O que deve nortear nosso discernimento das coisas e uma análise o uso do dom de discernir os espÃritos
Quando chegamos aqui, tudo nos era estranho. Perante nossos olhos de recém-nascidos, o mundo foi ganhando cor e forma. Mas, foi um trabalho árduo para nós e nossos pais. Levados ao chão pela curiosidade, tocamos objetos, inalamos, ficamos assustados com algumas coisas e, não raro, nosso choro denunciava o preço alto dessa descoberta. Foi assim no começo, e assim tem acontecido conosco até agora: uma constante aprendizagem, uma insistente procura. Aprendemos com nossos erros e acertos.
Em nossa vida espiritual não é diferente. Somos hoje o fruto
de nossa jornada com Deus. Porém, esse fruto pode mostrar-se amadurecido –
resultado de uma vida de comunhão com o Criador – ou há de significar apenas um
relato, um amontoado de fatos de uma biografia impensada.
Quando ouvimos a justificativa de alguns que deixaram o
Caminho, a tônica da acusação recai noutros crentes e, principalmente, sobre os
lÃderes da Igreja. Raramente, vamos nos deparar com alguém que reconhece em si
mesmo o fracasso.
Por falta de discernimento espiritual, muitos ainda
confundem a própria salvação com o aspecto congregacional do Corpo de Cristo.
Quase sempre caminhamos a dois extremos: um exacerbado espiritualismo que
despreza os valores humanos, ou uma humanização exagerada da Igreja. No
primeiro caso, numa interpretação panteÃsta da vida cristã, costuma-se ver Deus
em todas as ações de seu povo; no último, tudo se explica a partir do homem.
Devido a esses extremos, precisa-se de discernimento.
Discernir significa conhecer, diferenciar, separar bem as
coisas. Significa interpretar os fatos que vivemos à luz da BÃblia e da razão,
jamais esquecendo que cada ser humano é um misto: somos compostos de uma parte
fÃsica e de outra espiritual. Dessa forma, conheceremos nossos passos, e a
imagem de Deus há de nos ser mais verdadeira.
Discernindo a partir da visão de Efésios 6
Numa análise estrita, discernimento espiritual é uma
atividade de Deus em nossa vida. Consiste numa obra do EspÃrito Santo, pois,
segundo 1 CorÃntios 2.14, o homem natural não aceita as coisas do EspÃrito de
Deus, porque lhe são loucuras, e não pode entendê-las por que elas se discernem
espiritualmente.
A partir do dia em que nos convertemos, deixamos de ser
pessoas comuns. Passamos a viver neste mundo uma vida que não se explica apenas
por leis naturais: “Quem está em Cristo nova criatura é” (2 CorÃntios 5.17). A
salvação que desfrutamos em nossa individualidade explica-se, sobretudo, em
leis espirituais. Somos produto de um plano divino. Somos o resultado de uma
batalha espiritual que começou há muito na eternidade.
Eis nossa primeira percepção: através de Cristo, passamos a
compartilhar do Reino da Luz, onde habita justiça, paz e retidão; onde habita
pureza, santidade e amor. É nesse mundo de valores que nascemos, que somos
gerados pelo EspÃrito de Deus. É maravilhoso nascer de novo! Não há nada que
suplante o primeiro amor.
Vivemos, então, nossos primeiros dias na fé. Somos, como diz
Paulo, meninos que precisam de leite. Ainda não temos discernimento. Todo ato
precipitado terá justificativa: não passa de meninice. Porém, o tempo passa
inexoravelmente, e nós voamos, como diz Moisés no Salmo 90.
Logo veremos a realidade. Logo, o conhecimento de que não
estamos sós na jornada cristã: há uma Igreja, uma famÃlia, um mundo dentro de
nós que clama por Deus, e outro ao nosso redor, sedento da salvação. Sob risco
de nos confundir, precisamos interpretar bem nossos dias, Então, voltamos Ã
origem.
“Olhamos para Efésios 6 e vemos que, em primeiro plano,
nossa luta não é contra carne ou sangue. Ela tem outro endereço: situa-se nas
regiões espirituais. Isso quer dizer que muito do que nos aflige aqui não se
explica à luz da razão. Como afirmou pastor Elienai Cabral em sua pregação de
encerramento das comemorações dos 90 anos da Assembleia de Deus no Brasil,
realizada em Belém (PA), essas “regiões celestiais” não significam estratos
celestiais, mas uma indicação de ordem, de hierarquia e submissão, de modo que
Satanás está “acima” da humanidade: pisando-a, oprimindo-a; porém, em relação
aos crentes, o adversário é obrigado a olhar-lhes cara a cara, no nÃvel dos
olhos, e temê-los, e submeter-se Aquele que vive em nós. É por isso que a
Igreja não é, como alguns pensam, um simples organismo social, um lugar-comum.
