O jejum sempre fez parte da vida da igreja. Ele não é meio de salvação, mas um recurso à nossa disposição que, se feito biblicamente, pode ser meio de operação da graça
Com a ajuda de Deus, abordaremos um assunto pouco comentado no meio evangélico de forma mais profunda: o jejum. Também podemos observar que o jejum está se tornando cada vez mais raro na vida devocional dos cristãos evangélicos, considerando que para estes não é uma prescrição nem ordenança, mas algo voluntário e a critério de cada crente. Esperamos, na graça divina, que, ao terminarmos este enfoque, tenhamos melhor compreensão e disposição para praticar esta disciplina da vida devocional cristã.
O significado do jejum à luz da etimologia
De forma clara e objetiva, a expressão “jejum” significa a
abstenção total ou parcial de alimentos e/ou bebidas, geralmente associada à oração
e ao recolhimento. No hebraico, é םוּצ (tsûm), que significa
“cobrir a boca”. No grego, é νηστεύω (nēstéō), que equivale a “abster-se”. O
jejum pode ser compulsório por falta de alimento suficiente, o que comumente é
chamado de fome, e pode ser usado como tratamento em benefício à saúde;
todavia, neste artigo, referimo-nos ao jejum religioso ou espiritual com o objetivo
de aproximar-se de Deus e buscar o Seu auxílio em meio a lutas de todo tipo.
O jejum no Pentateuco
Nos primeiros cinco livros da Lei, a primeira pessoa que
surge em jejum é o servo de Deus Moisés: “E esteve Moisés ali com o SENHOR
quarenta dias e quarenta noites; não comeu pão, nem bebeu água, e escreveu nas
tábuas as palavras do concerto, os dez mandamentos” (Êxodo 34.28). Não há
registro de que fora o Senhor quem ordenara tal abstinência, porém Moisés o fez
por livre e espontânea vontade. Em todo o Antigo Testamento, a única vez que
Deus ordena o jejum é no Dia da Expiação, o Yom Kipur, a celebração feita
anualmente na antiga aliança: “E isto vos será por estatuto perpétuo: no sétimo
mês, aos dez do mês, afligireis a vossa alma e nenhuma obra fareis, nem o
natural nem o estrangeiro que peregrina entre vós” (Levíticos 16.29). Naquele
dia, o sumo sacerdote entrava no lugar santíssimo para fazer expiação nacional pelos
pecados. No texto, a expressão “afligireis a vossa alma” significa jejuar.
Os demais jejuns estabelecidos ao longo da história
bíblica
Depois da captura de Jerusalém pelos babilônios, foi estabelecido
um jejum anual como memorial desse triste evento (Jeremias 52.6,7). Outro jejum
prescrito foi para lembrar o incêndio do Templo de Jerusalém: “E, no quinto mês,
no sétimo dia do mês (este era o ano décimo nono de Nabucodonosor, rei de Babilônia),
veio Nebuzaradã, capitão da guarda, servo do rei de Babilônia, a Jerusalém. E
queimou a Casa do Senhor...” (2 Reis 25.8,9). Conforme Zacarias 7.1-3 e 8.19,
muitos outros jejuns foram estabelecidos na rotina religiosa dos judeus no
período do exílio. Não esqueçamos a abstinência estabelecida em memória do
jejum de Ester e da vitória sobre os projetos do ímpio Hamã: “Vai, e ajunta
todos os judeus que se acharem em Susã, e jejuai por mim, e não comais nem bebais
por três dias, nem de dia nem de noite...” (Ester 4.16).
