O Movimento Pentecostal não apenas preserva os pilares fundamentais da Reforma, mas também aprofunda a experiência da fé cristã por meio de uma renovada ênfase na ação do Espírito Santo na vida do crente e da igreja
Reforma Protestante do século 16 não apenas redefiniu o curso da teologia cristã, mas também estabeleceu funda mentos que continuam a influenciar movimentos evangélicos contemporâneos. Dentre estes, o Pentecostalismo Clássico, surgido no início do século 20, frequentemente é visto como uma expressão marginal ou distante da Reforma. No entanto, ao examinar cuidadosamente suas dou trinas centrais, práticas e ênfases espirituais, torna-se evidente que o Pentecostalismo Clássico não é um rompimento com a Reforma, mas, sim, uma continuação e aprofundamento dos seus princípios. Este texto, mesmo que de forma introdutória, busca demonstrar que o Pentecostalismo Clássico é um legítimo herdeiro da Reforma Protestante, No entanto, cabe uma rápida diferenciação entre Teologia Reformada e Teologia da Reforma. Um leitor desatento pode se confundir.
A Teologia da Reforma refere-se ao conjunto de
doutrinas e ensinamentos desenvolvidos durante a Reforma Protestante do século
16, movimento que teve como objetivo reformar a Igreja Católica Romana. Ela se
desenvolveu em diferentes partes da Europa e incluiu diversas correntes e
líderes. Seu foco principal era o retorno à Bíblia como única autoridade de fé
e prática, a salvação pela graça mediante a fé e a centralidade de Cristo. (1)
Os principais teólogos da Teologia da Reforma foram:
Martinho Lutero (1483-1546):
monge agostiniano alemão, iniciador da Reforma. Defendia a justificação pela fé
e a autoridade suprema das Escrituras (Sola Fide, Sola Scriptura).
Ulrico Zuínglio (1484-1531): reformador
suíço que deu ênfase à soberania de Deus e à ceia do Senhor como memorial.
João Calvino (1509-1564): teólogo
francês que sistematizou boa parte da teologia reformada posterior,
especialmente em sua obra As Institutas da Religião Cristã.
Thomas Cranmer (1489-1556): figura
chave da Reforma inglesa eautor do Livro de Oração Comum.
Martim Bucer (1491-1551) e Philip
Melanchthon (1497-1560): colaboradores importantes na consolidação doutrinária
da Reforma.
Já a Teologia Reformada é um desdobramento mais específico
dentro da tradição da Reforma. Embora compartilhe os mesmos fundamentos da
Teologia da Reforma, ela é especialmente identificada com o pensamento
teológico de João Calvino e seus sucessores, e se desenvolveu como um sistema
teológico próprio. Ela floresceu nos séculos seguintes à Reforma, especialmente
entre os reformados continentais, os puritanos ingleses e outras tradições
presbiterianas e congregacionais.
Os principais teólogos da Teologia Reformada foram:
João Calvino (1509-1564): pai da
teologia reformada, com ênfase na soberania de Deus e na predestinação.
Teodoro Beza (1519-1605):
sucessor de Calvino em Genebra, desenvolveu a doutrina da dupla predestinação.
Herman Bavinck (1854-1921):
teólogo sistemático da tradição reformada holandesa.
Abraham Kuyper (1837-1920):
teólogo e político, articulou uma cosmovisão reformada ampla.
Louis Berkhof (1873-1957): autor
de uma das sistemáticas reformadas mais usadas.
Para tornar a ideia desse texto mais clara, destacamos que o
Pentecostalismo Clássico Evangélico está mais próximo da Teologia da Reforma do
que da Teologia Reformada, embora compartilhe pontos com ambas, mas segue um
caminho teológico distinto daquele sistematizado pelo Calvinismo Clássico.
Argumenta-se que o Movimento Pentecostal não apenas preserva os pilares
fundamentais da Reforma – como a centralidade das Escrituras, a salvação pela
graça mediante a fé e a primazia de Cristo –, mas também aprofunda a experiência
da fé cristã por meio de uma renovada ênfase na ação do Espírito Santo na vida
do crente e da igreja.
