Variados artigos criticavam, no segundo semestre de 2021, o avanço do Blue Wolf ou “lobo azul”, software usado pela polícia israelense para fotografar e identificar pessoas suspeitas e evitar ataques terroristas. Os principais questionamentos diziam respeito à possibilidade do uso estar vinculado à perseguição de uma parcela específica da comunidade árabe, fortalecendo o preconceito e a discriminação. Valendo-se de denúncias de soldados israelenses, ordenados a fazer as identificações fotográficas, opositores de Israel levantaram grande alarde sobre as supostas más intenções da prática. No entanto, o avanço da tecnologia e o ganho de espaço que o uso obteve em seus próprios países amainaram as vozes, embora algumas ainda persistam.
Mais recentemente, o assunto ganhou fôlego com a divulgação dos trabalhos da empresa Yozmot Ltd, pertencente a Dany Tirza, coronel aposentado do exército israelense. Tirza procura desenvolver uma câmera corporal que permita escanear multidões e identificar pessoas, mesmo que estejam disfarçadas ou com seus rostos modificados ou obscurecidos por maquiagens, tatuagens ou camuflagens (a tecnologia foi desenvolvida primeiramente pela Corsight Al, sediada em Tel Aviv, e que agrega os esforços de mais de duzentos ‘integradores’ de todo o mundo para a incorporação de softwares de reconhecimento). Apesar das críticas globais, o valor da ferramenta, tanto para rastrear criminosos quanto para encontrar pessoas desaparecidas vem sustentando o avanço do projeto. Para termos uma ideia do ‘motor’ financeiro desse tipo de iniciativa, basta verificar que a indústria de reconhecimento facial levantou aproximadamente 3,7 bilhões de dólares em 2020 e tem uma projeção (pela Mordor Intelligence, empresa de pesquisa de mercado) de um crescimento que alcance os 11,6 bilhões de dólares até o ano de 2026. Com tais perspectivas, é difícil considerar que as iniciativas como as do governo francês, que declarou ilegal a construção de um banco de dados de seus cidadãos pela empresa Clearview Al (banco, aliás, montado a partir de fotos encontradas na internet) possam ter resultados permanentes. O processo de vigilância global parece irreversível.
O reconhecimento de um rosto é um processo que inicia na infância. Um bebê de poucos meses já terá arquivado os padrões do rosto de sua mãe e estará habilitado a sorrir para ela e a rejeitar, com estranhamento, um rosto desconhecido. A habilidade também o atrairá para tomadas, bichinhos e figuras que tragam algum desenho próximo das características do rosto humano (as antigas tomadas, por vezes, parecem pequenas “carinhas” sorridentes ou espantadas – um perigo para os pequenos exploradores).
Rostos podem sofrer mudanças as mais variadas, sejam elas fruto de alterações naturais, como o envelhecimento, sejam resultado de acidentes, desastres, doenças, tornando o rosto, por vezes, irreconhecível. Existem, ainda, as mudanças estéticas, obtidas na busca por um padrão de beleza, por vezes distante do rosto original. Disfarces e alterações superficiais, como apliques, perucas, máscaras e acessórios também modificam um rosto. Sem dúvida, estados emocionais de dor ou desespero transtornam faces antes tranquilas. Que dizer, então, das alterações causadas por estados espirituais afetados, como a possessão demoníaca? Especialmente belos, por outro lado, tornam-se os rostos tomados pelo êxtase de uma visão celestial, pelo brilho da glória de Deus. Como reconhecer um rosto modificado?
Jesus transfigurou-se. Aos olhos dos poucos discípulos que viram a cena, o mesmo Senhor foi tomado de uma alteração especial que, no entanto, não prejudicou a identificação. Era Ele, era o mesmo Jesus, revestido de fulgor dos céus. Também Moisés experimentou uma alteração física depois de estar na presença de Deus, de tal maneira que precisou revestir-se de um véu. O assunto, já abordado em outra ocasião, desperta reflexões profundas, uma vez que o libertador, num primeiro momento, cobre-se com o véu do recado de quem brilha e reflete a glória, para, num segundo momento, fazer uso do mesmo véu para esconder o processo em que a glória desvanecia. Nesse segundo momento, o véu representa o conjunto dos artifícios de religiosidade, por vezes usados para esconder o processo em que os efeitos da comunhão profunda com o Eterno vão desaparecendo. De qualquer maneira, com ou sem brilho, com ou sem véu, era ele mesmo, era Moisés – todos poderiam identificá-lo.
