À luz do texto bíblico, eleição e predestinação são conceitos distintos, mas intimamente ligados
Ao longo de mais de dois mil anos de história da tradição cristã e das controvérsias teológicas, as doutrinas bíblicas da eleição e da predestinação estão entre os temas mais debatidos e mal compreendidos do cristianismo. O embate em torno do assunto tem a sua gênese ainda na época da Igreja Primitiva, no período da patrística, passando por sínodos e concílios eclesiásticos, chegando até os nossos dias.
O interesse por esses dois pontos doutrinários se justifica pois
compõem uma das principais doutrinas da fé cristã: a Soteriologia. A Doutrina
da Salvação é central nas Escrituras (Hebreus 1.14; 2.3; 1 Pedro 1.9, 10; 1 Tessalonicenses
5.9; Tito 2.11) e de extrema importância para a vida cristã. O teólogo Roger Olson
captou essa ideia ao declarar: “O cristianismo é uma religião de salvação. Da
mesma maneira que ‘o cristianismo é Cristo’, também ‘o cristianismo é o evangelho
de Cristo como salvador’”.(1)
Essa era a razão pela qual o pastor e teólogo pentecostal Antonio
Gilberto dizia: “Muitos crentes – e até obreiros! –, em vez de sempre
priorizarem o estudo da Escatologia (uma doutrina importante, é verdade, inclusive
parte integrante deste tratado teológico), deveriam primeiro estudar
Soteriologia, isto é, as doutrinas da nossa gloriosa salvação em Cristo”.(2) O
saudoso mestre da Assembleia de Deus acrescentava: “Se todos os crentes
tivessem uma plena visão da salvação; se pudessem ver plenamente ao longe a tão
grande salvação que receberam, com certeza teriam atitudes diferentes no seu dia
a dia. Teríamos tanto regozijo, tanta motivação, tanto entusiasmo, tanta
convicção, tanto anseio e enlevo pelo céu, que não haveria na Terra um só salvo
descontente, descuidado, negligente e embaraçado com as coisas desta vida e
deste mundo!”.(3)
Considerando que a Eleição e a Predestinação são dois pontos
sensíveis da Teologia da Salvação, compreendê-los adequadamente à luz das
Escrituras é crucial, não somente para prover conhecimento, mas sobretudo para
conduzir o cristão a um estilo de vida consentâneo com a vontade de Deus.
Interpretações errôneas e extremadas sobre o sentido dessa dupla doutrina
bíblica têm causado, ao longo dos séculos, uma postura de legalismo por um lado
e de antinomia por outro.
Devemos reconhecer a dificuldade no estudo desse assunto, a começar
pela linguagem. Como bem observou I. Howard Marshall, erudito em Novo
Testamento, “quando utilizamos a linguagem de predestinação e falamos de Deus
como desejando e determinando, estamos utilizando linguagem humana para descrever
Deus em termos pessoais”.(4) Por isso mesmo, precisamos ser cuidadosos ao
fazermos uma analogia humana ao falar acerca de Deus.
Outra dificuldade reside na própria distinção entre esses
dois termos. Um dos erros teológicos mais comuns sobre Eleição e Predestinação é
entender que são termos sinônimos, possuidores do mesmo significado nas
Escrituras. Todavia, como teremos a oportunidade de perceber neste texto, apesar
de intimamente ligados, representam conceitos distintos e com implicações
diferenciadas no plano divino da salvação.
O propósito deste artigo é apresentar a distinção entre Eleição
e Predestinação, bem como apresentar as principais características da Doutrina
Bíblica da Eleição, à luz da teologia arminiana clássica.
A diferença entre Predestinação e Eleição
A palavra grega presente no Novo Testamento traduzida por “predestinar”
é prooridzõ (pro – “antes de”; horidzõ – “determinar”), dando o
sentido de “decidir de antemão” ou “predeterminar”.
Em seu Debate XL – Sobre a Predestinação dos Cristãos,
Jacó Armínio definiu o termo como sendo “o decreto do prazer de Deus, em Cristo,
pelo qual Ele decidiu, desde toda a eternidade, justificar os fiéis,
adotando-os e dotando-os com a vida eterna, ‘para louvor e glória da sua graça’
e, até mesmo, para a declaração da sua justiça”.(5) Segundo Armínio, “essa
predestinação é evangélica, e portanto, decisiva e indispensável”; uma vez que
o Evangelho é “puramente gracioso, essa predestinação também o é, conforme a
inclinação benevolente de Deus, em Cristo”,(6) razão pela qual ela exclui
qualquer mérito humano.
