Espera-se do obreiro que, como parte essencial de sua missão, cuide de si mesmo diariamente, não desprezando as disciplinas espirituais, dentre as quais está a leitura bÃblica, indispensável para sua edificação
Escrevendo a Timóteo, o apóstolo Paulo faz recomendações pastorais da mais alta relevância, resumidas em 1 Timóteo 4.16 em dois conselhos principais: “Tem cuidado de ti mesmo e da doutrina; persevera nestas coisas; porque fazendo isto, te salvarás, tanto a ti mesmo como aos que te ouvem”. O estudo devocional, tema deste artigo, está inserido na primeira expressão paulina (“Tem cuidado de ti mesmo”). Mas o texto indica que, como lÃder espiritual, Timóteo tinha outro dever de igual importância, o “cuidado [...] da doutrina”. São dois deveres distintos, porém, interligados. O primeiro está para o segundo não apenas em condição de prioridade, mas também de dependência. O cuidar de si mesmo é prioritário e dele depende o cuidar de outros.
Isso nos lembra a instrução que sempre ouvimos nos aviões comerciais
antes da decolagem. Dentre as recomendações de segurança, os comissários de
bordo avisam que em caso de despressurização (perda de pressão da aeronave por defeito
ou dano) máscaras de oxigênio cairão automaticamente do compartimento acima dos
assentos. O passageiro deve colocá-la primeiro em si mesmo, e somente depois em
quem estiver sob seus cuidados, geralmente criança. Como na recomendação paulina,
o aviso da tripulação contém dois deveres igualmente importantes. Nenhum deles deve
ser negligenciado. Contudo, um é prioritário e fundamental para que o outro seja
cumprido. Se não colocar em si mesmo a máscara de oxigênio, o passageiro sofre
tontura, perde a própria coordenação, tem dificuldade de raciocinar e pode
chegar a desmaiar; perder a consciência. Ou seja, não terá como ajudar a quem
dele dependa e ambos serão gravemente prejudicados.
É o que acontece ao pastor e ovelhas quando o estudo devocional
do lÃder é negligenciado. Para que permaneçam orientados, em condições
espirituais estáveis, os liderados dependem do cuidado pastoral fundamental, que
é a exposição da boa doutrina. Mas sem o estudo devocional, o próprio obreiro
perde sua estabilidade interior, sujeita-se a desorientações e pode chegar a nÃveis
graves de exaustão emocional (e até fÃsica), e perda da consciência espiritual.
Em casos assim, põe em risco sua própria salvação e a dos que estão sob sua
liderança. Em outras palavras, é isso que Paulo diz a Timóteo. Observa-se, portanto,
quão imprescindÃveis são as disciplinas espirituais, dentre as quais está o
estudo devocional!
O que é estudo devocional?
Conforme ensina o pastor Antonio Gilberto, existem pelo menos
cinco formas de estudo da BÃblia: devocional, doutrinário, auxiliar, de treinamento
e temático. O doutrinário diz respeito à preparação de ensino para a igreja, o ministério
ou a famÃlia. O auxiliar está ligado a pesquisas em áreas como geografia
bÃblica, cronologia bÃblica, antiguidades bÃblicas, lÃnguas da BÃblia etc. O estudo
bÃblico de treinamento é voltado para áreas de atividade do obreiro, como discipulado,
liderança e conhecimento da igreja local e sua estrutura. O temático tem a ver
com o aprofundamento em temas especÃficos, que podem ser doutrinas,
personagens, tipos bÃblicos, profecias etc. Mas, e o estudo devocional?
Quanto ao estudo devocional, na BÃblia com Comentários de Antônio
Gilberto (2021, p. 2172) são listadas seis áreas principais: vida cristã profunda,
rendição incondicional, vida cheia do EspÃrito, vida espiritual renovada, vida santificada
e maturidade cristã profunda. Pela natureza do estudo, entende-se que tais tÃtulos
não estão ligados a aspecto organizacional ou metodológico, mas aos resultados ou
benefÃcios da leitura bÃblica feita com o propósito devocional. Na lista preparada
pelo pastor Antonio Gilberto, a forma devocional de estudo da BÃblia é apresentada
como a mais importante. De fato, nenhum outro propósito de leitura e meditação nas
Escrituras deve merecer maior dedicação. Mas, o que vem a ser devoção?
Devoção é nossa busca pessoal por uma maior comunhão com Deus,
através de disciplinas ou práticas espirituais que nos permitam senti-lo e
percebê-lo em nossa realidade integral (espÃrito, alma e corpo). O estudo
bÃblico faz parte de um conjunto de disciplinas que tem essa finalidade
experiencial, como o jejum e a oração. É a dedicação contÃnua de momentos diários,
nos quais abrimos nosso coração para ouvir a Deus através de sua Palavra,
buscando compreensão e alimento espiritual para nossa alma.
