“A Bíblia afirma que Deus é um ser amoroso e que nós, seus filhos, devemos amar até mesmo os nossos inimigos. Então, como explicar a existência de Salmos imprecatórios?”
Entende-se por Salmos imprecatórios aqueles em que alguém busca de Deus que Ele se vingue dos seus adversários, vindo a derramar sobre os profanos a Sua ira. Na literatura israelita canônica, a imprecação não se constitui uma peculiaridade dos Salmos, visto que podemos encontrá-la explicitamente presente no texto de Gênesis (12.3), assim como, de modo significativo, nos textos ligados à segunda lei (Deuteronômio 27.15-26; 32.21; Josué 6.26), e também no profetismo, em especial nos textos de Jeremias – seja onde Deus expressa desejo de vingança (Jeremias 5.19; 11) ou onde o profeta expressa a imprecação (Jeremias 15.15; 17.18; 18.21-23). Todavia, é nos Salmos onde encontramos a maior coleção de orações imprecatórias (Salmos 35, 55, 58, 59, 83, 109, 137 etc.).
Os salmos imprecatórios, sejam aqueles sobre os inimigos nacionais
(Salmos 79.6,12; 83.10-19; 129.5-8; 137) ou os sobre adversários pessoais (Salmos 5; 6.10; 7.9-16; 10; 28.4; 35.4-6; 40.15; 55; 58.7-11; 69.23-29; 141.10; 143.12), constituem-se um dos mais complexos gêneros literários presentes no saltério.
Dada a complexidade dessa classe de salmos, algumas considerações são
imprescindíveis para compreendê-los, as quais são:
1) A imprecação, não só entre os judeus, mas entre os povos
do médio-oriente antigo, tratava-se de mecanismo legítimo de defesa, de modo
que não era considerada moralidade inferior. De maneira que, quando um piedoso homem,
do fértil crescente, exercia uma ação imprecatória, ele o fazia baseando-se no
poder e justiça divinos diante da ignomínia explícita (Salmos 7.9,12). O
problema é que a intensidade da linguagem semítica muitas vezes transcende em muito
a linguagem ocidental moderna, por isso algumas expressões hebraístas chegam a chocar
o cristão ocidental.
2) É imprescindível a verificação do “sitzimleben”, ou seja,
do contexto situacional de produção do Salmo. O “sitzimleben” nos conduz ao
contato com o eu dos Salmos. Esse encontro com o orante dos salmos imprecatórios
nos faz entender que essas não eram meras expressões de ira pessoal, mas
genuínas orações, envolvidas em profunda espiritualidade, porque o que motivava
a imprecação não era a ira pecaminosa, mas uma manifestação de zelo e indignação
da parte deles em relação à ignomínia dos adversários. Diante da abominação e da
ignomínia, eles clamavam a Deus para que cumprisse a Sua justiça (Salmos
109.13).
3) O binômio bênção-maldição, um dos três elementos constitutivos
da Velha Aliança, era o fundamento dos orantes dos Salmos de imprecação. De modo
que os salmistas viviam em uma realidade de revelação parcial da bondade e justiça
de Deus. Jesus ressalta em Seus ensinos os fundamentos da boa moralidade veterotestamentária
(Êxodo 23.4; Levíticos 19.17-18; Provérbios 25.21), mas, de maneira ainda mais
relevante, traz nova luz aos valores da Lei (Levíticos 24.19; Mateus 5.43,44),
a partir da obediência a um novo mandamento (João 13.34; 15.12). Por isso, partindo
das considerações supramencionadas, apesar de as imprecações veterotestamentárias
serem fruto de zelo diante da ignomínia, zelo este que levava o salmista a
clamar para que Deus cumprisse Seu juízo, elas não
cabem mais hoje, não cabem na realidade cristã, em especial considerando-se o ensino
epistolar (Romanos 12.17; Tiago 3.10-12). Enfim, entende-se que a presença dos Salmos
imprecatórios no Cânon expressa um elo da vida religiosa do povo de Deus que não
pode ser analisado fragmentariamente, de forma isolada do processo pleno da revelação
canônica de Deus, visto que essas orações expressam uma situação histórico-teológica
específica dos salmistas.
por Jesiel Paulino
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