O jejum durante as adversidades da vida
Como vimos anteriormente, o único jejum ordenado por Deus
foi para o Dia da Expiação. Todavia, os servos de Deus, desde a Antiguidade,
foram inspirados a jejuar em tempos de crises pessoais e coletivas. Ainda nos
dias dos juízes, já era comum a prática do jejum no meio ao povo de Deus, a
exemplo de Ana, a mãe de Samuel: “E assim o fazia ele de ano em ano; quando ela
subia à Casa do SENHOR, assim a outra a irritava; pelo que chorava e não comia”
(1 Samuel 1.7). Nos dias do profeta Samuel, o povo estava pesaroso pelos seus
pecados e houve um jejum coletivo: “E congregaram-se em Mispa..., e jejuaram
aquele dia, e disseram ali: Pecamos contra o Senhor” (1 Samuel 7.6). Jônatas jejuou
de tristeza pela penosa situação de Davi ante seu pai. “Pelo que Jônatas, todo encolerizado,
se levantou da mesa e, no segundo dia da lua nova, não comeu pão; porque se
magoava por causa de Davi, pois seu pai o tinha maltratado” (1 Samuel 20.34). Os
israelitas jejuaram de tristeza pela trágica morte de Saul, seu rei, “e tomaram
os seus ossos, e os sepultaram debaixo de um arvoredo, em Jabes, e jejuaram sete
dias” (1 Samuel 31.13). Davi também jejuou ao receber a notícia da morte de
Saul: “E prantearam, e choraram, e jejuaram até a tarde por Saul, e por
Jônatas, seu filho, e pelo povo do SENHOR, e pela casa de Israel, porque
tinham caído à espada” (2 Samuel 1.12).
Criou-se também o costume de jejuar sob ameaças do juízo
divino por causa dos pecados cometidos, a exemplo de Davi: “E buscou Davi a
Deus pela criança; e jejuou Davi...” (2 Samuel 12.16). Outro exemplo é o do rei
Acabe: “Sucedeu, pois, que Acabe, ouvindo estas palavras, rasgou as suas
vestes, e cobriu a sua carne de pano de saco, e jejuou...” (1 Reis 21.27). Esdras,
o sacerdote e escriba, jejuou em sua tristeza por causa dos pecados de Judá na
volta do cativeiro babilônico: “E Esdras se levantou de diante da Casa de Deus,
e entrou na câmara de Jeoanã, filho de Eliasibe, e, vindo lá, pão não comeu, e
água não bebeu, porque estava angustiado pela transgressão dos do cativeiro” (Esdras
10.6). Lendo os salmos, é comum observar que os salmistas jejuavam em seus
momentos de oração e aflição: “...humilhava a minha alma com o jejum, e a minha
oração voltava para o meu seio” (Salmos 35.13); “Chorei, e castiguei com jejum
a minha alma, mas até isto se me tornou em afrontas” (Salmos 69.10); “De
jejuar, estão enfraquecidos os meus joelhos, e a minha carne emagrece” (Salmos
109.24).
O jejum no judaísmo tardio
Quando nosso Senhor Jesus Cristo encarnou, encontrou a prática
do jejum em uma forma complexa e deturpada. Os fariseus jejuavam duas vezes por
semana: “Jejuo duas vezes na semana e dou os dízimos de tudo quanto possuo” (Lucas
18.12). A história nos relata que esses jejuns ocorriam nas segundas e quintas-feiras
de cada semana, além do dia do jejum nacional. O motivo é que criam que Moisés
subiu o monte pela segunda vez em uma segunda-feira e que desceu numa quinta-feira.
Além do mais, faziam grande alarde de sua piedade, demonstrando a todos que estavam
jejuando, o que nosso Senhor combateu veementemente: “E, quando jejuardes, não
vos mostreis contristados como os hipócritas, porque desfiguram o rosto, para
que aos homens pareça que jejuam. Em verdade vos digo que já receberam o seu galardão.
Porém tu, quando jejuares, unge a cabeça e lava o rosto, para não pareceres aos
homens que jejuas, mas sim a teu Pai, que está oculto; e teu Pai, que vê o que
está oculto, te recompensará” (Mateus 6.16-18).
Antes disso, os profetas do Antigo Testamento já repreendiam
os judeus pela prática de jejuns que nada produziam espiritualmente. “Eis que,
para contendas e debates, jejuais e para dardes punhadas impiamente; não
jejueis como hoje, para fazer ouvir a vossa voz no alto” (Isaías 58.4). Desde
tempos antigos, alguns perverteram essa prática piedosa em uma manobra espiritual
para manipular a divindade, para que esta atendesse aos caprichos do adorador.
Jezabel, a ímpia rainha consorte do rei Acabe, antes de matar o inocente
Nabote, mandou proclamar um jejum. “E escreveu nas cartas, dizendo: Apregoai um
jejum e ponde Nabote acima do povo” (1 Reis 21.9). Também 40 judeus fizeram um
propósito de jejum contra a vida do apóstolo Paulo. “Quando já era dia, alguns
dos judeus fizeram uma conspiração e juraram dizendo que não comeriam nem beberiam
enquanto não matassem a Paulo. E eram mais de quarenta os que fizeram esta
conjuração” (Atos 23.12,13). Jejuar com o objetivo de causar o mal na vida de
alguém é uma verdadeira perversão do jejum.
