O exercício da piedade

O exercício da piedade


“Exercita-te a ti mesmo em piedade”

Hoje, voltei a lembrar-me do pastor Roberto Montanheiro. Este homem, que por mais de três décadas dirigiu a Assembleia de Deus em São Bernardo do Campo, foi o guia de minha infância e o conselheiro de minha moci­ dade. Sempre o tive como um singular paradigma. Admirava a sua cultura, a eloquência, a persuasão e o carisma. Em minha meninice, não havia homem maior nem mais importante. Acho que todos pensavam assim naquela bela e atraente cidade do ABC paulista.

O que mais sobressaía no pastor Montanheiro, porém, era a sua piedade.

Ele jamais se apartava de sua velha e demarcada Bíblia. Como esquecer aque­ las promessas em vermelho? Ou aquelas advertências em amarelo? Ou, ainda, aquelas esperanças num azul que evocava a Nova Jerusalém? Era impossível dissociá-lo do Santo Livro. Na oração, era perseverantemente amoroso. Desmanchava-se em intercessões por suas ovelhas e por aqueles que não tinham esperança de ver Deus.

Fosse descrever o seu caráter, diria que ele não era nem liberal nem conservador; era simplesmente um homem santo. A piedade era-lhe mais que um rótulo; constituía-se num exercício ao qual se aplicou até que o Senhor Jesus o levou às mansões celestes. Ele soube como conjugar a piedade em todos os tempos e modos no seu estressante e atribulado cotidiano; nela, exercitou-se intensamente.

O que é a piedade

A piedade não é um simples respeito pelas coisas religiosas, nem uma mera devoção. Conforme muito bem a definiu James D. Burns, é o conhecimento de Deus na mente do homem. Ao enfocá-la sob a ótica dos Evangelhos, George Hodges afirmou que Jesus é amigo dos pecadores, mas só pode ser companheiro dos crentes piedosos.

O termo grego traduzido por piedade é mui significativo; eusébia traz a ideia de reverência e culto. A palavra pode ser interpretada, de acordo com Alford, como a virtude operosa e adoradora. Por conseguinte, a piedade não é estática; é uma disposição firme e constante para a prática do bem.

Não foram poucos os filósofos que viram na piedade o ingrediente indispensável à alma humana. Haja vista o que dela afirmou Confúcio: “Piedade e obediência, eis as raízes da humanidade”. Em seus Últimos Sonetos, assim cantou o admirável poeta Cruze Souza: “O coração de todo o ser humano foi concebido para ter piedade”.

A piedade, todavia, não deve ser contemplada nem meramente almejada. Exorta-nos Paulo a exercitá-la. Você sabe o que isto significa? Atentemos ao que nos recomenda o apóstolo.

Exercitando a piedade

Ao fazer esta recomendação ao jovem pastor Timóteo: “Exercita-te a ti mesmo em piedade” (1 Timóteo 4.7), apóstolo Paulo tinha em mente a disciplina dos atletas gregos que, na conquista de uma vitória, exercitavam-se até à exaustão. Leiamos o referido texto no original: gúmnaze dé seautón prós eusébeian.

O verbo grego gumnázo significa: exercito-me completamente despojado a fim de que nada me tolha os movimentos. Assim concorriam os atletas nos jogos públicos da Grécia Clássica; disciplinadíssimos, não admitiam que nada lhes atrapalhasse a conquista do prêmio. Levavam eles tão a sério a competição, que os seus concursos eram conhecidos como agón. É deste vocábulo que nos vem o termo agonia que, primitivamente, descrevia a ansiedade do atleta nas competições. Por conseguinte, o vergo agonízomai expressa este propósito: esforço-me no agón, pelejo, luto, persevero nas provas.

Somente lograremos a estatura de perfeitos varões se nos exercitarmos na piedade como os primitivos helenos. Neste exercício, haveremos de chegar à exaustão; estaremos em agonia, a fim de que, em todas as coisas, agrademos àquele que nos alistou para tão árdua, porém gloriosa peleja. Se almejamos uma vida piedosa, haveremos de nos exercitar na Palavra de Deus, na oração e nas boas obras.