Ao mesmo tempo, o Pentecostalismo mantém uma identidade
própria, com forte ênfase no Espírito Santo, nos dons carismáticos e na
experiência pessoal com Deus, o que marca uma renovação espiritual dentro do
espectro evangélico, sem abandonar as bases protestantes da Reforma. (2)
Neste texto, propõem-se uma análise que percorre quatro
eixos fundamentais: o compromisso com a Escritura, a Cristologia e a
Soteriologia, a fé como experiência pessoal e a renovação Pneumatológica,
concluindo-se em uma avaliação do pentecostalismo como uma extensão coerente do
legado da Reforma Protestante.
A centralidade das Escrituras como legado da Reforma
O princípio do Sola Scriptura, um dos pilares da
Reforma, resgatou a autoridade final das Escrituras sobre a tradição
eclesiástica e a hierarquia religiosa. Para os reformadores, como Lutero e
Calvino, a Bíblia deveria ser acessível ao povo, lida em sua língua e
compreendida como a única regra infalível de fé e prática. Essa redescoberta da
autoridade bíblica moldou toda a teologia protestante subsequente.
O Pentecostalismo Clássico adere radicalmente a esse
princípio. À leitura devocional da Bíblia, a pregação e a doutrina baseada no
texto sagrado ocupam lugar central na vida das igrejas pentecostais. Ainda que o
movimento enfatize fortemente a experiência espiritual, essa experiência está
sempre submetida ao crivo das Escrituras. As manifestações espirituais, como o
falar em línguas, as profecias e as curas, são avaliadas segundo o testemunho
bíblico.
Autores como Donald Gee e Stanley Horton, representando a
teologia pentecostal clássica, reiteram que toda experiência espiritual deve
ser julgada à luz da Palavra de Deus. Isso impede que o pentecostalismo derive
para o misticismo subjetivista, mantendo-o dentro dos contornos do Cristianismo
bíblico. Assim como os reformadores, os pentecostais afirmam que a Escritura
tem primazia absoluta sobre qualquer tradição, revelação ou experiência
pessoal. Craig Keener, por exemplo, teólogo pentecostal contemporâneo, busca
equilibrar a experiência e a autoridade bíblica.
Como os autores bíblicos que interpretavam Escrituras
anteriores, precisamos interpretar a nossa vida e experiência à luz das
Escrituras; assim, precisamos aplicar as Escrituras com habilidade, bem como
fazer a exegese delas. Mas podemos aplicá-las do modo mais fiel possível – de
um modo coerente com os próprios textos na forma como Deus os deu a nós –
quando nossas analogias se baseiam nos textos em seus contextos. Quando
reconhecemos como Deus atuou no passado, podemos viver com o mesmo tipo de
expectativas hoje. Isto é, a nossa experiência também é inscrita na estrutura
da história bíblica. Esperar que Deus atue hoje como atuou na Bíblia pode estar
fortemente relacionado ao que a Bíblia chama de “fé”. (3)
A presença do Espírito, tão cara aos pentecostais, não atua
fora da Palavra, mas por meio dela. A pregação é compreendida não apenas como
exposição de ideias, mas como evento espiritual, no qual Deus fala por meio da
Escritura ao coração do crente. Essa perspectiva une reverência à Palavra com
abertura ao mover do Espírito, numa síntese profundamente atrelada à Teologia
da Reforma.
Portanto, o Pentecostalismo reafirma e reaviva o Sola
Scriptura, oferecendo uma espiritualidade que une ortodoxia doutrinária com
vitalidade prática.
Cristo, a fé e a graça
A Reforma Protestante proclamou com ousadia que a salvação é
sola gratia, sola fide e solus Christus – somente pela
graça, por meio da fé, em Cristo. Essa estrutura teológica rejeitou qualquer
contribuição humana na obtenção da salvação, combatendo a teologia meritória do
catolicismo medieval. A centralidade de Cristo como único mediador entre Deus e
os homens tornou-se um dos alicerces do protestantismo.
O Pentecostalismo Clássico mantém-se firmemente dentro dessa
estrutura soteriológica. A acusação de pelagianismo e semipelagianismo é pura
caricatura (e em alguns casos, maldade). A experiência do novo nascimento, tão
enfatizada nas igrejas pentecostais, nada mais é do que a aplicação prática da
justificação pela fé. O arrependimento, a confissão de pecados e a fé em Jesus
Cristo como Salvador pessoal são os passos iniciais da jornada pentecostal.