Sem correr o risco do extremismo do recente movimento de
batalha espiritual que via “espÃritos” em todos os lugares, o cristão deve
sopesar o lado espiritual dos fatos que o cercam. Por exemplo: se alguém nos
ofende, nossa primeira ótica deve ser espiritual, no sentido de entender que,
certamente, a ação nociva não provém de Deus. Logo, alguém assim agiu movido
por ignorância espiritual, possessão ou opressão, por desvio de caráter ou num
instante impensado. Certamente, o adversário está por detrás, pois ele é o
autor do pecado.
Porém, muito além disso, devemos procurar um ser humano
oprimido e carente do amor divino. Devemos nos lembrar de que todos,
igualmente, estamos vulneráveis à queda e à influência maligna, se não
vigiarmos. Esse é o discernimento que agrada a Deus, que não exclui seu amor. É
o que possibilita o Senhor operar.
Discernimento a partir do amor
Muitas inimizades na relação igreja x igreja, igreja x
membros, igreja x ministério, ministério x ministério e igreja x descrentes
nascem da falta dessa percepção. Muitas vezes, o pecado surge em relação à s
coisas santas, como é o caso de inveja de certos dons e de chamada ou liderança
que alguns irmãos detenham.
Ainda nesse aspecto, um correto discernimento espiritual só
existe quando o amor de Deus é experimentado. Às vezes, somos excessivamente
espiritualistas e transpomos o peso negativo do reino das trevas para a vida de
nosso irmão. Ao invés de repreendermos Satanás, ajudamo-lo a destruir a obra de
Cristo. De modo simples, entendo que, na qualidade de crentes, só temos duas
alternativas: ou servimos a Deus, ou agradamos o adversário. Temos que tomar posição.
Ora, nosso Deus é um Deus de paz, compassivo e pronto a
perdoar aquele que confessa e abandona seus pecados. Amorosamente, o Pai
aguarda que o EspÃrito Santo nos convença de nosso estado decaÃdo e nos faça
confiar na suficiência da obra do Calvário. Quando isso acontece, há uma festa
no Reino dos Céus! De que lado estamos?
Queda, ruÃna espiritual, fracasso na vida cristã e na
vocação... a quem isso interessa? Inimizades, porfias e dissensões: quem as
criou? Inveja, perseguição e traição aos valores éticos, morais e cristãos: qual
sua autoria? Certamente, todas essas coisas são obras do Diabo. Cristo veio ao
mundo para destruÃ-las (1 João 3.8). Ele veio para salvar os pecadores.
Permita-me ser bem claro: no momento em que, em nome de um
pseudo-discernimento espiritual, praticamos todas essas coisas, alistamo-nos
nas alas do exército inimigo. É como se queimássemos a Cruz. O inimigo é o
acusador dos santos (Apocalipse 12.10). É ele quem busca condenar-nos. É de sua
autoria o pecado. De que lado estamos? Jesus disse que todo aquele que não o
auxilia a ajuntar, espalha. No Tribunal de Cristo seremos julgados também por
nossa omissão.
Insistimos em aplaudir o adversário. A queda de nosso irmão
deve ser vista pela igreja com tristeza e espÃrito de advertência.
Biblicamente, se uma parte do Corpo está enferma, todo o resto sofre. Se isso
não acontece mais, devemos examinar se porventura ainda estamos ligados a essa
estrutura espiritual. Causa tristeza um errôneo discernimento espiritual que não
nos leve a interceder pelos que fracassam.
Manchete nacional entre nós foi o episódio envolvendo o
fracasso de um célebre pastor, um dos mais expoentes que temos. Trata-se de um
verdadeiro general, um gigante de Deus, contra o qual Satanás lutou
ardilosamente. Somente ao inferno interessava tirá-lo de cena. Lamento que esse
homem – como tantos outros – tenha sido desprezado. Como alguém já disse, a
igreja é o único exército que mata seus soldados feridos. Um dos meus alunos de
seminário confessou publicamente em classe que, conhecedor da situação, rasgou
todos os livros que possuÃa, escritos pelo ministro sob a unção de Deus,
calcados na imutável Palavra, Falta-nos discernimento nessas horas.