As advertências dos profetas e do Senhor Jesus sobre a
perversão do jejum
Conforme vimos nos tópicos anteriores, o jejum como
ordenança divina só foi prescrito por Deus para dia do Yom Kipur, que era o dia
de confissão e arrependimento dos pecados. Todavia, ao longo dos séculos, o
povo de Deus achou conveniente fazer jejuns em outras ocasiões. Como tudo se
corrompe, essa prática piedosa e proveitosa foi deturpada, transformou-se em
aparência de piedade e sem eficácia: “...tendo aparência de piedade, mas
negando a eficácia dela. Destes afasta-te” (2 Timóteo 3.5). Os profetas e o
Senhor Jesus combateram não a prática do jejum, mas o desvirtuamento da mesma.
Isaías nos revela que jejuar por mero ritual é algo vão e que
melhor seria ser justo e caridoso com o próximo: “Seria este o jejum que eu
escolheria: que o homem um dia aflija a sua alma, que incline a cabeça como o
junco e estenda debaixo de si pano de saco grosseiro e cinza? chamarias tu a
isso jejum e dia aprazível ao Senhor? Porventura, não é este o jejum que
escolhi: que soltes as ligaduras da impiedade, que desfaças as ataduras do
jugo, e que deixes livres os quebrantados, e que despedaces todo o jugo? Porventura,
não é também que repartas o teu pão com o faminto e recolhas em casa os pobres
desterrados? E, vendo o nu, o cubras e não te escondas daquele que é da tua
carne? (Isaías 58.5-7). O profeta Zacarias corrobora as palavras de
Isaías: “Fala a todo o povo desta terra e aos sacerdotes, dizendo: Quando
jejuastes e pranteastes, no quinto e no sétimo mês, durante estes setenta anos,
jejuastes vós para mim, mesmo para mim? E a palavra do Senhor veio a Zacarias,
dizendo: Assim falou o Senhor dos Exércitos, dizendo: Executai juízo verdadeiro,
mostrai piedade e misericórdia cada um a seu irmão; e não oprimais a
viúva, nem o órfão, nem o estrangeiro, nem o pobre, nem intente o mal cada um
contra o seu irmão, no seu coração” (Zacarias 7.8-10).
Nosso glorioso Senhor, à semelhança dos antigos profetas, também
censurou a forma e objetivos escusos com que os fariseus de seus dias jejuavam,
não com o objetivo de quebrantar-se diante de Deus, mas com um espírito
exibicionista e hipócrita. Jesus combateu o mau uso do jejum, mas não o jejum
em si, pois disse aos Seus seguidores: “Quando jejuardes...” (Mateus 6.16). Também
lhes alertou que os dias do Seu ministério na terra eram semelhantes à noiva que desfruta da
companhia do noivo em uma festa de casamento, uma ocasião em que seria inviável
a prática do jejum. No entanto, durante o período da ausência do noivo, desde
Sua ascensão até a parousia, eles jejuariam: “E disse-lhes Jesus: Podem, porventura,
andar tristes os filhos das bodas, enquanto o esposo está com eles? Dias, porém,
virão em que lhes será tirado o esposo, e então jejuarão” (Mateus 9. 15). Não
devemos duvidar de que o Senhor advertiu Seus discípulos sobre a importância de
jejuar e orar para alcançar uma maior ligação com Deus e ter autoridade sobre
os poderes das trevas: “Mas esta casta de demônios não se expulsa senão pela
oração e pelo jejum” (Mateus 17.21).
A prática do jejum na igreja cristã
Apesar de não se constituir uma ordenança, como o batismo ou
a Ceia do Senhor, o jejum devocional sempre foi praticado pela Igreja Cristã.
Antes da escolha de líderes e ministros para a obra do Evangelho, era – e deve
ser – praxe na igreja: “E, servindo eles ao Senhor e jejuando, disse o Espírito
Santo: Apartai-me a Barnabé e a Saulo para a obra a que os tenho chamado. Então,
jejuando, e orando, e pondo sobre eles as mãos, os despediram” (Atos 13.2-3);
“havendo-lhes por comum consentimento eleito anciãos em cada igreja, orando com
jejuns, os encomendaram ao Senhor em quem haviam crido” (Atos 14.23).
