O homem não reconhecido: limite das tecnologias de rastreamento israelenses

O homem não reconhecido: limite das tecnologias de rastreamento israelenses

De maneira simplificada, podemos dizer que um sistema de reconhecimento facial consiste numa técnica, cuja base é o pressuposto de que cada pessoa tem um padrão facial característico, possível de ser captado por um conjunto de algoritmos e softwares que mapeiem esses padrões, analisem, arquivem e capacitem o sistema a verificar, por cruzamento de dados, a identidade de uma pessoa. O resultado é comumente chamado de reconhecimento facial e identificação facial, embora o uso da tecnologia possa conduzir à prática do rastreamento facial, objeto de polêmicas que não impedem seu avanço, seja no Brasil, na Índia, na Inglaterra ou em Israel. Com maior ou menor uso, com mais ou menos avançadas técnicas ou com objetivos distintos, o caminho para o olhar atento do Big Brother parece estar em curso.

Variados artigos criticavam, no segundo semestre de 2021, o avanço do Blue Wolf ou “lobo azul”, software usado pela polícia israelense para fotografar e identificar pessoas suspeitas e evitar ataques terroristas. Os principais questionamentos diziam respeito à possibilidade do uso estar vinculado à perseguição de uma parcela específica da comunidade árabe, fortalecendo o preconceito e a discriminação. Valendo-se de denúncias de soldados israelenses, ordenados a fazer as identificações fotográficas, opositores de Israel levantaram grande alarde sobre as supostas más intenções da prática. No entanto, o avanço da tecnologia e o ganho de espaço que o uso obteve em seus próprios países amainaram as vozes, embora algumas ainda persistam.

Mais recentemente, o assunto ganhou fôlego com a divulgação dos trabalhos da empresa Yozmot Ltd, pertencente a Dany Tirza, coronel aposentado do exército israelense. Tirza procura desenvolver uma câmera corporal que permita escanear multidões e identificar pessoas, mesmo que estejam disfarçadas ou com seus rostos modificados ou obscurecidos por maquiagens, tatuagens ou camuflagens (a tecnologia foi desenvolvida primeiramente pela Corsight Al, sediada em Tel Aviv, e que agrega os esforços de mais de duzentos ‘integradores’ de todo o mundo para a incorporação de softwares de reconhecimento). Apesar das críticas globais, o valor da ferramenta, tanto para rastrear criminosos quanto para encontrar pessoas desaparecidas vem sustentando o avanço do projeto. Para termos uma ideia do ‘motor’ financeiro desse tipo de iniciativa, basta verificar que a indústria de reconhecimento facial levantou aproximadamente 3,7 bilhões de dólares em 2020 e tem uma projeção (pela Mordor Intelligence, empresa de pesquisa de mercado) de um crescimento que alcance os 11,6 bilhões de dólares até o ano de 2026. Com tais perspectivas, é difícil considerar que as iniciativas como as do governo francês, que declarou ilegal a construção de um banco de dados de seus cidadãos pela empresa Clearview Al (banco, aliás, montado a partir de fotos encontradas na internet) possam ter resultados permanentes. O processo de vigilância global parece irreversível.

O reconhecimento de um rosto é um processo que inicia na infância. Um bebê de poucos meses já terá arquivado os padrões do rosto de sua mãe e estará habilitado a sorrir para ela e a rejeitar, com estranhamento, um rosto desconhecido. A habilidade também o atrairá para tomadas, bichinhos e figuras que tragam algum desenho próximo das características do rosto humano (as antigas tomadas, por vezes, parecem pequenas “carinhas” sorridentes ou espantadas – um perigo para os pequenos exploradores).

Rostos podem sofrer mudanças as mais variadas, sejam elas fruto de alterações naturais, como o envelhecimento, sejam resultado de acidentes, desastres, doenças, tornando o rosto, por vezes, irreconhecível. Existem, ainda, as mudanças estéticas, obtidas na busca por um padrão de beleza, por vezes distante do rosto original. Disfarces e alterações superficiais, como apliques, perucas, máscaras e acessórios também modificam um rosto. Sem dúvida, estados emocionais de dor ou desespero transtornam faces antes tranquilas. Que dizer, então, das alterações causadas por estados espirituais afetados, como a possessão demoníaca? Especialmente belos, por outro lado, tornam-se os rostos tomados pelo êxtase de uma visão celestial, pelo brilho da glória de Deus. Como reconhecer um rosto modificado?

Jesus transfigurou-se. Aos olhos dos poucos discípulos que viram a cena, o mesmo Senhor foi tomado de uma alteração especial que, no entanto, não prejudicou a identificação. Era Ele, era o mesmo Jesus, revestido de fulgor dos céus. Também Moisés experimentou uma alteração física depois de estar na presença de Deus, de tal maneira que precisou revestir-se de um véu. O assunto, já abordado em outra ocasião, desperta reflexões profundas, uma vez que o libertador, num primeiro momento, cobre-se com o véu do recado de quem brilha e reflete a glória, para, num segundo momento, fazer uso do mesmo véu para esconder o processo em que a glória desvanecia. Nesse segundo momento, o véu representa o conjunto dos artifícios de religiosidade, por vezes usados para esconder o processo em que os efeitos da comunhão profunda com o Eterno vão desaparecendo. De qualquer maneira, com ou sem brilho, com ou sem véu, era ele mesmo, era Moisés – todos poderiam identificá-lo.

