Os dons de revelação manifestam a sabedoria e a mensagem de Deus a fim de manter a saúde espiritual da Igreja de Cristo
Nas décadas de 30 e 40 do século 18, o professor da Universidade de Yale e pregador puritano Jonathan Edwards (1703-1758) preocupou-se com a legitimidade das experiências religiosas durante o período de avivamento espiritual de seu tempo. Embora o psicólogo da religião W. James mais tarde não concordasse com algumas proposições de Edwards, próprias de um teólogo puritano que distingue o “convertido” como uma espécie de homem diferente, cita criticamente a obra de Edwards, Tratado das Afeições Religiosas, mostrando o pensamento arguto do autor.
Edwards afirmara que “na medida em que as influências do
verdadeiro Espírito abundavam, também as falsificações se disseminavam”, e, por
isso, procura instruir a comunidade para a correta distinção entre o verdadeiro
e o falso testemunho da revelação do Espírito. Edwards afirmava que a variedade
da experiência religiosa não é critério suficiente para negar a experiência,
uma vez que Deus não limita sua ação apenas ao que é revelado na Escritura,
pois age de maneira diversa e nova. Ele ensinou que uma ação divina nunca deve ser
julgada por sua reação emocional ou física, e que a popularidade da manifestação
também não afiança sua origem divina.
Edwards considerava a Bíblia o fundamento para discernir os testemunhos
verdadeiros dos falsos, principalmente a partir dos escritos joaninos (1 João
4). O cristão é alertado nas Escrituras, pelo Espírito, da existência de
“imitações” e “falsificações” da experiência e carisma do Espírito. E, para
isso, a Escritura instrui o crente com critérios eficazes para discernir o
testemunho, a manifestação carismática ou a experiência de êxtase de suas
falsificações e idealizações mentais.
Segundo Edwards, com base em 1 João 4, os critérios para discernir
racionalmente os testemunhos de experiência religiosa são: (1) O fato de a ação
e o testemunho produzirem efeitos que engrandeçam a estima das pessoas por
Jesus (1 João 4,2-3); (2) Se o espírito e o testemunho agirem contra os interesses
do reino de Satanás (1 João 4.4-5); (3) O espírito e o testemunho geram nos
homens uma profunda consideração pelas Escrituras (1 João 4.6); (4) O espírito e
o testemunho revelam características da ação do Espírito Santo em oposição às
ações e à natureza do espírito do erro (1 João 4.6); (5) Se o espírito que está
em ação opera como “espírito de amor” a Deus e aos homens (1 João 4.7).
Edwards também apresentou as dimensões práticas e positivas
de uma revelação espiritual na experiência religiosa. Por sua extensão, cito apenas
duas: amor à Palavra de Deus e consciência de pecado e salvação. Por fim,
afirma: “As regras das Escrituras servem para distinguirmos entre as influências
comuns do Espírito de Deus, como as que são salvíficas, e a influência de outras
causas”. Por fim, solicita aos que afirmam algum tipo de experiência profunda:
“Humildade, desconfiança de si mesmo e uma total dependência de nosso Senhor
Jesus Cristo serão nossa melhor defesa”.
Classificação dos carismas de revelação
No pentecostalismo clássico, são chamados de “dons de revelação”
três dons específicos: palavra de sabedoria, palavra da ciência (1 Coríntios 12.8)
e discernir os espíritos (1 Coríntios 12.10). Todavia, a classificação desses três
como “revelação” não representa uma unidade na teologia pentecostal. Eurico
Bergstén classifica-os como “dons da sabedoria de Deus”, mas, ao comentá-los,
segue a ordem do texto bíblico; inclusive, a classificação usada por Bergstén é
uma das mais adequadas ao texto bíblico: dons que manifestam o poder de Deus;
dons que manifestam a sabedoria de Deus e dons que manifestam a mensagem
de Deus.
David Lim, embora reconheça a existência da tríplice
classificação (revelação, poder e expressão), classifica os dois primeiros como
“dons de ensino” e o terceiro como “dons do ministério”. Lim segue a ordem dos carismas
no texto bíblico, enquanto os pentecostais brasileiros costumam organizar pelas
funções.