O apóstolo dos gentios e os demais, jejuavam e oravam para, de
Deus, receberem forças no exercício do ministério cristão: “Nos açoites, nas
prisões, nos tumultos, nos trabalhos, nas vigílias, nos jejuns” (2 Coríntios 6.5).
Nas Escrituras neotestamentárias, observamos que, ao jejuarmos, nossos espíritos
se tornam mais sensíveis às experiências espirituais, desde que estas estejam
em harmonia com a Revelação contida nas Sagradas Escrituras. O centurião
Cornélio, ao jejuar, foi agraciado com a visita de um anjo de Deus, conforme Atos
10.30-31. Por inferência, entendemos que o apóstolo Pedro também estava em
jejum quando recebeu uma visão celestial, que lhe deu a instrução sobre a
abertura da porta da salvação para os gentios: “E, no dia seguinte, indo eles
seu caminho e estando já perto da cidade, subiu Pedro ao terraço para orar,
quase à hora sexta. E, tendo fome, quis comer; e, enquanto lhe preparavam,
sobreveio-lhe um arrebatamento de sentidos, e viu o céu aberto e que descia um vaso,
como se fosse um grande lençol atado pelas quatro pontas, vindo para a terra”
(Atos 10.9-11).
Tanto a Igreja Grega (Ortodoxa) como a Igreja Latina
(Católica Romana), a partir do 4º século, estabeleceram o jejum quaresmal para
os fiéis, que se inicia 40 dias antes da celebração da Páscoa. Esse período é
baseado no fato de que Moisés, Elias e Jesus jejuaram durante quarenta dias
para vencerem os poderes das trevas. Nesse tempo, toda a liturgia e leituras
bíblicas são um chamado à conversão e ao arrependimento. Nós, cristãos evangélicos,
considerando que essas práticas foram adotadas em um período tardio, depois do
encerramento do cânon do Novo Testamento, não adotamos tais rubricas litúrgicas.
O Senhor Jesus, a Palavra feita carne, não determinou datas para a prática do jejum,
simplesmente disse: “Quando jejuardes...” (Mateus 6.16). Deste modo, o crente
deve estabelecer, conforme a guia de Deus em seu íntimo, quando e como jejuar periodicamente.
Também os pastores de igrejas podem, sob a orientação divina e conforme a
necessidade do momento, convocar suas congregações para um período de jejum e
oração.
Os cristãos nunca perderam a prática do jejum. A Didaché, o documento
cristão possivelmente contemporâneo aos escritos do Novo Testamento, diz: “O jejum
deve ser feito na quarta-feira e no dia da preparação (sexta-feira), e não no
segundo e quinto dia, como os hipócritas”. Os hipócritas aqui referidos são os
fariseus, que jejuavam na segunda e na quinta-feira. Há divergências, mas a
maioria dos pesquisadores acredita que os cristãos adotaram como dias semanais
para jejuns a quarta-feira, por ser o dia em que Judas recebeu as moedas da
traição, e a sexta-feira, por ser o dia da paixão e morte do Senhor.
Conclusão
Nem nosso amado Senhor e nem Seus apóstolos estabeleceram
regras para a prática de jejum. Dessa forma, a quantidade de tempo e o modo,
com abstenção de água ou não, ficam a critério da possibilidade e do estado de
saúde de cada cristão. Podemos jejuar durante meio dia, um dia ou mais de um dia.
Também, à semelhança de Daniel, pode-se fazer o jejum com a abstinência de
coisas que são caras para nós: “Durante todo esse tempo, não havia comido nada
saboroso. Não tinha provado nenhuma carne e nenhum vinho e não tinha usado
nenhuma loção perfumada até passarem as três semanas” (Daniel 10.3 NVT). O apóstolo
Paulo também recomenda a abstinência sexual por um curto período como forma de
jejum (1 Coríntios 7.5).
O jejum não é essencial à salvação, mas a oração, a leitura
e escuta da exposição da Palavra, e a participação nas ordenanças do Evangelho (batismo
e Ceia do Senhor) são considerados “meios da graça”, ou seja, canais que conduzem
à operação da graça de Deus na vida do crente. Que o Senhor nos conceda o favor
de não esquecermos de buscar essas riquezas que Deus pôs à nossa disposição.
por José Orisvaldo Nunes de Lima
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