A predestinação tem a ver com o propósito, com o plano da
salvação estabelecido por Deus deste a eternidade. Em todas as ocasiões em que o
termo prooridzõ aparece no Novo Testamento (Atos 4.28, Romanos 8.29-30;
1 Coríntios 2.7; Efésios 1.5,11), no contexto da Doutrina da Salvação, o foco
está no plano final previamente preparado para os salvos em Cristo. Silas
Daniel observa que a Predestinação “não tem a ver com o objeto da fé (não
define se alguém vai crer ou não) e não tem a ver com lugar, mas com ser. Trata-se
da definição divina daquilo em que aqueles que estão em Cristo se tornarão ao
final”.(7)
Numa análise bíblica, portanto, a predestinação refere-se
aos desígnios divinos e aos benefícios que advém da salvação. Em Romanos 8.29,
ela aponta para a conformidade com a imagem de Cristo; e em Efésios 1.5,11,
refere-se à nossa adoção e à nossa herança como filhos de Deus.
Esse entendimento bíblico, alinhado com a tradição
arminiana, contrapõe diretamente o determinismo teológico rígido e a chamada
Dupla Predestinação, segundo a qual Deus teria escolhido antecipadamente
aqueles que seriam salvos e aqueles que seriam condenados eternamente. Em sua
“Declaração de Sentimentos”, Armínio dizia rejeitar a compreensão da
predestinação com base no determinismo rígido, pois ela não é a base no cristianismo,
não é fundamento da salvação em termos bíblicos, não compreende o Evangelho inteiro
e, por fim, tal doutrina assim formulada nunca foi admitida, decretada ou
aprovada pela tradição cristã, através de seus Concílios, durante os primeiros seiscentos
anos depois de Cristo.(8)
A predestinação, é preciso enfatizar, não significa Deus
decidindo antecipadamente quem será salvo ou não.(9) A busca por qualquer referência
nas Escrituras a alguém sendo predestinado à condenação será em vão.(10) Tal compreensão,
além de não encontrar fundamento no Texto Sagrado, perverte o sentido benéfico
do plano divino e desconsidera os atributos de justiça, bondade e do amor de
Deus. Afinal, “a predestinação é o propósito gracioso de Deus de salvar da
ruína completa toda a humanidade. Não é um ato arbitrário de Deus para garantir
a salvação a um número especial de pessoas e a ninguém mais”.(11)
A Doutrina Bíblica da Predestinação está intrinsecamente
ligada à Doutrina do Amor de Deus pela humanidade. A respeito desse tema,
Douglas Baptista escreve que “foi por amor que fomos eleitos por Deus e
predestinados em Cristo (Romanos 8.29; Efésios 1.4,5). Isso implica dizer que o
‘favor imerecido’, a fé necessária para crer e o uso do livre-arbítrio para responder
ao chamado, tudo isso provém do amor de Deus (Efésios 2.4,8). Não obstante, os
que se achegam a Cristo não são coagidos, mas atraídos a Ele (João 12.32)”.
Enquanto isso, em o Novo Testamento, a palavra “eleito” é encontrada
dezessete vezes; a palavra “eleição”, seis vezes; o termo “dos eleitos”, três vezes;
e “elegidos”, uma vez. Aplicado ao contexto da salvação, temos seis passagens
mais específicas:
1) “Que o propósito de Deus, segundo a eleição, ficasse
firme, não vem de obras, mas por Aquele que chama [...]” (Romanos 9.11).
2) “Há um remanescente segundo a eleição da graça” (Romanos
11.5).
3) “Sabendo, amados irmãos, que a vossa eleição é de Deus
[...]” (1 Tessalonicenses 1.4).
4) “Eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em
santificação do Espírito, para obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo:
Graça a vós, e paz vos sejam multiplicadas” (1 Pedro 1.2).
5) “Portanto, irmãos, procurai fazer cada vez mais firme a
vossa vocação e eleição [...]” (2 Pedro 1.10).
6) “Como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para
que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor” (Efésios 1.4).