Lembremo-nos de que fomos constituÃdos embaixadores do Reino
de Deus aqui na Terra, instrumentos da reconciliação. Perante um conflito entre
duas pessoas, o Senhor exige de nós, cristãos, uma postura sábia, que desfaça o
mal e garanta salvação a ambos os personagens. Isso é obra de um perfeito
discernimento espiritual.
Em busca da verdade escondida
Em nossa vida, haverá épocas em que discernir será
relativamente fácil. Esse será o tempo da paz. Não temos grande dificuldade em
perceber que estamos saudáveis, felizes e abençoados nos demais aspectos de
nossa existência. Todavia, como anda nossa argúcia em interpretar os dias maus,
aqueles dias em que a própria vida parece perder o significado? Não é tarefa
simples.
Lembrando agora a cena pré-crucificação, entendo o porquê de
Jesus orientar seus seguidores à oração e vigilância. O momento era de muita
tensão, e é nessas horas que temos dificuldade em perceber a realidade.
No momento da prisão do Senhor, Pedro adiantou-se e cortou a
orelha de um soldado romano. O apóstolo não compreendia o alcance do necessário
sacrifÃcio de Cristo. Via ali apenas injustiça humana. Jesus, porém, demonstra
correto discernimento, curando o ferido.
Mais tarde, o mesmo apóstolo revela falta de vigilância:
nega Jesus perante uma criada. Pragueja. Blasfema. Ele está confuso por falta
de discernimento. Muito embora tenha compartilhado do ministério do Salvador e
tenha Dele ouvido acerca de sua morte e ressurreição, a cena presente era mais
forte. Aquele que conhecia bem o costume dos peixes no mar não conseguia agora
entender seu próprio mundo.
Foi justamente por falta de discernimento que Israel
rejeitou o Filho de Deus. Toda a história da nação caminhava para esse evento.
Desde Abraão, passando pelos profetas, atravessando os milênios, Israel foi
preparado para ser uma bênção para todas as famÃlias da Terra. Entretanto,
quando o Messias se apresentou, eles estavam tão envolvidos em problemas que
haviam esquecido o principal. Como disse Jesus, o povo estava apto a conhecer a
mudança do tempo, mas esquecera à própria razão de sua existência, e condenaram
o Messias com um malfeitor. As maravilhas do êxodo não passavam de tradição.
Exemplos desse tipo também encontramos em Judas Iscariotes,
que embora pertencesse ao seleto grupo apostólico e, por isso, desfrutasse de
um lugar especial junto ao Messias, por falta de discernimento espiritual
condenou-se por trinta moedas de prata. Seu choro de remorso tem-se repetido
até hoje.
Nossa vida precisa ser pesada todos os dias, e isso só
produz bons resultados através do correto discernimento. Como já dissemos,
discernir significa conhecer, pesar bem as coisas, de modo que alcancemos a
verdade que está escondida na cena. Quase sempre a aparência é falsa.
À luz de Eclesiastes 3, há tempo para todas as coisas
debaixo do Sol. Há tempo para rir e para chorar, para amar e para aborrecer,
para ganhar e para perder. Assim é nossa vida. Por falta de conhecimento,
muitos estão perecendo, naufragando em seus próprios problemas. Falta-lhes
compreensão de que neste mundo a vida é de constantes altos e baixos.
João Batista é um retrato atual. Embora a anunciação de seu
nascimento (e este próprio) tenha sido envolto numa esfera de espiritualidade;
embora o próprio Cristo proclamasse a excelência da personalidade do profeta,
depois de ter sido, publicamente, reconhecido por ele como o Filho de Deus;
quando a crise chegou, João converteu-se noutro homem: duvidou de tudo, pondo
em xeque a divindade Daquele que antes aclamara Deus. Lá do cárcere, João
enviou mensageiros a Jesus, indagando-lhe acerca de Sua filiação celestial.
Faltou-lhe discernimento, importante elemento em tempos de crise.
Hoje podemos estar felizes, sãos, bem-sucedidos em todas as
áreas de nossa vida, e de repente tudo desabar. Se não buscarmos discernimento
da parte de Deus, entraremos em colapso. É por isso que tenho muitas reservas a
respeito do proclamado “evangelho da prosperidade”. Essa forma particular de
interpretação das Escrituras está assentado num materialismo exacerbado.
Prega-se uma vida cristã cujo sentido está nas posses, na saúde e no sucesso.
