O gesto fazia parte de alguma orientação cultural israelita daquela época?
A compreensão desse gesto pode ser mais bem acurada através de um estudo meticuloso da expressão hebraica que consta na forma plural com sufixo possessivo ויָתוֹלְּגְרַמ (“os pés dele” ou “a região dos pés dele”), e que envolve aspectos morfológico e histórico. No aspecto bíblico, a cena descrita acontece por determinação e orientação de Noemi, sogra de Rute, que a instruiu a se deitar aos pés de Boaz na eira. O contexto bíblico desse episódio está firmado na lei do resgatador, que, no hebraico, é Goel (Levíticos 25.25; Deuteronômio 25.5-10). Através dessa lei, o parente próximo poderia redimir a propriedade ou casar-se com a viúva para preservar o nome da família. Assim, quando Rute age deitando-se aos pés de Boaz, ela não estava procedendo de modo impudico e indecoroso, mas cumprindo um costume tradicional do povo judeu. Nesse gesto, havia um pedido para que Boaz desempenhasse sua missão de resgatador e tomasse Rute como esposa, garantindo, assim, a continuidade da linhagem do falecido.
A palavra pés que aparece nesse texto vem da raiz régel,
literalmente “pé”. O hebraico bíblico, ao falar de pés,
pode ser no sentido literal (Êxodo 3.5; Josué 5.15) ou figurado, para expressar
submissão (Salmos 110). Alguns querem afirmar que a palavra pés no texto de
Rute é eufemismo para órgãos genitais. Para isso, fazem uso de Isaías 7.20 e
Ezequiel 16.25, textos que, neste caso, estão falando de imoralidade sexual. Porém,
no texto de Rute, o termo que aparece é marghelotav, e não tem qualquer
conotação sexual, tão somente expressa um local físico, a extremidade do corpo
de Boaz, onde Rute se deitou. É isso que a própria narrativa expressa. Ela se posiciona
ali apenas na expectativa da resposta de Boaz.
Deitar-se aos pés de uma pessoa, biblicamente, era sinal de
humildade e submissão, evidenciando também um pedido de proteção, cuidado e
amparo. Outro termo relevante na passagem é o verbo ףָנָּכ (kanaph), que significa “cobrir com a capa”
ou “cobrir com a aba da capa” (Rute 3.9). A ação de Rute ao pedir que Boaz
estendesse sobre ela a aba do seu manto delineava, simbolicamente, proteção e compromisso
matrimonial. Essa linguagem é usada pelo próprio Deus quando fala de Sua
aliança com Israel (Ezequiel 16.8). Quando Rute pede a Boaz que a cubra com a
aba do seu manto, estava solicitando dele a responsabilidade de assumir o papel
de seu marido dentro da tradição israelita.
Pelo lado histórico e cultural, tratando desse ato ou gesto
de Rute, a cultura hebraica antiga possuía normas e pareceres em relação às
interações entre um homem e uma mulher, especialmente no que dizia respeito à
lei da pureza e à moralidade. As eiras eram lugares públicos onde o cereal era
debulhado e depois peneirado. Dessa forma, quando Rute se deita aos pés de
Boaz, não estava em um encontro secreto, mas realizando um gesto público e
simbólico. Na lei envolvendo o levirato (Deuteronômio 25.5-10), determinava-se
que o parente mais próximo deveria casar-se com a viúva para que a linhagem da
família fosse preservada. Entretanto, Boaz não era o parente mais próximo, existia
outro que teria prioridade. Assim, Boaz precisaria cumprir todas as
formalidades legais antes de se casar com Rute (Rute 4.1-10). É interessante
notar que, no gesto de Rute ao deitar-se aos pés de Boaz, ela demonstra
submissão respeitosa. Ela não queria impor sua vontade a Boaz, mas adotou uma postura
de respeito e humildade, deixando que ele, por iniciativa própria, tomasse as
providências necessárias e segue a norma cultural do seu tempo.
Por fim, no aspecto teológico e tipológico, há que se
salientar que o gesto de Rute envolve lições espirituais grandiosas. A primeira
delas é que Rute é figura da Igreja e Boaz, de Cristo. Isso porque Rute era
mulher gentílica, uma moabita. De modo semelhante, a Igreja é formada por
pessoas de todas as nações e povos da Terra. No caso de Boaz, sendo Goel (redentor,
resgatador), ele apontava tipologicamente para Cristo, que redimiu a
humanidade, trazendo salvação e proteção para todos aqueles que creem no Seu
sacrifício e se submetem à Sua vontade. O gesto de usar o manto para cobrir com
a aba aponta para a justiça de Cristo, que cobre todos os nossos pecados (Is
61.10). Além disso, o casamento concretizado entre Boaz e Rute possuía um aspecto
simbólico, apontando para a redenção e a graça divina, isso porque Boaz não
tinha a obrigação de redimir Rute, mas o fez voluntariamente, evidenciando graça
e amor. De modo semelhante, Cristo voluntariamente se entregou na cruz do
Calvário para morrer por nossos pecados. No que diz respeito à linhagem de Boaz
e Rute, seu desfecho culmina em Davi e, posteriormente, na pessoa de Jesus,
conforme Mateus 1.5, deixando claro que Deus estava agindo na história para a
redenção se concretizar.
por Osiel Gomes
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