No grego, o substantivo “eleição” (ekloge) denota
“escolha, seleção”; e o adjetivo “eleitos” (ekletos), por implicação, refere-se
a escolhidos, mas nunca com o sentido de punição, e sim com a ideia acessória
de bondade, favor, amor, equivalente a estimado, amado.(12)
À luz desse entendimento, o teólogo Henry Clarence Thiessen
definiu a eleição, em seu aspecto redentor, como “aquele ato soberano de Deus
em graça pelo qual Ele escolheu em Jesus Cristo para a salvação todos aqueles
que de antemão sabia que O aceitariam”.(13) A Doutrina da Eleição, portanto,
não se refere a uma seleção divina arbitrária, incondicional e individual desde
a eternidade,(14) mas, sim, a uma decisão graciosa de Deus baseada na sua onisciência,
mais especialmente na sua presciência. Não é necessária qualquer intepretação
engenhosa das Escrituras para chegar a essa conclusão, bastando ir direto aos
textos bíblicos.
A partir dessas considerações, é possível perceber que
Eleição e Predestinação envolvem conceitos bíblicos relacionados, porém distintos.
Enquanto a predestinação tem a ver com um plano pré-estabelecido, a eleição refere-se
à escolha. Ao passo que a eleição diz respeito a “quem” compõe o grupo de
eleitos, a predestinação refere-se ao “para que” são eleitos, ou seja, para os
propósitos e objetivos abrangidos na eleição.(15)
Conforme Robert Shank, “a eleição é o ato pelo qual Deus
escolhe homens para Si mesmo, ao passo que a predestinação é o ato
determinativo de Deus quanto ao destino do eleito que Ele escolheu”. A
predestinação, afirma Shank, é a predeterminação de Deus da eterna circunstância
da eleição: filiação e herança como coerdeiros com Cristo (Efésios 1.5; 11), e
glorificação junto com Cristo em plena conformidade à sua imagem (Romanos
8.28-30)”.(16)
Os eruditos bíblicos Donald Stamps e J. Wesley Adams ilustram
a diferença entre Eleição e Predestinação por meio da analogia com um grande navio
que representa a Igreja de Cristo. Este navio foi escolhido por Deus para ser
sua própria embarcação, e Cristo é o Capitão e Piloto desta nau. Todas as pessoas
foram convidadas para embarcar, mas somente terão permissão para entrar aqueles
que colocarem a fé e confiança em Cristo Jesus, o Capitão. Enquanto permanecem na
embarcação e em companhia de Cristo, estarão entre os eleitos. Do contrário, se
preferirem desistir e se afastarem do Capitão, deixarão de fazer parte dos
eleitos. “A predestinação nos fala a respeito de sua direção e destino e o que Deus
decidiu de antemão para aqueles que nEle permanecerem”.(17)
Características da Doutrina Bíblica da Eleição
Estabelecida a distinção entre Predestinação e Eleição,
vejamos na sequência pelo menos seis características bíblicas da Eleição:
1) A Eleição é Cristocêntrica – A Doutrina da Eleição
começa pela compreensão bíblica de que Cristo é o seu centro. Sem a eleição de
Cristo para ser o Redentor e Salvador do mundo (João 3.16), não há de falar-se em
eleição de um povo, e muito menos de pessoas para a salvação. Fora de Cristo não
há eleição.
Jacó Armínio captou essa verdade bíblica ao escrever: “O primeiro
decreto integral de Deus a respeito da salvação do homem pecador é aquele no
qual Ele decreta a indicação de seu Filho, Jesus Cristo, como Mediador, Redentor,
Salvador, Sacerdote e Rei que deve destruir o pecado pela sua própria morte, e que
deve, pela sua obediência, obter a salvação que se perdeu, devendo comunicá-la pela
sua própria virtude”.(18)
A Doutrina da Eleição é Cristocêntrica porque a Bíblia atesta
que Jesus é o Messias, o Ungido de Deus (Lucas 9.35; 23.35; João 1.34). Em
Isaías 42.1, Ele é chamado de “meu Servo”, “meu Eleito”. Mateus testificou esse
cumprimento profético e o registrou em seu evangelho (Mateus 12.16-21). Cristo,
o Filho de Deus, é o fundamento da eleição.