Guardadas as diferenças entre os acontecimentos, é difícil compreender como os caminhantes (Lucas 24), dirigindo-se a Emaús, “naquele mesmo dia”, ou seja, no domingo da ressurreição, conversaram com Jesus enquanto percorriam alguns quilômetros sem reconhecê-lO. Euzébio, historiador da igreja em seus primeiros anos, declara que Cléopas, um dos discípulos, seria pai do outro discípulo e tio de Jesus (História Eclesiástica, III, 11.1). Já Flavio Josefo sugere que a Emaús citada ficasse a cerca de 7,5 km de Jerusalém. Ou seja, lidamos com a possibilidade histórica de que fossem, além de seguidores, parentes do Mestre, e que percorreram juntos uma boa jornada, que, teoricamente, permitiria ver e rever os padrões faciais de alguém e permitir seu reconhecimento.
Não foi o que sucedeu. Se Jesus apresentou-se “de outra forma” (Marcos 16.12), não está claro se isso se devia a uma mudança de trajes, ou alterações devido aos intensos sofrimentos pelos quais passou ou por um efeito sobrenatural. Alguns supõem que o Senhor passava pelo início das transformações ligadas à glorificação e que os discípulos, repletos de preocupações e envolvidos na conversa, não O reconheceram. Seus olhos, diz o texto, estavam como que fechados. Eles estavam tristes – e, aqui, a língua grega brinda-nos com a exatidão do termo e identifica uma melancolia, uma profunda tristeza e desprazer. A tristeza torna-se espanto e impaciência diante de um indivíduo que, talvez, fosse o único a desconhecer os fatos recentes. “És tu o único peregrino...” soa como uma crítica ao indivíduo diferente, o total estranho, o que deve ter estado sozinho e destituído de informações. Pois é esse peregrino mesmo quem diagnostica o mal que acometia os viajantes: eles são néscios, tardos de coração para crer naquilo que fora dito. Ou seja, as profecias já haviam declarado tudo o que necessitavam saber, mas suas mentes, embotadas, não alcançavam. Tendo lido os profetas, percebiam apenas parcialmente o sentido das palavras. Algo de errado havia em sua percepção espiritual, algo com relação àquela sensibilidade mais profunda que alcança a totalidade da palavra revelada. Presos à perspectiva de um messias político, custavam a crer na possibilidade de que o Senhor se revelasse como servo sofredor. Jesus expõe-lhes as Escrituras e, mais adiante vamos saber, seus corações ardem. Na casa, em Emaús, toma o pão e abençoa e chegamos ao auge da narrativa – no partir do pão seus olhos se abriram. Do Cristo não reconhecido (estágio 1 ), passam ao Cristo cujas palavras fazem arder os corações (estágio 2) e chegam ao reconhecimento do Cristo no partir do pão. O reconhecimento ocorre no ato de participar de Sua vida, de Seu corpo, mas a abertura sobrenatural dos olhos já estava em curso durante a explanação da Palavra.
Uma vez que o Cristo não reconhecido é aquele que não se encaixa em nossas expectativas, não se molda aos nossos padrões, não existe para atender nossos projetos pessoais, somente a pregação da Palavra pode oferecer os elementos identificadores da pessoa e do caráter de Deus – a revelação do Senhor como Ele é. De posse da Palavra revelada, tendo renunciado a um Cristo ou a uma vida cristã segundo nossas próprias concepções, em Sua doce presença podemos reconhecê-lo e desfrutar de total e intensa comunhão. Mesmo os próximos, sendo até parentes, estão sujeitos a perder a possibilidade de identificar o Mestre em seu caminhar. O tempo passa, as circunstâncias mudam, e Jesus torna-se uma pessoa acerca de quem falamos, e não mais A pessoa com quem falamos. Em Israel, recente discussão considera a possibilidade de que o messias, talvez, revele-se como duas pessoas: uma que atenda ao necessário sacrifício expiatório, vindo para sofrer e morrer, e outra, que venha para reinar e conduzir seu povo ao triunfo. A discussão apenas confirma que os olhos embotados não conseguem perceber, bem ao lado, o amigo, o parente, o salvador, o remidor, a resposta. Padrões e expectativas antigas turvam a visão. Que a Palavra faça arder corações e que a comunhão com o Cordeiro revele a face que as mais modernas tecnologias digitais não conseguirão captar. Mantenhamos, irmãos, nossas ferramentas de identificação espiritual constantemente atualizadas pela Palavra viva, a nós exposta ao longo do caminho.
por Sara Alice Cavalcanti
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