Antes de nos determos no tema de nossa abordagem, compete esclarecer que a realidade social (espiritual) e a empírica (material) são correlativas. Por correlação, entende-se que os entes (seres, objetos) estão em cadeias de relações ou de dependências recíprocas: por exemplo, o ser humano depende da natureza e a natureza depende do ser humano para transformação daquela (transformação da natureza). Mas o que isso tem a ver com o nosso tema? Significa que na elaboração de um texto há vários métodos de abordagem correlacionados: por exemplo, o método exegético, que interpreta; o dogmático, que afirma uma verdade; o narrativo, que narra fatos; o existencial, que diz respeito à nossa vida etc. A nossa abordagem central será pelo método existencial, porque a revelação é revelação para nós, para a nossa transformação, para nos edificar e nos preparar para comunhão com Deus. A fé salvífica é uma ação existencial. Façamos, pois, uma reflexão sobre a mensagem do Senhor à igreja em Éfeso.
Há quem sustente que a igreja em Éfeso provavelmente tenha
sido fundada por Áquila e Priscila, deixados lá por Paulo. Éfeso era a
principal cidade da Ásia, naquele contexto histórico. A igreja em Éfeso era a
mais importante daquela região. Paulo morou na cidade quase três anos (Atos
19.1-20.1). É plausível que o evangelho tenha chegado a Éfeso entre 53 d.C. a
57 d.C., tempo da segunda viagem missionária de Paulo. Há um consenso que o
livro de Apocalipse, que traz uma carta à igreja de Éfeso, tenha sido escrito
entre 81 d.C. a 96 d.C. Portanto, trata-se de uma igreja com uma existência bem
fundamentada na prática da fé. Foi neste contexto existencial de fé que o
Senhor fez a crítica à igreja em Éfeso. Por crítica aqui, entende-se “conhecer
o que deve ser feito, mas que ainda não está sendo feito, e mostrar os obstáculos
que impede os resultados devidos”.
A primeira lição que a mensagem do Senhor à igreja em Éfeso
em Apocalipse 2 nos ensina diz respeito à primazia ontológica do Senhor sobre
toda a realidade. “Estas coisas diz aquele...” (v. 1). Por primazia ontológica
quer-se dizer que o Senhor é o primeiro na ordem do ser; ou, por outra, toda
realidade veio à existência (ex nihil – sem o uso de material
preexistente) por um ato da onipotência absoluta do Criador. Ontológico aqui
quer dizer a própria realidade primordial, o próprio ser. O Senhor, o Ser
Espiritual Absoluto, criou os demais seres espirituais e corporais. Então, aqui
se compreende ontológico como abordagem diretamente sobre o próprio ser
espiritual ou corporal em oposição ao discurso sobre o ser (coisa) em uma obra
literária teológica, filosófica, cientifica; em grego, ser se diz tò on,
donde surge o termo “ontológico”. Ontológico refere-se ao próprio ser (coisa,
objeto), já o discurso é uma interpretação do objeto, é a episteme, o
conhecimento adquirido do objeto. Neste versículom há uma afirmação
dogmática trinitária implícita. O Senhor é o Logos, isto é, a Palavra ou o
Verbo do Pai. Por Verbo entende-se a Palavra interior pelo qual o cognoscente (o
Pai) diz a Si mesmo o que é a coisa conhecida (R. JOLIVET. in: Vocabulário
de Filosofia. 1975, p. 227). O Pai cria a realidade (o universo) pelo Filho
no Espírito Santo. O Filho de Deus é a Sabedoria por meio da qual o mundo é
criado na ação do Espírito Santo. Neste sentido, entendem-se as traduções de
João 1.3 e Colossenses 1.16, que traduzem: por Ele, por meio dEele e nEle, são
a mesma coisa. É neste contexto que se deve entender a autocomunicação do
Senhor na expressão: “Estas coisas diz aquele”.
A segunda lição que a mensagem do Senhor à igreja em Éfeso nos
ensina diz respeito à autocomunicação de Deus. “Estas coisas diz...” (v. 1).