Conforme Claudionor Corrêa de Andrade (1999, p. 120), devoção
pessoal, do latim devotionem, dedicação + personale, pessoal, é “Consagração individual
que tem por objetivo o estreitamento da comunhão entre a criatura e o Criador”.
Do grego sebasma, devoção é um ato de adoração, como aparece em Atos 17.23 (ARC,
NAA e NVI) e 2 Tessalonicenses 2.4. Ser devoto (gr. eulabes) signica ser
cuidadoso quanto à realização e armações de Deus; reverenciar a Deus; ser piedoso;
temente (Vine, p. 560).
O Novo Testamento usa a palavra “piedade” (eusebeia) como sinônimo
de devoção em muitas passagens. Conforme Vine (p. 875), o substantivo eusebeia,
“formado de eu, ‘bom’, e sebomai, ‘ser devoto’, “denota a devoção ou piedade
que, caracterizada por uma atitude voltada para Deus, faz o que lhe é extremamente
agradável”. Aparece com muita frequência nas EpÃstolas Pastorais, como no texto
bÃblico de abertura deste artigo (1 Timóteo 4.7,8). O apóstolo Pedro também usa
o substantivo “piedade” com o mesmo sentido de devoção ou dedicação pessoal a Deus
através de atitudes, nas quais se incluem as disciplinas espirituais (1 Pedro
1.6,7; 3.11).
O adjetivo eusebes significa “piedoso, devoto, religioso” e,
como acentua Vine et al (p. 876), “indica reverência manifestada em ações”, conforme
2 Pedro 2.9: “Assim, sabe o Senhor livrar da tentação os piedosos [...]”. (A
NVT traduz como “devotos”). Como exemplo de emprego prático e litúrgico da piedade
ou devoção como adjetivo, temos Simeão, “justo e piedoso” (Lucas 2.25, ARC, NAA,
NVI) e Cornélio, “piedoso e temente a Deus” (Atos 10.2). Do primeiro, diz-se que
esperava a consolação de Israel e “o EspÃrito Santo estava sobre ele”, sendo profundo
conhecer das Escrituras (Lucas 2.29-32). Do segundo, que “de contÃnuo orava a
Deus”.
Voltando a Timóteo
Ao examinar 1 Timóteo 4.16 vemos que o aspecto prático das disciplinas
espirituais recomendadas por Paulo está enfatizado na expressão “persevera
nestas coisas”. O caráter da responsabilidade pessoal é evidente: “porque
fazendo isto, te salvarás”. A disciplina espiritual consiste exatamente no
fazer constante (“persevera”), com consciência do dever (“fazendo isto”). O contexto
imediato não deixa dúvida de que Paulo estava se referindo ao duplo papel do ministro:
seu cuidado pessoal e o ensino da boa doutrina (1 Timóteo 4.6). A ênfase
paulina na importância da vida devocional se observa na recomendação do
exercÃcio espiritual – na piedade (eusebeia, devoção) (4.7) –, em comparação
com o exercÃcio corporal (4.8). Conforme Beacon (2020, p. 482), “O pensamento
de Paulo faz imediatamente um contraste entre a disciplina do corpo e a
disciplina da alma”.
O versÃculo 13 apresenta a prática da leitura, da exortação
e do ensino como deveres pastorais de caráter público. Mas o versÃculo 6 traz a
expressão “criado com as palavras da fé e da boa doutrina”, que, conforme
French L. Arrington e Roger Stronstad (2009, p. 645), transmite a ideia de leitura
das Escrituras e digestão interior, como um processo contÃnuo, ou seja, como
uma disciplina pessoal, de caráter privado. No versÃculo 15 Paulo refere-se a
esses deveres como atividades constantes e intensas: “ocupa-te nelas”. Do grego
meletaõ (ser diligente em), tem o sentido de realizar algo decorrente de um planejamento
(Vine, p. 829), o que guarda grande conexão com o fator disciplina. Esse
conselho apostólico é muito eloquente, indicando ser sábio ao lÃder cristão ter
o cuidado de separar tempo de qualidade em sua agenda diária para o que é mais
importante para sua saúde espiritual e de sua igreja, que são as práticas
devocionais, incluindo necessariamente o estudo da BÃblia. A Nova Versão
Transformadora (NVT) traduz meletaõ como “entregue-se inteiramente”, mesmo sentido
visto na Nova BÃblia Viva (NBV), na Almeida Século 21, na Tradução Brasileira
(TB) e na King James.
Importante salientar, ainda, como o ensino paulino põe o
estudo devocional em relação direta com o exercÃcio ministerial. É a vida de
meditação do obreiro, no secreto, refletindo diretamente em seu ministério público; em sua práxis
eclesial. Isso é verificado no resultado que Paulo esperava das disciplinas
espirituais de Timóteo, que incluÃam o estudo devocional: “para que o teu aproveitamento
seja manifesto a todos” (4.15b). Paulo utiliza o substantivo prokope, que tem o
sentido de “progresso”. Ainda que não exercitada com finalidade de exposição
pública – e este realmente não deve ser o propósito! –, a disciplina devocional
do obreiro reflete diretamente em seu serviço diário, especialmente na
exposição da doutrina. Seu desempenho ministerial melhora e passa a ser
reconhecido por todos.