A doutrina do batismo no Espírito, frequentemente mal
compreendida, não é apresentada como meio de salvação, mas como uma capacitação
adicional para a vida e a missão cristã. À salvação continua sendo obra
exclusiva da graça de Deus. Essa distinção, fundamental para evitar heresias
sacramentalistas, está bem delineada nas obras de teólogos como Stanlay Horton
e William Menzies (4) e Antonio Gilberto. (5)
Além disso, o pentecostalismo enfatiza fortemente a
santificação como fruto da graça operante no crente. Essa santificação é vista
como processo contínuo, operado pelo Espírito, que transforma o salvo à imagem
de Cristo. Embora haja distinções entre as tradições wesleyana e reformada
sobre a natureza da santificação, ambas concordam que ela é resultado da obra
graciosa de Deus.
Portanto, a fé pentecostal não contradiz a Reforma, mas a
confirma e a encarna no cotidiano da vida cristã. Cristo continua sendo o
centro, e a graça, o meio pelo qual o homem é salvo, santificado e capacitado
para servir.
A experiência pessoal da fé: uma releitura do sacerdócio
universal
Um dos grandes legados da Reforma foi o princípio do sacerdócio
universal de todos os crentes. Isso significava que todo cristão, regenerado e
justificado, tem acesso direto a Deus, sem necessidade de mediadores humanos. À
oração, a leitura bíblica e a comunhão com Deus foram resgatadas como
experiências pessoais e não restritas ao clero.
O Pentecostalismo, ao destacar a experiência com o Espírito
Santo, retoma e intensifica essa visão da Reforma. À busca pelo batismo no
Espírito, a prática da oração individual e comunitária, os testemunhos pessoais
e a ação dos dons são todos sinais de que a fé cristã, para os pentecostais, é
profundamente vivencial.
Com o auxílio das técnicas exegéticas ou com a simples
leitura ocorre a iluminação e a revelação do texto bíblico através da
inteligência e do labor humano, intensificada pela presença do Espírito,
conforme afirmam “os autores clássicos pentecostais de teologia sistemática. “O
Espírito Santo, que inspirou a escrita da Bíblia, também orienta a mente e o
coração do cristão hoje (João 16.13). A obra do Espírito Santo, ao ajudar o
leitor a entender a Bíblia, não deve ser temida como se fosse levá-lo a
interpretações estranhas e desconhecidas”. (6)
Essa dimensão experiencial não substitui a teologia, mas a torna
encarnada. O Espírito Santo, segundo o pentecostalismo, é o que vivifica as
verdades doutrinárias, tornando a fé mais do que uma adesão intelectual. Pois o
Espírito é quem pode aplicar a Palavra eficazmente ao coração do homem.
Além disso, a democratização dos dons e ministérios,
característica do Movimento Pentecostal, é uma aplicação concreta do sacerdócio
universal. Homens e mulheres, jovens e idosos, são encorajados a servir,
ensinar, evangelizar e profetizar, conforme a direção do Espírito. Isso rompe
com o clericalismo eclesiástico e reforça a “redescoberta” do texto do apóstolo
Pedro por Lutero, que enfatizou a ideia de um sacerdócio de todos os santos.
Dessa forma, o pentecostalismo não se afasta da Reforma, mas
aprofunda sua implicação prática: uma fé viva, ativa e pessoal, mediada não por
estruturas, mas pela presença direta do Espírito em cada crente.
A renovação Pneumatológica em continuidade com a Reforma
Embora a Reforma tenha recuperado a Cristologia e a
Soteriologia bíblicas, sua Pneumatologia permaneceu, em grande parte, subdesenvolvida.
O pentecostalismo surge como resposta a essa lacuna, resgatando a atuação do Espírito
Santo na igreja contemporânea como continuidade da obra redentora de Cristo.
O batismo no Espírito, os dons espirituais, as curas e a
manifestação da presença divina não são vistos como excentricidades ou acréscimos
à fé cristã, mas como partes integrantes da vida cristã plena. A teologia
pentecostal clássica entende o Espírito como Aquele que conduz a Igreja em missão,
santificação e poder.