Por autocomunicação entende-se o ato de Deus se revelar por meio de Sua Palavra
e por meio de Seus atos criador ou criativos. Teologia constitui-se em
afirmações refletidas sobre essa autocomunicação que Deus faz de Si mesmo na
comunidade da fé na história do povo de Deus. A Igreja, o povo de Deus, é o
agente da práxis de Deus na terra. Por práxis (prática) entende-se uma ação
guiada por um ensino (a Palavra de Deus) para transformar a realidade humana para
a vida eterna. Percebe-se que o ser humano é uma potencialidade ou capacidade
para acolher a Palavra de Deus, independente de raça, cor, nacionalidade, grau cultural
etc. Todo ente humano é um destinatário da Palavra de Deus: “Ide, portanto,
fazei discípulo de todas as nações” (Mateus 28.18). O Deus da salvação é o Deus
que fala (Hebreus 1.1,2). A Igreja vive na e da revelação de Deus. Portanto, o Senhor
se apresenta à igreja em Éfeso como aquele que fala. Mas qual é o conteúdo da
mensagem destinada ao ser humano? O conteúdo consiste, no dizer do Concilio do
Latrão, na autocomunicação divina do Deus trino que concedeu a doutrina da
salvação ao ser humano, primeiramente por meio de Moisés, os profetas e outros
servos Seus e, finalmente, por Jesus, único Filho de Deus segundo a Deidade que
assumiu a natureza humana fazendo-se consubstancial com a humanidade e ensinou
mais abertamente o caminho da vida.
A terceira lição que aprendemos com a mensagem do Senhor à
igreja em Éfeso diz respeito ao relacionamento do Senhor com aqueles que
ministram à Igreja do Senhor. “Estas coisas diz aquele que conserva na sua mão
direita as sete estrelas” (v.1). O existir humano é um ato da bondade divina.
Deus chama à existência o ser humano. Essa primeira chamada (para existir) é
uma chamada incondicional, pois só depende do arbítrio divino; a segunda
chamada, a chamada a Cristo, precisa da adesão da liberdade humana; a terceira
chamada, a chamada por Deus de alguém ao corpo docente da Igreja, é uma chamada
da liberdade de Deus (Hebreus 5.4). Esses pastores são chamados por Cristo de
anjos (v.1): “ao anjo da Igreja em Éfeso”. Anjo significa mensageiro, enviado.
Em Hebreus 2.6 diz-se que os seres humanos foram criados em grau de inferioridade
em ralação aos anjos. Na mesma carta (1.14), os anjos são espíritos que
ministram em benefício do ser humano, portanto é contraditório um ser humano escrever
uma correspondência a um ser que assiste diretamente diante de Deus. Os
ministros, pois, são mensageiros enviados de Deus. Um legítimo pastor é
considerado como uma estrela. A estrela brilha com o brilho do sol, e o pastor
brilha com o brilho de Cristo. O pastor participa do ministério sacerdotal e profético
de Cristo. Como sacerdote, ele apresenta o povo a Deus; como profeta, ele
proclama a Palavra de Deus ao povo.
A quarta lição que aprendemos com a mensagem do Senhor à
igreja em Éfeso diz respeito aos desafios propostos aos que fazem parte do
ministério da Palavra. (v.2): “Conheço as tuas obras...”. A Igreja é a comum
unidade ou comunidade do povo de Deus. Nós fazemos parte desse agrupamento de
irmãos e irmãs. Os ministros foram instruídos nos estatutos doutrinários,
éticos e morais dessa comunidade; a função do ministro é, pois, a formação da
consciência espiritual dos membros da organização espiritual, a Igreja. O que foi
dito aqui mostra que o ser humano tem uma potencialidade ou abertura para uma
autoformação intelectual espiritual. O ministério da Palavra é um processo
dinâmico de formação, aperfeiçoamento e fortalecimento da fé dos fiéis no Corpo
de Cristo por meio da Palavra de Deus. A consciência de Deus ou a consciência
espiritual do fiel é gerada pela Palavra de Deus. Somente a Palavra de Deus produz
a harmonia do fiel com Deus. Mas a Palavra é recebida em vasos de barro, ou
seja, a Palavra é acolhida pelo ser humano, que é falho. Essa fragilidade
humana é fonte de desvios ou adulterações na compreensão da Palavra. Nasce, pois,
aqui as divisões e gera-se a instabilidade na própria comunidade da fé,
ameaçando a sua continuidade. Por outro lado, vivemos em um cosmo
espiritualmente afastado de Deus (1 João 5.19). Destas duas frentes de batalhas
surgem as altas tensões espirituais, podendo causar uma espécie de
arrefecimento espiritual no agente ministerial, o pastor (v.4): “Abandonaste
teu primeiro amor”. Há quem diga que o primeiro amor, aqui neste contexto,
trata-se das práticas das boas obras praticadas pela igreja, mas devemos
entender essa queda pelo método das causas últimas, ou seja, é o esfriamento
espiritual em relação a Deus que causa todas as demais quedas espirituais. O
primeiro amor, que é o amor a Deus, é o que nos afasta do pecado e da frieza
espiritual. Sendo assim, a expressão do Senhor que diz: “venho a ti e moverei
do seu lugar o teu candeeiro” deve significar: “morrerás ministerialmente”.
por Francisco Gonçalves
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