Logo, quando tudo isso se vai, o cristão entra em crise, e desespera-se diante
de um Deus que parece não se importar mais. Se Jó pertencesse a esse grupo,
acabaria amaldiçoando ao Senhor, e morrendo. Se Paulo não fosse um homem sábio,
não teria forças para cumprir seu ministério, muitas vezes desenvolvido com
fome e perseguição. Um perfeito discernimento espiritual evita muitos
problemas. Praticamente, todos nossos males provêm de falha nesse aspecto.
O dom de discernimento
Finalmente, queremos comentar alguma coisa sobre o dom de
discernimento. Trata-se de um dos dons mais esquecidos pela Igreja. Em 23 anos
de crente, nunca soube de algum grupo que estivesse buscando tão preciosa
dádiva. Nosso pentecostalismo centra-se muito no falar em lÃnguas e na
profecia, mas se esquece de muita coisa que é vital à vida da Igreja.
Esse dom, que compreende um conhecimento da parte de Deus, é
uma ferramenta insubstituÃvel para o crente. Ele tem por objetivo abrir nossos
olhos espirituais, de modo que vejamos além da aparência.
Ainda hoje, o mundo e boa parte da igreja costuma ligar
Satanás a uma imagem horripilante. Por consequência, deduz-se que coisas
agradáveis aos nossos sentidos não devem conter a mão do adversário.
Esquecemo-nos de que o ardil, o disfarce, é a principal arma do inimigo. A
ruÃna no Éden nasceu justamente dessa visão errônea. Satanás apresentou-se como
amigo do homem e, aos poucos, convenceu-lhe de que o Senhor mentira em suas
recomendações.
É possÃvel que Satanás se intrometa no templo? Claro que
sim! Não imaginemos que um espÃrito esteja limitado pelas paredes bem pintadas
de nossa igreja. Estamos militando em área espiritual. O que nos dá segurança é
apenas uma vida consagrada a Deus. É a isso que Satanás teme.
Mesmo Pedro, apóstolo, não escapou da influência maligna.
Satanás intrometeu-se no cÃrculo apostólico. Resultado: um discÃpulo (Judas)
sucumbiu, traindo o mestre e perdendo o céu, e Pedro foi usado para desviar
Jesus de sua missão.
O Senhor Jesus, porém, tinha discernimento espiritual
suficiente para compreender todas as coisas. Enquanto Judas celebrava a Ceia
com os demais, Jesus anunciou que entre os apóstolos ali havia um traidor, e
identificou-o. Em relação a Pedro, o Senhor entendeu que aquelas palavras
dissuasivas acerca do Calvário provinham de fonte maligna, então repreendeu o
Diabo.
Mais tarde, é o mesmo Pedro que se valerá desse dom.
Conhecerá pelo EspÃrito que Ananias e Safira agem dolosamente, enganando a
Igreja acerca da venda de uma propriedade (Atos 5.1-11). Paulo também empregará
largamente essa ferramenta espiritual. Esta é suficiente para interpretar o
preciso sentido de alguns elogios (Atos 1616-18 ), que dificilmente reputamos
perversos. Só Deus conhece todas as coisas,
Mas, talvez, alguém alegue não possuir esse dom. Então,
estarÃamos suscetÃveis ao erro? Não, necessariamente. Entendo que, na qualidade
de crentes, habitação do EspÃrito Santo, todos nós recebemos um quinhão do
poder divino, de modo que, em miniatura, podemos auferir de todos os dons.
Parece-me que à principal diferença entre dom e manifestações esporádicas é
justamente esta: no exercÃcio dos dons há uma medida certa e grandiosa, que
produz muitos resultados (como, no caso dos dons de curar, muitas manifestações
de cura). Logo, mesmo sem a presença clara do dom de discernimento de
espÃritos, é possÃvel conhecer o que está ao nosso derredor.
Em suma, quis tratar aqui da importância de um correto
discernimento espiritual. Espero que sigamos a recomendação paulina, de modo
que entendamos esse dom como um dos mais excelentes.
Conforme escrevi em uma edição passada da revista
Pentecostes, sem um correto discernimento, corremos o risco de tratarmos
demônios com aspirina ou, igualmente trágico, problemas de cunho humano com
técnicas de exorcismo.
Queira o EspÃrito de Deus nos ajudar diariamente a
entendermos bem as coisas que nos cercam, para que possamos ser melhores
crentes, melhores pessoas, e descobrirmos ainda mais a grandeza de nosso Deus.
Permaneçamos vigilantes e busquemos o discernimento como um dos mais
extraordinários dons.
por Rui Raiol
Compartilhe este artigo. Obrigado.
Postar um comentário
Seu comentário é muito importante