Considerações bíblicas sobre a relação entre a Igreja e o Estado

Considerações bíblicas sobre a relação entre a Igreja e o Estado

A Declaração de Fé das Assembleias de Deus cuidou de tratar em um capítulo específico sobre o relacionamento da Igreja e o Estado. É o capítulo de número XVI do texto aprovado pela Convenção Geral dos Ministros das Igrejas Evangélicas Assembleia de Deus no Brasil (CGADB) e publicado pela Casa Publicadora das Assembleias de Deus (CPAD).

Hoje, há não poucas dúvidas entre os cristãos sobre o relacionamento entre a Igreja e o Estado. No entanto, como o texto da Declaração de Fé informa, há previsão bíblica para apreciação do tema. Na verdade, há textos que tratam do assunto expressamente no Novo Testamento, sendo o mais abrangente destes em Romanos 13.1-7, que foi mencionado na Declaração de Fé.

Conforme Paulo, todos devem estar sujeitos “às autoridades superiores, porque não há autoridade que não venha de Deus; e as autoridades que há foram ordenadas por Deus” (Romanos 13.1). Para fins de contextualização da epístola, Paulo teria escrito a Carta aos Romanos no ano 56 ou 57 d.C. (1) Ora, sabe-se que politicamente o império romano é que governava nessa época no cenário dos acontecimentos bíblicos, tanto sobre os judeus como sobre os gentios. Sendo assim, isso torna a questão mais interessante de ser analisada, pois Paulo estava afirmando à Igreja que os crentes em Jesus Cristo deveriam estar submissos a governantes que, em regra, sequer temiam a Deus. Como isso seria possível?

Voltando ao texto da Declaração de Fé, assim lemos: “Cremos, professamos e ensinamos que Deus constituiu autoridades para administrarem a vida em comunidade e exercerem juízos nas sociedades, pelo bem da coletividade”. (2) Ou seja, a organização estatal dotada de hierarquia é procedente de Deus. Todavia, será que poderíamos dizer que Deus instituiu a forma de Estado (Federação ou Confederação), a forma de governo (Monarquia ou República), ou até mesmo o sistema de governo (Presidencialismo ou Parlamentarismo)? A resposta é não. Por certo que nos dias de Paulo os estudos sobre a organização do Estado não contavam com tantas propostas, tampouco a realidade oriental poderia contemplar algumas delas. Nas palavras de Lawrence O. Richards, o argumento de que a providência divina ordenou o governo “não significa que Deus tenha ordenado um governo em particular”, pois “o que Paulo está dizendo é que Deus estruturou o mundo de seres humanos de tal forma que haverá autoridades e submissos, governantes e cidadãos. Aquele que se considera cidadão deve responder apropriadamente ao governo, caso contrário violará a ordem da sociedade divinamente ordenada”. (3)

Assim, o princípio a ser observado aqui é uma sociedade organizada em que há autoridades cuja finalidade é o bem comum procedente de Deus. Em termos práticos, os próprios cristãos desfrutam dos benefícios de uma sociedade organizada em que há autoridades legalmente constituídas e que cumprem seu papel. Citemos, por exemplo, o fato de o Estado brasileiro ser responsável pela organização e manutenção dos órgãos de segurança pública, por ser competente para fixar regras de trânsito com a finalidade de organizá-lo e preservar a vida dos usuários, bem como por estabelecer e aplicar sanções penais em casos de crimes etc.

Quanto à igreja, ela “está submetida ao Estado, tendo como limite de tal submissão os preceitos bíblicos, de sorte que, em caso de conflito entre as normas emanadas do estado e a Bíblia, esta prevalece sobre aquelas.” (4) Esta submissão ao Estado, como bem frisado no texto assembleiano, encontra limites na Palavra de Deus, sendo plenamente compatível com a Bíblia que, em alguns casos, o cristão não se submeta ao Estado, isto porque quando este extrapola os limites da delegação divina, já não o representa, o que tem como consequência a desobrigação de o cristão submeter-se à lei, o que configura, neste caso, hipótese de “desobediência civil”. (5) As consequências da desobediência podem ser trágicas, como nos casos de muitos cristãos primitivos e daqueles que servem a Deus em países cuja fé predominante é abertamente oposta ao Cristianismo e intimamente ligada a um Estado confessional; também pode ser que em alguns casos a prova da fé em razão de desobediência a leis humanas incompatíveis com os preceitos bíblicos produza testemunho público e louvor a Deus, como nos casos dos jovens judeus no reino babilônico e do próprio Daniel (Daniel 3 e 6).

Importa notar ainda que a Igreja não depende da aceitação do Estado para servir a Deus. Não há garantias na Bíblia de que o Estado será sempre cumpridor da justiça que se espera de suas autoridades, incluindo aí eventuais oposições abertamente declaradas à fé cristã e aos valores bíblicos. Umas das coisas que certamente traria prejuízos para a Igreja seria um Estado que desejasse ardentemente andar de mãos dadas com a fé; isso, por si só, despertaria o desejo de muitos hipócritas aderirem à fé para gozarem dos favores que pudessem eventualmente ser conferidos a um “cristão”. Sobre isso a história já deixou claro que a união profunda da autoridade estatal com a igreja pode causar danos irreparáveis.

Destacamos ainda que a Bíblia adverte sobre a necessidade de orar em favor das autoridades e governantes: “Admoesto-te, pois, antes de tudo, que se façam deprecações, orações, intercessões e ações de graças por todos os homens, pelos reis e por todos os que estão em eminência, para que tenhamos uma vida quieta e sossegada, em toda a piedade e honestidade” (1 Timóteo 2.12).

Em dias em que escândalos envolvendo autoridades já fazem parte do noticiário há muito tempo, seria de se esperar dos cristãos constante intercessão pela nação, não para que os culpados saiam ilesos ou sofram linchamento público, mas para que Deus, em Sua bondade e misericórdia, conceda ao povo brasileiro alento.

Assim, cabe ao cristão submeter-se às autoridades constituídas desde que estas cumpram o propósito divino de governar com equidade. No entanto, a fidelidade a Deus por parte de cada crente, bem como o êxito da igreja, independe da justiça ou da iniquidade estatais, pois “mais importa obedecer a Deus do que aos homens” (Atos 5.29).

Notas

1. RICHARDS, Lawrence. O Guia do Leitor da Bíblia. Rio de Janeiro: CPAD, 2012, p. 735.

2. Declaração de Fé das Assembleias de Deus. 1 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2017, p. 14

3. RICHARDS, Lawrence O. Comentário Histórico-Cultural do Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2015, p. 321.

4. Ibid., p. 150.

5. Termo utilizado por Norman Geisler em sua conhecida obra Ética Cristã, Opções e Questões Contemporâneas. 2 ed. São Paulo: Vida Nova, 2012.

por João Paulo da Silva Mendes

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