Robert Shank observa que o papel de Cristo na eleição é
tanto instrumental quanto compreensivo. O aspecto instrumental refere-se à
necessidade da morte vicária de Cristo, como instrumento de Deus para a salvação
humana. Ela provém da necessidade de Seu ministério de mediação entre Deus e o homem,
como atestam as Escrituras (1 Timóteo 2.5). No aspecto compreensivo, significa
que a eleição é feita nele. Shank enfatiza que “Cristo é o Eleito, o único
Mediador entre Deus e os homens, a Aliança viva da reconciliação e da eleição,
o Deus que elege, o locus standi em quem os homens unicamente são
eleitos, e fora de quem nenhum homem pode ser eleito”.(19)
2) A Eleição abrange, potencialmente, todos os homens
– Ou seja, toda a humanidade, sem exceção, poderia compor o povo de Deus, a
Igreja Eleita, a Congregação dos Salvos em Cristo, tomando posse das bênçãos da
salvação. A Bíblia está repleta de passagens que fundamentam a chamada Expiação
Ilimitada (ou Redenção Universal), entendimento segundo o qual a salvação, através
da morte de Cristo, estende-se a todos e a cada um dos homens (João 1.29; 3.16;
Romanos 5.15-19; 1 Timóteo 2.1-6; Tito 2.9). Lemos no texto bíblico que Jesus é
a “propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também
pelos pecados do mundo todo” (1 João 2.2).
Contudo, é importante esclarecer que a oportunidade
universal da salvação está longe de ser uma reivindicação de salvação
universal, como proposto pelo universalismo. Roger Olson explica que “a morte
de Cristo na cruz concedeu possibilidade de salvação a todos, mas ela é, de fato,
concretizada quando os humanos a aceitam por intermédio do arrependimento e fé”.
(20) Ele faz uma analogia com a anistia geral oferecida aos opositores e
resistentes que após a Guerra do Vietnã fugiram para o Canadá e outros países.
Foi-lhes oferecido o perdão quando retornassem aos Estados Unidos. Alguns retornaram
e receberam o perdão, enquanto outros não. Aqueles que retornaram para os Estados
Unidos, conclui Olson, não criaram a anistia declarada pelo país, simplesmente
tiraram vantagem dela. Quanto aos demais, que não retornaram, eles não anularam
a anistia; ela ainda estava lá para eles.
Embora Jesus tenha morrido por toda a humanidade, não
significa que todos serão salvos ao final. Uma coisa é a oferta abrangente da
salvação, a outra é a sua apropriação individual. Robert Shank expressa tal verdade
da seguinte maneira: “O que é providenciado ‘para todos os homens’ beneficia
apenas ‘aqueles que recebem’”.(21) Nesse mesmo sentido, ao falar sobre a Doutrina
da Expiação Ilimitada, o hebraísta Carlos Augusto Vailati destaca que, quanto à
intenção, o propósito de Cristo ao morrer na cruz foi proporcionar a
salvação a toda a humanidade, mas sob a condição da fé em Cristo
(João 3.16; 1 Timóteo 4.10). No que tange à extensão, Cristo entregou-se na
cruz por toda a raça humana, e não apenas a um grupo seleto de eleitos (1
João 2.2). Referente à aplicação dos benefícios da expiação, ele enfatiza
que ela não se dá automaticamente, mas somente ocorre no momento em que os
pecadores creem em Cristo (Marcos 16.16; João 3.16; 36).(22)
3) A Eleição é condicional – A eleição depende do
assentimento da vontade humana para a sua efetivação. O termo teológico que
capta esse entendimento bíblico da necessidade da cooperação humana é
“sinergismo”, que advém do grego συνεργία, (syn) “união” ou “junção” e εργία
(-ergía) “unidade de trabalho”. Contudo, é preciso cuidado para não confundir o
“sinergismo evangélico” com “sinergismo herético”. Enquanto este defende o mérito
humano na dinâmica da salvação, notadamente no pelagianismo e no semipelagianismo(23),
aquele está firmado inteiramente na graça de Deus. Roger Olson destaca que o
arminianismo clássico defende um sinergismo evangélico, “que reserva todo o
poder, capacidade e eficácia da salvação à graça, mas que permite aos humanos
fazerem uso da capacidade concedida por Deus de resistir ou não resistir a
ela”. (24)
Qual seria, então, a condição para ser eleito? A Bíblia
claramente revela que a ação primordial é “estar em Cristo”. Os termos “em
Cristo Jesus”, “no Senhor” e “nEle” aparecem 160 vezes nos escritos paulinos, 36
só na Carta aos Efésios.(25) O capítulo 1 de Efésios, um dos principais textos sobre
Eleição nas Escrituras, diz que fomos eleitos nEle antes da fundação do mundo (v.4).