Todavia, em 1 Coríntios 12.10, o discernimento de espírito (διακρίσεις
πνευμάτων) aparece entre os dons de locução, que são profecia, variedade de línguas
e interpretação de línguas. Pelo que se depreende de 1 Coríntios 14, a maneira como
os três dons de comunicação se manifestavam na comunidade distorcia o propósito
didático da liturgia (1 Coríntios 14.5,12,19,26). Paulo, então, introduz o
discernimento de espírito entre esses carismas como advertência ao profeta e glossolalo
de que o Espírito habilitou alguns para discernir suas falas. Pelo menos, por
quatro vezes, os termos “julgar” (διακρίνω) e “provar” (δοκιμάζω) são
mencionados juntamente com os dons de locução (1 Coríntios 14.26, 29; 1 Tessalonicenses
5.19-21; 1Jo 4.1). Essa relação significa que uma das propriedades do
discernimento de espírito é distinguir a glossolalia e a profecia do ânimo
(espírito) do próprio profeta e do espírito do anticristo (1 João 4.1-6), da profecia
revelada pelo Espírito (1 Coríntios 14.30,32).
Por outro lado, é possível, entretanto, que a classificação
desses três carismas como “revelação” seja uma ilação do vocábulo de 1 Coríntios
14.6 (ἀποκαλύψει), uma vez que
esses dons habilitam o crente para conhecer (sabedoria, conhecimento e discernimento),
falar (profecia, línguas e interpretação de línguas) e agir (fé,
curas, milagres) sobrenaturalmente (1 Coríntios 12.8-10). Contudo, é importante
sinalizar que a profecia é chamada de revelação (1 Coríntios 14.24-25,30), e o
hermeneuta de línguas, aquele que as interpreta, só interpreta-as mediante uma
revelação do Espírito (1 Coríntios 12.10-11). De modo geral, todos os dons
revelam (1 Coríntios 14.6) a ação do Espírito na assembleia, mas a teologia
pentecostal atribui o título de “dons de revelação” a três carismas
específicos.
Palavra de Sabedoria (1 Coríntios 12.8)
A palavra de sabedoria (λόγοςσοφίας) é uma habilidade
sobrenatural que o Espírito Santo concede a determinados cristãos para declarar
uma sabedoria em circunstâncias específicas. Geralmente, distinguem-se os
substantivos logos (λόγος), isto é, “razão”, "ciência”, “estudo”; eipon
(εἴπον), “falar”, “dizer”; ou
ainda rhema (ρῆμα),
“aquilo que é falado”. Contudo, o sentido de λόγος aqui não quer dizer tratado,
ciência ou estudo meditado e profundo, mas “um falar”, “fala”, “pronunciamento”,
“uma declaração”, como ocorre em Mateus 8.8 e 1 Coríntios 14.9. Palavra de sabedoria
é um pronunciamento espontâneo de sabedoria do Espírito com a finalidade de
anunciar uma mensagem ou conselho de sabedoria, como traduzem a NLH (“mensagem
de sabedoria”) e a NVT (“conselhos sábios”). Palavra de sabedoria pode
inserir-se em outras duas categorias: carisma de comunicação e carisma
pedagógico.
A palavra de sabedoria é um conselho do Espírito. Na
Primeira Aliança, o Espírito é chamado de o “Espírito de sabedoria”, que
repousaria sobre o Messias (Isaías 11.2). O termo ḥokhmāh não se refere aqui às habilidades técnicas
(Êxodo 28.3) ou à capacidade estratégica de governança (Gênesis 41.33-40), mas
ao Messias como manifestação da sabedoria de Deus (Mateus 13.54; Marcos 6.2; 1 Coríntios
1.24,30; Colossenses 2.3).
A palavra da sabedoria não é a sabedoria como dom geral (Tiago
1.5) ou sabedoria humana (1 Coríntios 2.4), mas uma centelha da sabedoria de
Deus manifestada em situações que a exigem. Ela se manifesta em várias
situações distintas, mas na Escritura apresenta-se: na defesa do Evangelho (Atos
6.10; Lucas 21.14-15), em conselhos administrativos em tempo de crise (Atos 7.10),
no discernimento da graça de Deus por meio de conselhos que designam e promovem
o plano salvífico (Atos 15), na compreensão dos mistérios de Deus por meio do
Espírito (Romanos 11.33; 1 Coríntios 2.10-16), na exposição do Evangelho (1 Coríntios
2.4-9) e no testemunho afiançado pelo Espírito (Atos 9.26-27). É uma palavra de
sabedoria não premeditada, mas espontânea, cuja fonte é o Espírito de Cristo (Lucas
21.14-21). E assim, é um dom imprescindível para o curso de ação da igreja
pentecostal contemporânea.