A Reforma buscou trazer de volta essências perdidas na
história e que eram vividas no primeiro século, e a Igreja do primeiro século
era uma igreja carismática. Lucas, autor do livro de Atos, incluiu fielmente,
entre as realidades que retratavam a vida diária da iniciante Igreja, a
abundância de fenômenos sobrenaturais. Línguas, profecias, curas e milagres – e
todos os outros carismas – eram comuns e até mesmo tidos como norma (Atos 1.8;
10.19; 13.27. (7)
A experiência espiritual do pentecostalismo não contradiz os
fundamentos da Reforma, mas os expande. A fé é pela graça; a Escritura é a
base; e o Espírito é quem aplica ambas ao coração do crente. À atuação contínua
do Espírito é compreendida como uma extensão da economia da salvação iniciada
em Cristo e prometida no Novo Testamento.
Além disso, na Pneumatologia pentecostal, os dons são sinais
do Reino vindouro; são “primícias do Espírito” (Romanos 8.23), que apontam para
a plenitude futura. A Igreja vive entre o “já” da obra consumada de Cristo e o
“ainda não” da sua plena manifestação.
Portanto, longe de ser uma inovação estranha, a teologia Pneumatológica
do pentecostalismo deve ser vista como um desdobramento fiel do princípio da
Reforma de que a Igreja está sempre sendo reformada – Ecclesia reformata
semper reformanda – pela ação viva e constante do Espírito de Deus.
Conclusão
Diante dos quatro eixos analisados — a fidelidade às
Escrituras, a centralidade de Cristo e da graça, a experiência pessoal da fé e a
renovação Pneumatológica –, é legítimo reconhecer o pentecostalismo clássico
como herdeiro teológico e espiritual da Reforma Protestante. Ele não rompe com “os
fundamentos lançados por Lutero, Calvino e Zwinglio, mas os aprofunda e os
aplica com nova vitalidade à vida da igreja contemporânea.
Se a Reforma devolveu a Bíblia ao povo, o pentecostalismo
devolveu ao povo a expectativa de uma vida cheia do Espírito. O culto vibrante,
a pregação ungida, à oração perseverante e a consciência missionária são marcas
de um Cristianismo que, longe de negar a razão e a doutrina, busca ser
radicalmente bíblico, experiencial e vivificante.
Portanto, o pentecostalismo clássico não é um desvio do
protestantismo histórico, mas sua legítima continuação. Ele representa uma nova
estação da mesma Reforma, sempre sendo reformada sob o sopro poderoso do
Espírito Santo.
Notas
(1) Maiores informações em: MCGRATII, Alister. Teologia
Sistemática, Histórica e Filosófica. São Paulo: Shedd Publicações, 2005.
(2) Maiores informações: ALVES, Eduardo Leandro. A
Sociedade Brasileira e o Pentecostalismo Clássico. Rio de Janeiro: CPAD,
2021.
(3) KEENER, Craig. A Hermenêutica do Espírito: Lendo as
Escrituras à luz do Pentecostes, São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 335.
(4) KEENER, Craig. A Hermenêutica do Espírito: Lendo as
Escrituras à luz do Pentecostes, São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 335.
(6) POMMERENING, Claiton Ivan. Teologia da Experiência.
Rio de Janeiro: CPAD, 2024, p. 104.
(7) HYATT, Eddie L. 2000 Anos de Cristianismo Carismático:
um olhar do século 21 na história da igreja a partir de uma perspectiva
carismático-pentecostal. Natal: Editora Carisma, 2018, p. 20
Referências Bíblicas
ALVES, Eduardo Leandro. A Sociedade Brasileira e o
Pentecostalismo Clássico. Rio de Janeiro: CPAD, 2021.
GILBERTO, Antônio. Fundamentos da vida cristã. Rio de
Janeiro: CPAD, 2021.
HORTON, Stanley M; MENZIES, Willian W. Doutrinas
Bíblicas: os fundamentos da fé pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 2021.
HYATT, Eddie L. 2000 Anos de Cristianismo Carismático:
um olhar do século 21 na história da igreja a partir de uma perspectiva
carismático-pentecostal. Natal: Editora Carisma, 2018.
KEENER, Craig. A hermenêutica do Espírito: lendo as
Escrituras à luz do pentecostes. São Paulo: Vida Nova, 2018.
MCGRATH, Alister. Teologia Sistemática, Histórica e
Filosófica. São Paulo: Shedd Publicações, 2005.
POMMERENING, Claiton Ivan, Teologia da Experiência.
Rio de Janeiro: CPAD, 2024.
por Eduardo Leandro Alves
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