A narrativa de Jó nos presenteia com essa ironia desconcertante e profundamente instrutiva. No auge de sua angústia, coberto de feridas e sentado sobre cinzas (Jó 2.7,8), o patriarca se vê cercado não apenas pela dor física e a perda avassaladora (Jó 1.13-19), mas também por um tipo peculiar de “consolo” vindo de seus amigos Elifaz, Bildade e Zofar (Jó 2.11).
Eles chegam, inicialmente, com a aparente nobre intenção de
confortar. Sentam-se em silêncio por sete dias (Jó 2.13), um gesto que, por si
só, poderia ter sido um bálsamo. Contudo, quando abrem a boca, o que se segue
são longos discursos carregados de teologia rígida e retributiva. Para eles, a
equação era simples e inabalável: Deus é justo; a justiça divina implica que o
sofrimento é sempre uma consequência direta do pecado (veja, p. ex., a lógica
de Elifaz em Jó 4.7,8); logo, se Jó está sofrendo de forma tão excruciante, ele
deve ter cometido pecados ocultos, mesmo não os admita.
Movidos por um zelo fervoroso em defender a honra e a
justiça de Deus, eles se tornam, na prática, acusadores implacáveis de seu
amigo em desgraça. A defesa que fazem de Deus é também, e talvez primariamente,
uma defesa de si mesmos e de sua própria visão de mundo. Se Jó, um homem
reconhecidamente íntegro (Jó 1.1, 1.8), pode sofrer de forma tão arbitrária e
devastadora sem uma causa direta em pecado pessoal, então o universo deles,
ordenado e previsível, desmorona. A possibilidade de um sofrimento inocente em
larga escala ameaça a própria fundação de sua segurança teológica e
existencial. Sua insistência na culpa de Jó não é apenas zelo por Deus, mas um
mecanismo de defesa contra o caos aparente, uma tentativa desesperada de manter
um senso de controle e justiça num mundo que, subitamente, pareceu ter perdido
ambos. Eles precisam que Jó seja culpado para que possam continuar acreditando na
ordem que sempre conheceram.
Além disso, a forma como utilizam a tradição e o conhecimento
religioso revela outra faceta complexa. Eles não estão apenas errados em sua
conclusão; estão errados na aplicação de sua sabedoria. O conhecimento que deveria
servir como fonte de luz e consolo é transformado em arma contundente. Citam
experiências (a visão de Elifaz em Jó 4), provérbios e observações sobre a
ordem natural para construir um caso contra Jó, demonstrando como a própria
religiosidade e a erudição teológica podem ser pervertidas em ferramentas de
julgamento e opressão quando despidas de humildade e compaixão. Sua “defesa de
Deus” torna-se um exercício de poder intelectual e espiritual sobre alguém em
extrema vulnerabilidade, mascarando a incapacidade de simplesmente estar com o
sofredor em seu mistério. O silêncio inicial de sete dias, que poderia ter sido
a forma mais pura de compaixão, é quebrado por uma avalanche de palavras que
buscam explicar e categorizar, ao invés de simplesmente partilhar o peso da dor
inexplicável. Eles falham em perceber que, às vezes, a maior defesa da fé não
está em ter respostas, mas em suportar a ausência delas ao lado de quem sofre.
Outro ponto crucial, muitas vezes subestimado, é a completa ignorância,
tanto de Jó quanto de seus amigos, sobre a verdadeira origem do drama: o
diálogo celestial entre Deus e Satanás (Jó 1-2). Toda argumentação teológica
dos amigos, e mesmo a busca angustiada de Jó por um “porquê”, acontece num vácuo
de informação fundamental. Eles debatem as engrenagens da justiça divina
baseados apenas no que veem no plano terrestre, sem qualquer noção do desafio cósmico
que está em jogo. Isso expõe a fragilidade inerente a qualquer tentativa humana
de mapear completamente os propósitos divinos a partir de uma perspectiva limitada.
A “defesa” dos amigos é, portanto, baseada não apenas numa teologia restrita,
mas também numa ignorância factual colossal sobre a situação específica de Jó, tornando
seus julgamentos ainda mais presunçosos e deslocados.
Jó, por sua vez, debate, questiona, lamenta, por vezes até
com palavras que beiram a irreverência em sua honestidade brutal diante de
Deus, mas se recusa a mentir sobre si mesmo para validar a teologia simplista
de seus amigos. Ele anseia por uma audiência com o próprio Deus (Jó 13.3;
23.3-5), por entender o porquê de seu sofrimento, mantendo sua integridade fundamental
(como reconhecido inicialmente pelo próprio Deus em Jó 1.8 e 2.3). Sua luta não
é contra Deus, mas com Deus, uma recusa a aceitar um retrato diminuído ou distorcido
do divino, mesmo que isso signifique atravessar o vale da sombra da dúvida e da
raiva.
O grande escritor cristão C. S. Lewis, em um momento de profunda
dor pela morte da esposa, registrou: “Fale comigo sobre a verdade da religião,
e ouvirei com prazer. Fale comigo sobre o dever da religião, e ouvirei com
submissão. Mas não venha falar comigo sobre os consolos da religião, ou suspeitarei
que você não entende” (LEWIS, C. S. A anatomia de um luto. Rio de Janeiro:
Thomas Nelson Brasil, 2021, p. 42). Os amigos de Jó criam estar oferecendo
consolo ao apelar à teologia da retribuição. Pensavam que, ao explicar a
suposta “razão” do sofrimento (o pecado de Jó) e apontar o “caminho” para a restauração
(a confissão), estariam aliviando seu fardo. No entanto, para Jó, assim como
para Lewis em seu luto, essas palavras não eram consolo algum. Pelo contrário, tornavam-se
um fardo adicional: uma acusação, por vezes velada; uma negação de sua
integridade e uma simplificação grosseira de sua experiência excruciante e do próprio
mistério de Deus.
E então, num clímax extraordinário, Deus finalmente
intervém, falando de um redemoinho (Jó 38.1). Não para endossar a defesa zelosa
dos amigos, mas para repreendê-los severamente. A voz que emerge do redemoinho
declara que eles não falaram o que era reto a Seu respeito, como fez Seu servo
Jó (Jó 42.7,8). Que ironia divina! Aqueles que se arvoraram como advogados de
Deus, que tentaram encaixá-Lo em suas caixas teológicas para justificar o
sofrimento de Jó, são silenciados e corrigidos (Jó 42.7) pelo próprio Deus que
pretendiam defender. Deus exige que ofereçam sacrifícios pelos quais Jó deveria
orar para serem aceitos (Jó 42.8,9).
Deus valida a busca honesta e angustiada de Jó, mesmo em meio
às suas queixas, acima da piedade dogmática e acusatória dos amigos (Jó
42.7,8). A história nos deixa com a poderosa lição de que defender Deus não
significa ter todas as respostas, nem julgar apressadamente o sofrimento alheio
com base em nossas limitadas compreensões teológicas. Às vezes, a verdadeira fé
se manifesta mais na honestidade do questionamento e na perseverança em meio ao
mistério – uma fé que se agarra a Deus mesmo sem compreendê-lO – do que em
certezas presunçosas que acabam por deturpar Aquele que se busca honrar. A
reprimenda divina aos amigos de Jó ecoa como um alerta atemporal contra a
arrogância espiritual, o perigo de usar a religião para autoproteção disfarçada
de zelo, e um convite à humildade radical, à empatia genuína diante da dor
humana e ao reconhecimento reverente dos caminhos insondáveis de Deus.
por Gutierres F. Siqueira
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