levantadas e esclarecidas quanto a esse carisma naquela carta paulina. Contudo, um problema percorreu os séculos e ainda hoje é motivo de debate: afinal, o dom de profecia é equivalente à exposição de um sermão previamente preparado? Neste artigo, buscar-se-á apresentar uma proposta elucidativa para esta dúvida a partir de uma análise linguística e contextual de 1 Coríntios 12-14.

A relevância do dom de profecia nas cartas paulinas

Inicialmente é relevante destacar que o apóstolo dos gentios elencou diretamente o charisma da profecia em quatro de suas treze cartas. Há referências àquele charisma em diversos textos, tais como Romanos 12.7; 1 Coríntios 12.10, 29; 14.1ss e Efésios 4.11; há ainda referências indiretas às manifestações proféticas na igreja em Tessalônica (1 Tessalonicenses 5.19-22) e na carta pastoral endereçada a Timóteo (1 Timóteo 1.18). Deste modo, constata-se que nas comunidades paulinas havia uma recorrente valorização do charisma profético (BONNEAU, 2003, p. 72).

O substantivo grego utilizado por Paulo para referir-se ao dom de profecia em 1 Coríntios 12-14 é prophēteia. De acordo com Louw e Nida (2013, p. 393), o uso daquele substantivo indicava que entre os coríntios havia aqueles que tinham “a capacidade de enunciar mensagens inspiradas”. Deste modo, prophēteia é um termo que faz referência à capacidade de produzir mensagens inspiradas pelo Espírito Santo (LOUW; NIDA, 2013, p. 393). Aquela era uma palavra usada por Paulo para indicar “uma pessoa que falava ao povo de Deus sob inspiração do Espírito Santo” (FEE, 2019, p. 752), não se tratando de um discurso previamente construído e entregue à comunidade (SCHEREINER, 2019, p. 91).

O distanciamento entre o dom de profecia e o sermão

A definição léxica de profecia exposta na secção anterior pressupõe uma distinção entre profecia e a exposição de um sermão previamente preparado (GRUDEM, 2017, p. 66). Há autores que restringem este charisma ao ato de ensinar as Escrituras através de um sermão previamente construído (KISTEMAKER, 2003, p. 665). Contudo, ao observar as proposições paulinas, especialmente em 1 Coríntios 14.29-31, compreende-se que Paulo trata de algo distinto de uma mensagem antecipadamente preparada (SCHEREINER, 2019, p. 91).

O distanciamento da profecia em relação a um sermão previamente formado pode ser estabelecido a partir da verificação do seguinte roteiro apresentado por Paulo (1 Coríntios 14.29-31): a) durante o culto poderia ser dada a oportunidade para diversas pessoas profetizarem, uma por vez (1 Coríntios 14.29); b) a profecia era originada a partir de uma revelação divina, que poderia ser manifesta instantaneamente pelo Espírito (1 Coríntios 14.30); c) a todos que o Espírito Santo concedesse uma revelação profética, deveria ser dada a oportunidade de falar a mensagem que receberam do Senhor, existindo apenas uma ressalva: deveria ser feito de modo organizado (1 Coríntios 14.31).

O fato de ser dada oportunidade para diversas pessoas exporem mensagens proféticas mostra que este não era um ofício exclusivo de um pregador, mas era uma atividade funcional concedida a quem recebia este charisma (GRUDEM, 2017, p. 116). O segundo aspecto a ser ponderado é o fato de que a profecia chegaria ao profeta através de uma revelação espontânea vinda por intermédio do Espírito Santo (GRUDEM, 2017, p. 67; PALMA, 2009, p. 227). Esta atividade não se originava com base no estudo prévio do indivíduo e manifestava-se pelo agir sobrenatural do Espírito Santo (FEE, 2015, p. 210). E, por fim, naquela comunidade, potencialmente, todos estavam aptos a expressar uma mensagem recebida de Deus, atividade que seria impraticável caso tratasse da exposição de um sermão.

Assim, a diferença entre a profecia e a exposição de um sermão (pregação) pode ser definida por Bennett e Bennett da seguinte forma: “A profecia não é uma pregação inspirada. [...] Na pregação, o intelecto, o treinamento, a habilidade, o contexto do pregador e a educação estão envolvidos e inspirados pelo Espírito Santo. O sermão pode ser escrito antes do tempo ou entregue de improviso, mas vem do intelecto inspirado. Profecia, por outro lado, significa que a pessoa está trazendo as palavras que o Senhor dá diretamente” (BENNETT; BENNETT, 1971, pp. 108-109).

Se a profecia não era um sermão previamente elaborado, o que seria então? Paulo não descreveu o conteúdo da profecia que se manifestava entre os coríntios. Contudo, resumiu o discurso profético como um dom concedido pelo Espírito Santo (STORMS, 2016, p. 117-118), e como tal, tratava-se de uma capacitação extraordinária com a finalidade de trazer à congregação cristã um vaticínio profético que fosse capaz de edificar, consolar e exortar aos presentes (1 Coríntios 14.3). Assim, pode-se afirmar que a profecia entre os coríntios era um charisma concedido pelo Espírito Santo, e que se manifestava espontaneamente com a finalidade de trazer edificação para o Corpo de Cristo, a Igreja.

Considerações finais

Neste artigo, observou-se a importância que o dom de profecia assume no discurso teológico paulino, especialmente ao tratar sobre dons espirituais. Diante disso, notou-se que Paulo elevou a profecia a um papel fundamental junto às comunidades cristãs do século I. Contudo, foi preciso uma extensa orientação a fim de que a profecia fosse corretamente praticada nas comunidades neo-testamentárias.

Não obstante, esclareceu-se neste texto que a profecia disciplinada por Paulo em sua primeira missiva aos Coríntios não se tratava de um sermão previamente preparado e exposto junto à assembleia reunida, ainda que a profecia possa se manifestar nestas condições. A partir da análise léxica e textual sustentou-se que a profecia a qual Paulo se refere em 1 Coríntios 12-14 tratava-se de um ato espontâneo, fruto da capacitação carismática que ocorria durante a reunião pública entre os cristãos coríntios.

Referências

BENNETT, Denis; BENNETT, Rita. The Holy Spirit and you: a study-guide to the Spirit-filled life. South Plainfield: Bridge Publishing, 1971.

BONNEAU, Guy. Profetismo e instituição no cristianismo primitivo. Traduzido por Betilo Brod. São Paulo: Paulinas, 2003.

FEE, Gordon D. 1 Coríntios: comentário exegético. Traduzido por Marcio Loureiro Redondo. São Paulo: Vida Nova, 2019.

GRUDEM, Wayne. O dom da profecia no Novo Testamento e hoje - 2ª ed. Traduzido por Marcia C. Elias. Natal-RN: Editora Carisma, 2017.

KISTEMAKER, Simon J. Comentário do Novo Testamento: exposição de I Coríntios. Traduzido por Valter Graciano Martins. 2ª Ed. Vol. 1. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.

LOUW, Johannes P.; NIDA, Eugene A. (ed.). Léxico grego-português do Novo Testamento baseados em domínios semânticos. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013.

SCHREINER, Thomas R. Dons espirituais: uma perspectiva cessacionistas. Traduzido por: Marcelo Siqueira Gonçalves. São Paulo: Vida Nova, 2019.

STORMS, Sam. Dons espirituais: uma introdução bíblica, teológica e pastoral. Traduzido por Claudio Chagas. São Paulo: Vida Nova, 2016.

por Jefferson J. R. Rodrigues

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