O exercício da Palavra

Richard Wurnbrand conta que, durante o período em que esteve nos cárceres comunistas, conheceu pastores e teólogos que, embora houvessem lido muito sobre a Bíblia, pouca intimidade tinham com o Santo Livro. Alguns jamais haviam lido toda a Bíblia, mas podiam discorrer longamente sobre as mais diversas correntes teológicas. Não estará o mesmo ocorrendo conosco?

De que adianta conhecer a crítica textual e desconhecer o poder das Escrituras? De que vale transitar pela crítica histórica e ignorar as sendas dos profetas e apóstolos? Que proveito em dominar as regras da hermenêutica e não aplicar a Palavra de Deus ao viver diário? Que ganho há em se falar os idiomas originais e não balbuciar a língua da divina vontade? Que proveito tem a homilética se o exemplo de vida não proclama com eloquência as Sagradas Letras?

Conheci homens cheios de teologia e vazios de Deus; plenos de teorias e carentes de uma vida cristã prática; transbordantes de discursos racionalizados e espiritualmente mudos. De que lhes adiantou tanta ilustração? Enquanto isso vai a pobre viúva e o inculto operário descobrindo, no dia a dia, os maiores tesouros de Deus expostos nas páginas do Antigo e do Novo Testamento.

Você tem lido regular e humildemente a Bíblia? Ou prefere divagar no movediço terreno das academias? Em sua Imitação de Cristo, deixa-nos Tomás de Kempis este conselho: “Nas Sagradas Escrituras deve-se buscar a verdade e não a eloquência. Devemos lê-las com o mesmo espírito com que foram escrituras”. A leitura diária do Santo Livro conduzi-lo-á ao pleno exercício da piedade; nada o separará daquela comunhão tão doce com o Senhor. Assim fazia o querido pastor Montanheiro. Conquanto ilustradíssimo e culto, aproximava-se da Palavra de Deus despojado das teorias e preconceitos que o academicismo, qual parasita, usa para nos drenar as forças espirituais. Absorto, quedava-se ele com os profetas e apóstolos de Nosso Senhor. Que exercício maravilhoso!

Dedique-se às Escrituras. Torne-se delas inseparável. E que a sua leitura do Santo Livro seja acompanhada por súplicas e perseverantes orações.

O exercício da oração

Recentemente ouvi a gravação de uma entrevista com o missionário Daniel Berg, feita nos anos sessenta. Naquela voz já cansada, naquela entonação já bastante amortecida pelo tempo e naquela simplicidade desconcertante, podia-se distinguir claramente um homem que vivia para orar e orava por viver na presença de Cristo. Este era o segredo do apóstolo da obra pentecostal no Brasil.

Berg exercitava-se intensamente na oração. Ao ler-lhe a biografia, tive a impressão de vê-lo ininterruptamente de joelhos. E foi justamente de joelhos que semeou o Evangelho nas vastidões deste país. A colheita foi inesperada!

Temos nos exercitado na oração? Ou f já temos nos conformado com uma vida desprovida de vida? Ou com um ministério sem serviço? Ou com uma esperança  desesperançada? Ou com uma devoção desapaixonada e fria?

Não podemos nos enganar: a piedade inexiste sem oração. Os mais piedosos são os que mais tempo passam aos pés do Senhor. Ao discorrer sobre a qualidade da vida cristã, E. M. Bounds é irretorquível: “É a força da oração que faz santos. Os caracteres santos são formados pelo poder da oração verdadeira”.

Você tem por hábito orar todos os dias? Não estou perguntando se você tem o dom da oratória ou se as suas palavras no púlpito são convincentes. De joelhos, você ainda é um gigante? Intercedendo, tem eloquência? Abençoando os que lhe querem o mal, são poderosas suas palavras? Que você leva o auditório às lágrimas eu sei; mas consegue chorar aos pés do Cordeiro até que Ele lhe incline os ouvidos?

Seu gabinete é confortável e acolhedor. Há nele porém o cantinho da oração? E as marcas dos joelhos? E a umidade das lágrimas? Aqui, você concede audiências e dá entrevistas, mas tem santificado um tempo para avistar-se com o Cristo de Deus? Ou está o Senhor do lado de fora a esperar pela hora que não vêm, pela porta que não se abre, pelo convite que não lhe é feito. Ponha-se aos pés de Cristo e, à semelhança de Maria, devote ao Cordeiro todas as suas devoções. Você não foi chamado para ser um mero executivo, mas para executar a vontade de Deus, ainda que adversas sejam as circunstâncias.