Palavra da Ciência (1 Coríntios 12.8)
A palavra da ciência (λόγοςγ νώσεως) é uma habilidade que o Espírito
concede a determinados cristãos para conhecer além da capacidade humana. O
termo gnōsis (γνῶσις)
se refere ao “ato de entender” e daí o sentido de “conhecimento” ou “ciência”.
O modo subjetivo no v.8, designa aquilo que se conhece e, no caso do carisma,
um conhecimento melhor e mais profundo (1 Coríntios 14.6; 2 Coríntios 11.6;
14.26). A razão pela qual se nomina “palavra da ciência”, no qual logos
designa uma “declaração” ou “fala”, talvez esteja relacionada ao fato de que um
cristão iletrado receba tanto a revelação da “ciência” quanto a habilidade para
declarar (λόγος) correta e adequadamente o “conhecimento”. Algumas vezes, Paulo
se referiu à sua inaptidão retórica em comparação aos gramáticos (2 Coríntios
10.10;11.6; 1 Coríntios 2.1). Contudo, a palavra da sabedoria e da ciência eram
as habilidades que o Espírito lhe concedia para desempenhar com eficácia o ministério
da pregação e do ensino (1 Coríntios 2.13; 2 Coríntios 11.6).
O sentido de gnōsis ou “ciência” (ARC) não se refere
à ciência como conjunto de conhecimento sistematizado obtido pela observação e
pesquisa, mas à revelação imediata do conhecimento da verdade divina. Enquanto
a palavra de sabedoria é um conselho prático, a palavra do conhecimento
é a expressão da verdade dos mistérios divinos. Em Isaías 11.2, o Espírito do Senhor
é chamado de “Espírito de conhecimento”. O termo hebraico da‘ath (conhecimento)
é usado para descrever o dom do conhecimento técnico (Êxodo 31.3; 35.31), o conhecimento
de Deus obtido pela experiência (Números 24.16; Isaías 53.11) e a percepção e
discernimento que provém da fidelidade na Palavra de Deus (Salmos 119.66).
O Espírito é aquele que revela os mistérios de Deus (1 Coríntios
2.10), pois somente Ele conhece-o (1 Coríntios 2.12). Deste modo, a palavra da ciência
é uma ação do Espírito Santo sobre o crente que o habilita e ensina a falar os mistérios
do Evangelho (2 Coríntios 2.14). Sua expressão mais contundente é na comunicação
de uma revelação da Escritura e dos mistérios da salvação (Atos 10.42-44), daí
a razão pela qual o carisma é paralelo ao ministério do apóstolo, do mestre e
do evangelista. Trata-se assim de uma declaração de ciência divina não obtida
pelo estudo meditado e profundo, mas como revelação do Espírito para
circunstâncias e necessidades específicas.
Discernir os espíritos (1 Coríntios 12.10)
O dom de discernir os espíritos (διακρίσεις πνευμάτών) é uma
habilidade sobrenatural que o Espírito concede a determinados membros do corpo
de Cristo para discernir a origem espiritual de certa ação, ensino, profecia,
línguas e até mesmo motivações. Embora a ARC e a NAA empreguem a expressão no
singular, “discernir os espíritos”, e muitos comentaristas prefiram o singular,
a frase, no original, está no plural, o que indica que se trata de um carisma
que se manifesta de muitos modos. Duas lições depreendem-se da frase no plural.
A primeira é a de que há variedade de formas em que o Espírito manifesta o
discernimento. A segunda lição refere-se ao fato de se tratar de “espíritos” –
vários espíritos são julgados e discernidos por meio desse carisma.