No verso 11, Paulo prossegue: “Nele, digo, em quem também fomos feitos herança,
havendo sido predestinados, conforme o propósito daquele que faz todas as
coisas, segundo o conselho da sua vontade”.
Para estar em Cristo, a Bíblia apresenta dois requisitos
básicos: fé e arrependimento (João 1.11-12; 3.18; Atos 2.38; 3.19; 16.31;
17.30; Romanos 1.16,17; Gálatas 3.26; 56; Efésios 2.8; Colossenses 2.12). Juntas,
essas duas ações promovem verdadeira conversão e novo nascimento, permitindo ao
homem uma nova vida em Cristo.
4) A Eleição se baseia na presciência de Deus – No Novo
Testamento, o termo grego prognōsis (1 Pedro 1.2) tem o sentido de
“previdência”, “presciência”, substantivo de proginōskō (Romanos 8.29),
“conhecer de antemão”. Na teologia clássica, “presciência” é “o aspecto da onisciência
divina pela qual Deus conhece os acontecimentos que ainda não têm tido lugar e
as coisas que ainda não existem”.(26) Aplicada à salvação, a presciência
significa que Deus sabe, desde a eternidade, aqueles que, em resposta à sua
graça, haveriam de aceitar livremente ao seu Filho Jesus como Senhor e
Salvador, os quais elegeu.
Em sua Primeira Carta, Pedro chama seus destinatários de
“eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a
obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo...” (1 Pedro 1.2). Apesar de
estarem numa condição social desfavorável, eles são eleitos de Deus. O texto
deixa evidente que tal eleição não se deu por um decreto, pelo qual Deus
escolheu um grupo específico de pessoas, rejeitando outras. A eleição é segundo
a presciência de Deus. Ou seja, Deus conhece de antemão, pela sua onisciência,
aqueles que aceitarão a Cristo como Senhor e Salvador (Cf. Romanos 8.28,29).
Nesse mesmo raciocínio, Dave Hunt diz que a intepretação
mais óbvia deste texto é que “Deus previu quem se arrependeria e creria no evangelho,
e com base nisso os predestinou...”. Mais adiante, Hunt afirma: “Saber de
antemão é simplesmente saber com antecedência. E saber com antecedência não é o
mesmo que preordenar. Se Deus simplesmente elegeu/predestinou certas pessoas porque
Ele os elegeu/predestinou, não haveria absolutamente razão em mencionar a
presciência. Claramente, que Deus previu que determinadas pessoas creriam no evangelho
foi a razão para a eleição/ predestinação deles para as bênçãos especiais”.(27)
Nesse sentido, Silas Daniel sintetiza a relação entre
presciência, predestinação e eleição da seguinte forma: “A predestinação e a
eleição se dão com base na presciência divina. Logo, você não é salvo porque
foi eleito; você é eleito porque foi salvo em Cristo”.(28)
5) A Eleição é corporativa – As Escrituras nos mostram
que as pessoas somente usufruem das bênçãos decorrentes da eleição na medida em
que passam a integrar a Igreja – o Corpo de Cristo (Efésios 4.12). Cuida-se, portanto,
de uma eleição corporativa (cf. Mateus 16.13-18).
Ao comentar 1 Pedro 1.2, Ênio Muller destaca que o termo
“eleitos” é comum nas Escrituras, e deve ser analisado a partir da ideia da
escolha da nação de Israel dentre os demais povos. Assim, “como 1 Pedro foi endereçada
a grupos de origem predominantemente gentia, transparece que o autor não
hesitava em aplicar para a igreja, o novo povo de Deus, os títulos e privilégios
que pertenciam até então ao povo da Antiga Aliança”. (29)
Mais adiante, na mesma epístola, Pedro afirma: “Mas vós sois
a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido...” (v.9).
