O cuidado em não divinizar o dinheiro

O cuidado em não divinizar o dinheiro

Não é novidade que uma das características dos dias atuais é o excessivo apego ao dinheiro. Já foi dito de forma equivocada por muitas pessoas que o dinheiro é a raiz de todos os males, sem contar que existem pessoas que garantem que tal afirmação pode ser encontrada na Bíblia Sagrada. Mas, o que de fato foi dito pelo apóstolo Paulo a Timóteo é que “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males” (1 Timóteo 6.10a - NAA). 

Acumular cifras e patrimônio tem se tornado o único objetivo de vida para muita gente, mesmo que o esforço venha a comprometer saúde, família e a comunhão com Deus. O próprio Jesus advertiu que o momento em que o dinheiro passa a ser um “deus” na vida da pessoa, a avareza a conduz a uma rotina idolátrica: “Vocês não podem servir a Deus e também servir ao dinheiro” (Mateus 6.24b – NTLH). 

Segundo o autor norte-americano Robert Menzies, “o livro de Atos dos Apóstolos fornece um modelo para a igreja contemporânea.” A afirmação do autor, neste caso, serve tão somente a fim de pavimentar a defesa do batismo no Espírito Santo de acordo com o padrão de Atos. Contudo, ao analisarmos o escrito lucano em sua totalidade, o modo como os primevos cristãos lidavam com o dinheiro e suas posses materiais também deve fornecer um modelo para a igreja atual. Vamos analisar os versículos 42-47 de Atos 2 no momento em que acontece a koinonia (comunhão) dos primeiros crentes. As pessoas envolvidas no evento perseveravam na Doutrina dos Apóstolos, no partir do pão, e nas orações, na unidade, na notória alegria e, destaque-se, na oferta dos bens materiais para atender aos necessitados. Esta questão envolvendo finanças é pouco abordada nas reflexões sobre Atos 2, mas uma breve análise do texto evidencia que havia pessoas carentes entre os primeiros cristãos, como pode ser visto também no episódio da instituição dos diáconos (Atos 6.1) e que necessitavam de assistência. 

Assim, os mais abastados vendiam suas propriedades para atender aos mais carentes, como no caso de Barnabé (Atos 4.36,37). Neste sentido, observa-se em Atos 2 o que o Comentário Bíblico Pentecostal cunhou de “estilo de vida pentecostal”, a saber, o padrão de vida cristã das primeiras décadas, implicando que “em lugar de negligenciar os pobres, eles vendem voluntariamente as ‘propriedades e fazendas’ para aliviar a angústia dos que estão em necessidade”, mas é bom ressaltar que “o termo comunismo não descreve esta prática. Antes, eles estão expressando amor espontâneo, e é completamente voluntário.”

O modo cristão em lidar com os bens materiais no primeiro século encontra raízes no Antigo Testamento, em uma série de limitações ao direito de propriedade dos israelitas. Um dos institutos divinos, o dízimo, limitava o proprietário a reservar parte do que obtinha e devolvê-lo em sinal de adoração e fidelidade a Deus. Os frutos também não poderiam ser totalmente colhidos, pelo fato de os pobres, órfãos, viúvas e outros deveriam ser beneficiados com parte da seara (Levítico 19.9, 10; 23.22). Tratando do tema, o teólogo e historiador cubano-americano Justo González explica que o povo de Israel compreendia o direito sobre seus bens de forma muito diferente dos romanos, justamente por ser este direito limitado pelos direitos dos necessitados. Segundo González, a convicção de que o cristão deveria dispor de seus bens em favor dos necessitados era regra nos primeiros séculos. Cite-se como exemplo a Didaquê, catecismo cristão escrito entre 60 – 90 d.C., que trata do tema no capítulo 4, item 8: “Não rejeite o necessitado. Compartilhe tudo com seu irmão e não diga que as coisas são apenas suas. Se vocês estão unidos nas coisas imortais, tanto mais estarão nas coisas perecíveis.” O historiador explica que Cipriano, já no século 3 defendia o seguinte: “Porque tudo que provém de Deus é de uso comum, e ninguém fica excluído de seus dons e benefícios.” Combatendo a avareza, em um de seus discursos indaga Basílio de Cesareia: “O que é um avaro? Quem não se contenta com aquilo que necessita. O que é um ladrão? Quem toma aquilo que pertence a outros. Por que então não chamas a ti mesmo de avaro e ladrão, quando reivindicas como teu o que recebeste apenas para administrar?”

Em que momento entrou em decadência no meio cristão a boa prática de dispor dos bens pessoais diante da necessidade alheia? A reposta pode ter suas raízes na “conversão de Constantino”, imperador romano. Como a religião cristã passou a ser admirada pelo povo, a adesão à antiga “seita” passou a ser vista por muitos como uma chance de alcançar o favor do império. Assim, os ensinamentos de Jesus e seus discípulos já não eram tão relevantes, e ser cristão não exigia convicção profunda de pecados e conversão a Cristo, mas poderia significar tão somente uma etapa da vida social. Uma nova geração de “discípulos”, mas desta vez abastados e sem nenhum compromisso com o Reino de Deus passaram a se intitular cristãos, a prática do desapego aos bens materiais e, principalmente, sua dedicação aos pobres foi esquecida. Ainda segundo González, foi neste contexto que a ideia de esmolas e ofertas especiais ganhou mais amplitude. Em consequência, “o que fora dito desde o princípio – que o repartir dos bens devia surgir da vontade e não ser visto como obrigação – foi usado então como desculpa para não confrontar os ricos com o chamado a compartilhar os bens com os pobres.”

O estilo de vida egocêntrico do século 21 acerca do uso das finanças e da propriedade privada é tão marcante que defender a administração dos bens materiais como em Atos 2 pode encontrar resistência até mesmo entre muitos cristãos; é a conformação com o presente mundo, duramente combatida por Paulo em Romanos 12.2a: “Não vivam como vivem as pessoas deste mundo, mas deixem que Deus os transforme por meio de uma completa mudança de mente.” (NTLH). Infelizmente, nos dias atuais, muita gente comprometida com o padrão material mundano imagina que a ideia de ser abastado é a real finalidade do Evangelho, desse modo, os defensores deste ensino promovem distorções de textos do Antigo Testamento e o abandono intencional dos ensinos de Jesus, de modo que os empreendedores da fé elevam o homem às alturas e delegam a Deus o papel de prestador de serviços. No entanto, a correta mordomia cristã no trato com o dinheiro passa pelo ganho honroso do salário, fruto do trabalho das próprias mãos (Salmos 128.1,2), com o qual o homem consegue sustentar os seus dependentes, além de atender os que padecem necessidade (Efésios 5.22,23); a liberalidade nos dízimos e nas ofertas (Mateus 23.23; 2 Coríntios 9.6-11), o pagamento dos impostos devidamente instituídos (Mateus 22.21), o atendimento aos pobres (Mateus 6.2-4) e a satisfação em Deus, seja em momentos de abundância ou escassez (Filipenses 4.10,13).

Diante da análise, o cristão deve observar à luz da Bíblia como tem sido a sua relação com o dinheiro e os bens materiais, sob pena de manifestar uma fé amortecida (Tiago 2.14-17), não esquecer o perigo em dedicar-se ao que é perecível, pois “os que querem ficar ricos caem em tentação, e em laço, e em muitas concupiscências loucas e nocivas, que submergem na perdição e ruína.” (1 Timóteo 6.9).

por João Paulo da Silva Mendes

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