No contexto de 1 Coríntios 12.10, é uma aptidão espiritual
para julgar a inspiração das profecias e das línguas pneumáticas (1 Tessalonicenses
5.20-21). Nesse aspecto, quando a fonte da profecia ou das variedades de
línguas não é o próprio Espírito Santo, então sua origem pode ser humana ou
demoníaca. O homem é capaz de imitar esses dois carismas locutórios, passando como
profeta e glossolalo verdadeiros até que o discernimento dos espíritos tira-lhe
a máscara da hipocrisia e da fraude. São obreiros fraudulentos que se
transfiguram em profetas e glossolalos verdadeiros (2 Coríntios 11.13). Da parte
de Satanás e dos demônios, não se pode ignorar os seus ardis (2 Coríntios
2.10-11). O Diabo é capaz de se transfigurar em anjo de luz e seus demônios, em
ministros da justiça (2 Coríntios 11.14-15). Por isso, são imitadores fraudulentos
dos carismas.
O Espírito Santo concedeu o discernimento de espíritos à
Igreja para que ela não seja ludibriada por qualquer profeta ou glossolalo que
fala em seu próprio nome ou é usado pelos espíritos. Lembro-me de que, em certa
ocasião, com relutância aceitei o convite de um pastor para ministrar numa vigília
após o culto. Apesar de mais de 8 horas de viagem e da pregação, com relutância
aceitei o convite. Ao chegar, recebi da parte do Espírito o discernimento das línguas
de um glossolalo. Disse ao dirigente que aquelas línguas, sonoras e belas, não
eram do Espírito. A pessoa que estava nos fundos da igreja, que não poderia
ouvir o que disse em segredo ao pastor, deu um grito, correu e tentou se jogar
do segundo andar. Repreendi o espírito imundo e a pessoa foi liberta. Ao dizer-lhe
o ocorrido, espantou-se e depois falou a situação de sua vida espiritual, que
incluía participação noutras tradições religiosas.
O discernimento de espírito é espontâneo, direto, objetivo e
prático. É uma revelação especial que o Espírito Santo concede ao crente para que
os falsos profetas e glossolalos não enganem a Igreja. A profecia e a variedade
de línguas são os dons mais imitados pelos falsos profetas e demônios nos dias
atuais.
O dom de discernimento de espíritos manifesta-se: no discernimento
entre verdade e mentira, quando há propósitos ocultos mascarados sobre a
aparência de piedade (Atos 5.1-11), no discernimento de forças demoníacas e
mágicas que se passam como ação do Espírito e dão lucro aos seus possuintes (Atos
8.9-24; 13.8-11; 16.16-19); no discernimento de todo e qualquer dom, inclusive
profecia e variedade de línguas, que se passa como manifestação do Espírito,
quando na verdade é do espírito humano ou demoníaco (1 Coríntios 12.10); no
discernimento das motivações mais profundas e ocultas daqueles que usam seus
talentos naturais como se fossem dons do ministério de Cristo (Filipenses 1.15-21);
no discernimento de enfermidades causadas por perturbação maligna (Mateus 12.22;
Mc 9.25); no discernimento de heresias que se mesclam à verdade do Evangelho, destituindo
sagazmente a natureza do Evangelho de Cristo (Gálatas 1.16-9; Colossenses 2);
no discernimento de falsos ministros, pregadores, ensinadores e profetas que se
transfiguram como bons ministros (2 Coríntios 11.13; 1 João 7-10); e no
discernimento de operações demoníacas que se passam por ações do Espírito (2 Coríntios
11.14-15).
É necessário ressaltar que o dom de discernimento de espíritos
não é uma habilidade para identificar as faltas alheias e expô-las com propósitos
escusos e muito menos se trata de leitura de pensamento. É um dom que procede
da bondade de Deus para que a noiva de Cristo não seja enganada pela operação
do erro.
Conclusão
Os dons de revelação são necessários e indispensáveis à Igreja
hodierna. A comunidade cristã deve buscá-los em oração assim como anseia pela
profecia, línguas e variedades de línguas. Uma igreja pentecostal madura é a
que apresenta uma diversidade de dons, ministérios e operações (1 Coríntios
12,4-7).
BIBLIOGRAFIA
BERGSTÉN, E. Introdução a Teologia Sistemática. Rio de
Janeiro: CPAD, 1993.
EDWARDS, J. Afeições Religiosas. São Paulo: Vida Nova, 2018.
HORTON, S. M. (ed.) Teologia Sistemática: perspectiva
pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 1998.
por Esdras Costa Bentho
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