Tais designações, anteriormente aplicadas à nação de Israel, referem-se agora à
igreja. Na Antiga Aliança, a nação de Israel foi eleita para ser um canal de
benção para as demais nações (Gênesis 12.3), mas, devido à sua desobediência e
fracasso, Deus faz surgir um novo povo, formada por todos aqueles que creram em
Cristo e em sua obra salvadora, sejam judeus ou gentios (Efésios 2.14). A missão
desse povo é anunciar as virtudes daquele que nos chamou das trevas para a sua maravilhosa
luz (1 Pedro 2.9). A expressão “geração eleita” evidencia que, em termos bíblicos,
a eleição para a salvação não é individual, mas corporativa (cf. 2 Tessalonicenses
2.13), sempre por intermédio de Cristo. A nossa eleição vem de Deus: “Sabendo,
amados irmãos, que a vossa eleição é de Deus” (1 Tessalonicenses 1.4).
Na Carta aos Efésios, igualmente, temos uma clara mensagem da
natureza corporativa da eleição. Considerada uma das principais cartas do Apóstolo
Paulo, a “rainha das epístolas”, Efésios destaca a relação entre Jesus Cristo e
a Igreja – ambos representados pela imagem de “Cristo, a Cabeça” (Efésios 1.22;
4.15; 5.23) e “Igreja, o Corpo” (Efésios 1.23; 4.12; 5.30). Com efeito, a
ênfase da mensagem recai sobre a Doutrina da Igreja, que é a consumação do
plano eterno de Deus na pessoa de Jesus Cristo (Efésios 1.3-5).30
Através da leitura dessa Carta e de outras passagens bíblicas,
há uma clara inferência da natureza corporativa da Eleição. Robert Shank assevera
que “Cristo é o eleito do Reino de Deus no sentido absoluto, de modo que todos os
seus seguidores são escolhidos com Ele como membros orgânicos, de acordo com suas
relações orgânicas (Efésios 1)”.(31) Segundo Shank, embora o organismo corporativo
seja compreendido de indivíduos, a eleição é primeiramente corporativa, e secundariamente
particular. Em outras palavras, “a eleição para a salvação é corporativa e
abrange homens individualmente apenas em identificação e associação com o corpo
eleito”.(32)
6) A Eleição é operada pela graça de Deus – O fato de
a eleição ser condicional, como dissemos anteriormente, não significa que o homem
tenha qualquer mérito na mecânica da salvação. Somente somos incorporados à Igreja
de Cristo, ao Corpo dos Eleitos, pela obra e a graça de Deus.
Nesse sentido, um elemento de fundamental importância para compreender
a soteriologia arminiana é a graça preveniente, o termo teológico que explica a
forma como Deus capacita o homem previamente para que possa atender ao chamado
da salvação. Assim como muitas outras doutrinas bíblicas, a exemplo da Trindade
e da Depravação Total, o termo “Graça Preveniente” não se encontra expressamente
nas Escrituras, mas seu ensino sim, visto tratar-se de uma categoria bíblica tácita,
evidenciada por meio da interpretação sistemática do Texto Sagrado.
A graça preveniente, portanto, é o meio pelo qual Deus vai ao
encontro do pecador para começar a obra da salvação, atraindo-o e capacitando-o
espiritualmente para responder à obra divina. Tal doutrina bíblica ensina que
em se tratando de salvação, é Deus quem toma a iniciativa de chegar-se ao homem
caído, e nunca o contrário, reconhecendo ao mesmo tempo tanto a total depravação
humana quanto a possibilidade de o homem resistir a essa oferta graciosa.
A Bíblia diz em João 1.9: “Ali estava a luz verdadeira, que ilumina
a todo o homem que vem ao mundo”. Ao interpretar essa passagem, John Wesley concluiu
que “todos, em alguma medida, têm aquela luz, algum tímido raio reluzente que,
cedo ou tarde, mais ou menos, ilumina todos os homens que vêm ao mundo”.(33)
Em João 6.44, temos uma afirmação emblemática de Jesus: “Ninguém
pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não trouxer; e eu o ressuscitarei no
último dia”. Além disso, em diversas outras passagens das Escrituras percebemos
que a graça divina convida (Isaías 55.1; Mateus 4.19; Mateus 11.28; 25.34),
convence (João 16.8), capacita (Atos 16.16; Romanos 2.4; Filipenses 2.12-13) e
coopera com o ser humano para a sua salvação (Hebreus 4.2; 2 Coríntios 6.1).