Guardadas as diferenças entre os acontecimentos, é difícil compreender como os caminhantes (Lucas 24), dirigindo-se a Emaús, “naquele mesmo dia”, ou seja, no domingo da ressurreição, conversaram com Jesus enquanto percorriam alguns quilômetros sem reconhecê-lO. Euzébio, historiador da igreja em seus primeiros anos, declara que Cléopas, um dos discípulos, seria pai do outro discípulo e tio de Jesus (História Eclesiástica, III, 11.1). Já Flavio Josefo sugere que a Emaús citada ficasse a cerca de 7,5 km de Jerusalém. Ou seja, lidamos com a possibilidade histórica de que fossem, além de seguidores, parentes do Mestre, e que percorreram juntos uma boa jornada, que, teoricamente, permitiria ver e rever os padrões faciais de alguém e permitir seu reconhecimento.

Não foi o que sucedeu. Se Jesus apresentou-se “de outra forma” (Marcos 16.12), não está claro se isso se devia a uma mudança de trajes, ou alterações devido aos intensos sofrimentos pelos quais passou ou por um efeito sobrenatural. Alguns supõem que o Senhor passava pelo início das transformações ligadas à glorificação e que os discípulos, repletos de preocupações e envolvidos na conversa, não O reconheceram. Seus olhos, diz o texto, estavam como que fechados. Eles estavam tristes – e, aqui, a língua grega brinda-nos com a exatidão do termo e identifica uma melancolia, uma profunda tristeza e desprazer. A tristeza torna-se espanto e impaciência diante de um indivíduo que, talvez, fosse o único a desconhecer os fatos recentes. “És tu o único peregrino...” soa como uma crítica ao indivíduo diferente, o total estranho, o que deve ter estado sozinho e destituído de informações. Pois é esse peregrino mesmo quem diagnostica o mal que acometia os viajantes: eles são néscios, tardos de coração para crer naquilo que fora dito. Ou seja, as profecias já haviam declarado tudo o que necessitavam saber, mas suas mentes, embotadas, não alcançavam. Tendo lido os profetas, percebiam apenas parcialmente o sentido das palavras. Algo de errado havia em sua percepção espiritual, algo com relação àquela sensibilidade mais profunda que alcança a totalidade da palavra revelada. Presos à perspectiva de um messias político, custavam a crer na possibilidade de que o Senhor se revelasse como servo sofredor. Jesus expõe-lhes as Escrituras e, mais adiante vamos saber, seus corações ardem. Na casa, em Emaús, toma o pão e abençoa e chegamos ao auge da narrativa – no partir do pão seus olhos se abriram. Do Cristo não reconhecido (estágio 1 ), passam ao Cristo cujas palavras fazem arder os corações (estágio 2) e chegam ao reconhecimento do Cristo no partir do pão. O reconhecimento ocorre no ato de participar de Sua vida, de Seu corpo, mas a abertura sobrenatural dos olhos já estava em curso durante a explanação da Palavra.

Uma vez que o Cristo não reconhecido é aquele que não se encaixa em nossas expectativas, não se molda aos nossos padrões, não existe para atender nossos projetos pessoais, somente a pregação da Palavra pode oferecer os elementos identificadores da pessoa e do caráter de Deus – a revelação do Senhor como Ele é. De posse da Palavra revelada, tendo renunciado a um Cristo ou a uma vida cristã segundo nossas próprias concepções, em Sua doce presença podemos reconhecê-lo e desfrutar de total e intensa comunhão. Mesmo os próximos, sendo até parentes, estão sujeitos a perder a possibilidade de identificar o Mestre em seu caminhar. O tempo passa, as circunstâncias mudam, e Jesus torna-se uma pessoa acerca de quem falamos, e não mais A pessoa com quem falamos. Em Israel, recente discussão considera a possibilidade de que o messias, talvez, revele-se como duas pessoas: uma que atenda ao necessário sacrifício expiatório, vindo para sofrer e morrer, e outra, que venha para reinar e conduzir seu povo ao triunfo. A discussão apenas confirma que os olhos embotados não conseguem perceber, bem ao lado, o amigo, o parente, o salvador, o remidor, a resposta. Padrões e expectativas antigas turvam a visão. Que a Palavra faça arder corações e que a comunhão com o Cordeiro revele a face que as mais modernas tecnologias digitais não conseguirão captar. Mantenhamos, irmãos, nossas ferramentas de identificação espiritual constantemente atualizadas pela Palavra viva, a nós exposta ao longo do caminho.

por Sara Alice Cavalcanti

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