Ser bem articulado não é suficiente; o apoio humano falta quando mais dele precisamos. As riquezas não bastam em si mesmas; perdem-se em ações que se desvalorizam, inflacionando depressões e pesares. E as palavras, por mais rebuscadas e vívidas, nem sempre convencem; mas uma súplica contrita, ainda que muda, tem suficiente eloquência para mover a mão de Deus.

Quanto mais nos exercitarmos em petições e súplicas diante de Deus, melhores ficaremos. Foi o que constatou o evangelista Stanley Jones: “Já descobri que sou melhor ou pior à medida que oro mais ou menos. Quando oro, sou igual a uma lâmpada colocada no lugar adequado; fico pleno de luz e poder”. Se orarmos com amor e perseverança, seremos poderosos em boas obras.

O exercício de boas-obras

Quem não se admira da estatura espiritual de Martinho Lutero? Foi ele um dos maiores campeões de Deus. Reformou a igreja, revolucionou a Europa e fez com que milhões de pobres almas se desprendessem das garras de Roma. Mas ao enfatizar a salvação pela fé, não deu o devido realce às boas obras. Haja vista sua irritação quanto à Epístola de Tiago, por haver o apóstolo mostrado o equilíbrio entre a fé e as boas obras.

Lendo de relance as epístolas de Paulo, tem-se a impressão de que o doutor dos gentios pouco valor emprestava às boas obras. Todavia, jamais deixou ele de sublimá-las como resultado da fé em Nosso Senhor Jesus Cristo. Nas cartas endereçadas aos pastores Timóteo e Tito, refere-se ele pelos menos oito vezes às obras. Até mesmo no grande capítulo sobre a salvação pela fé, há uma alusão quanto à importância das obras na vida do crente: “Porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas” (Efésios 2.10).

O crente, por conseguinte, não é salvo pelas boas obras, mas para as boas obras. E, nestas, devemos exercitar-nos continuamente, a fim de que o nome de Deus seja glorificado: “Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai, que está nos céus” (Mateus 5.16).

Ora, se as ovelhas devem ser ricas em boas obras, quanto mais os pastores. Se temos fé, demonstremo-la através das obras (Tiago 2.18). Cabe-nos ressaltar uma importante característica de Lutero. Embora o reformador enfatizasse a salvação pela fé, jamais deixou de demonstrar, na prática, as boas obras como resultado da fé em Cristo Jesus.

Você tem se exercitado nas boas obras? Ou acha que a fé, desprovida destas, basta-se a si mesma? (Tiago 2.1 .Como é triste um pastor desprovido de obras! Não prega, não visita, não consola e não cuida do rebanho. Todavia, faz questão de ostentar o báculo e o cajado. Lutero, segundo alguns de seus biógrafos, trabalhava até à exaustão. Assim também era o meu pastor. Não foram poucas as vezes que, ao chegar à igreja, vi-o aprontar o templo para o culto. Jamais deixou de ser diácono, nunca abandonou o ofício de presbítero, fazia o trabalho de um evangelista e tinha sempre em mente os afazeres de pastor.

Pastor Roberto Montanheiro foi recolhido às mansões celestes, onde aguarda a ressurreição dos santos. Ele exercitou-se na piedade e, na piedade, foi um singular exemplo.

Você pode ostentar todos os títulos, mas se não for reconhecido como um obreiro piedoso, de que lhe valerão todas as conquistas intelectuais e eclesiásticas? Para Tomás de Kempis ser piedoso é imitar a Cristo. Em sua obra imortal, diz ele como devemos andar: “A vida do bom religioso deve ser ornada de todas as virtudes, para que corresponda o interior ao que por fora veem os homens; e com razão, ainda mais perfeito deve ser no interior do que por fora parece, pois lá penetra o olhar perscrutador de Deus, a quem devemos suma reverência, em qualquer lugar onde estivermos, e em cuja presença cumpre andar com pureza angélica”.

Se não fomos conhecidos por nossa piedade, jamais seremos reconhecidos como homens de Deus.

por Claudionor Corrêa de Andrade

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