Com base nessa exposição, além de compreender a Predestinação
e a Eleição à luz das Escrituras, discernindo as suas diferenças, devemos glorificar
a Deus pela obra redentora que operou através de seu Filho Jesus Cristo na cruz
do Calvário, cujos benefícios chegaram até nós pela sua imensa graça.
Notas
(1) OLSON, Roger. História das controvérsias na teologia
cristã: 2000 anos de unidade e diversidade. São Paulo: Vida, 2004, p. 345.
(2) GILBERTO, Antônio e outros. Teologia sistemática
pentecostal. 2. Ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2008, p. 336.
(3) Obra citada, p. 336.
(4) MARSHALL, Howard. Predestinação no Novo Testamento.
In: PINNOCK, Clark; WAGNER, John D. Graça para todos: a dinâmica arminiana da
salvação. São Paulo: Editora Reflexão, 2016, p. 220.
(5) ARMÍNIO, Jacó. As obras de Armínio - Vol. 2. Rio
de Janeiro: CPAD, 2015, p. 92.
(6) ARMÍNIO, Jacó, Obra citada, p. 92.
(7) DANIEL, SILAS. Arminianismo: a mecânica da salvação.
Rio de Janeiro: CPAD, 2017, p. 424.
(8) ARMÍNIO, Jacó, obra citada, p. 201.
(9) ARRINGTON, French (Ed.). Comentário Bíblico
Pentecostal do Novo Testamento – Vol 2. Rio de Janeiro: CPAD, 2003, p.
1201.
(10) HUNT, Dave. Que amor é este?: A falsa representação
de Deus no Calvinismo. São Paulo: Editora Reflexão, 2015, p. 394.
(11) TITILLO, Thiago. Eleição Condicional. São Paulo:
Editora Reflexão, 2015, p. 16.
(12) Bíblia de Estudo Palavras-Chave. Rio de Janeiro,
CPAD, 2012, p. 1595.
(13) Citado por TITILLO, Thiago. Eleição condicional.
São Paulo: Editora Reflexão, 2015, p. 18.
(14) SHANK, Robert. Eleitos no Filho: um estudo da
doutrina da eleição. São Paulo: Editora Reflexão, p. 48.
(15) SHANK, Robert, obra citada, p. 162.
(16) SHANK, Robert, obra citada, p. 163.
(17) ARRINGTON, French (Ed.). Comentário Bíblico
Pentecostal do Novo Testamento – Vol 2. Rio de Janeiro: CPAD, 2003, p. 397.
(18) ARMÍNIO, Jacó. As obras de Armínio - Vol. 1. Rio
de Janeiro: CPAD, 2015, p. 226.
(19) SHANK, Robert, obra citada, p. 44.
(20) OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades.
São Paulo: Editora Reflexão, 2013, p. 289.
(21) SHANK, Robert, obra citada, p. 48.
(22) VAILATI, Carlos Augusto. Expiação ilimitada. São
Paulo: Editora Reflexão, 2016, p. 123.
(23) A primeira concepção nega o pecado original e eleva as
habilidades humanas e naturais para viver vidas espirituais completas. A última
abraça uma versão modificada do pecado original, mas acredita que os humanos
têm a habilidade, mesmo em seu estado caído, de iniciar a salvação ao exercer
uma boa vontade para com Deus.
(24) OLSON,
Roger, obra citada, p. 214.
(25) DANIEL,
Silas, obra citada, p. 431.
(26) TITILLO,
Thiago, obra citada, p. 20
(27) HUNT, Dave,
obra citada, p. 401
(28) SILAS,
Daniel, obra citada, p. 431.
(29) MUELLER, Ênio R. I Pedro: introdução e comentário.
São Paulo: Vida Nova, 1988, p. 65.
(30) BAPTISTA, Douglas. Igreja Eleita: redimida pelo
sangue e selada pelo Espírito Santo da promessa. Rio de Janeiro: CPAD,
2020, p. 21
(31) SHANK, Robert, obra citada, p. 45.
(32) SHANK, Robert, obra citada, p. 48.
(33) COLLINS, Kenneth J. Teologia de John Wesley: o amor
santo e a forma da graça. Rio de Janeiro: CPAD, 2010, p. 101.
por Valmir Nascimento Milomem Santos
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