O cuidado de Timóteo com as disciplinas espirituais resultaria
em evidente crescimento pessoal e ministerial, mas seu descuido representaria
desprezo ao próprio dom recebido de Deus, dada a sua essencialidade para a
preservação de sua capacitação para o exercÃcio do ministério. A leitura de
todo o capÃtulo 4 de Primeira a Timóteo permite-nos esta conclusão, com ênfase no
versÃculo 14, no qual Paulo refere-se ao desprezo do dom ministerial recebido
por seu discÃpulo, confirmado com a ordenação, “a imposição das mãos do
presbitério”.
Espera-se do obreiro que, como parte essencial de sua missão,
cuide de si mesmo diariamente, não desprezando as disciplinas espirituais,
dentre as quais está a leitura bÃblica, indispensável para sua edificação. A
combinação dos dois deveres é que produzem o resultado almejado: a salvação do
obreiro e dos que o ouvem. Como salienta D. A. Carson (2009, p. 1953), “A doutrina
correta sem a vida piedosa não tem valor algum, enquanto a vida piedosa sem a doutrina
correta é impossÃvel. [...] Se o ministro não se esforça em perseverar, é impossÃvel
que os outros sejam influenciados por ele”. O profissionalismo não funciona no
ministério eclesiástico.
Estudo devocional e oração
A oração está intimamente ligada ao propósito de se
aproximar de Deus e conhecê-lo mais através da Revelação Escritura, a BÃblia Sagrada.
São disciplinas espirituais interligadas e que se complementam. A compreensão espiritual
do que está revelado somente se dá mediante a ação do EspÃrito Santo, Autor e
Intérprete das Escrituras (2 Pedro 1.20,21). Jesus abriu o entendimento dos discÃpulos
para que compreendessem o que estava escrito (Lucas 24.45). Paulo orava para que
os crentes tivessem os olhos iluminados para entendimento para apreensão da
revelação (Efésios 1.15-18; 3.14-19). Por isso, o estudo devocional sempre deve
ser antecedido e sucedido de oração.
Como atitudes de adoração, as disciplinas espirituais devem brotar
de um coração contrito, desejoso de desfrutar a presença de Deus. Assim, não se
trata de simplesmente estabelecer regras rÃgidas, como faziam os ascetas e
monásticos medievais, confiando em recompensas divinas pelo cumprimento de uma
rigorosa rotina religiosa diária. Contudo, é razoável compreender que somente é
possÃvel falar em disciplina se houver o estabelecimento de um padrão mÃnimo a
ser seguido, e o emprego de dedicação para cumpri-lo. Assim, é importante
pensar em separar momentos especÃficos de nosso dia para o estudo de caráter
piedoso.
Embora o exemplo de Daniel esteja relacionado à oração, a
rotina do profeta nos serve de modelo também para a leitura bÃblica devocional.
Três vezes ao dia Daniel se dirigia ao quarto e orava, expressando seus
profundos sentimentos de gratidão e temor ao Deus de Israel (Daniel 6.10). Apesar
de toda a agitação do dia, é conveniente ao lÃder espiritual tirar tempo em
alguns momentos para falar com Deus e meditar em sua Palavra.
Uma sugestão é que isso seja feito em três ocasiões diárias:
na primeira hora, no decorrer do dia e à noite. São três momentos que o obreiro
pode tirar para ler uma porção das Escrituras com propósito devocional. A
leitura pode ser de textos aleatórios (porções escolhidas no momento), mas
também pode seguir um planejamento, como a leitura da BÃblia toda ou de livros
especÃficos. Como já afirmado, o propósito deste estudo não é a preparação de
sermões (embora inspirações possam surgir), mas alcançar as bênçãos mencionadas
pelo pastor Antonio Gilberto: vida cristã profunda, rendição incondicional,
vida cheia do EspÃrito, vida espiritual renovada, vida santificada e
maturidade cristã profunda.
Isso faz um enorme bem para a vida do obreiro, sua famÃlia,
seu ministério, sua igreja e a todos quantos ele, pela graça de Deus, puder
alcançar. Isso gera autenticidade. A Palavra de Deus passa a fluir de seu interior
(Colossenses 3.16). Ensinos e pregações tornam-se mais cheios de graça. A
revelação bÃblica fica mais clara na mente, aquecendo o coração e dando mais
autoridade e poder na palavra.
Estudo e intimidade
O estudo bÃblico devocional é um encontro Ãntimo do crente com
a Palavra de Deus e com o Deus da Palavra, tendo a BÃblia como única e suficiente
revelação escrita; inspirada, inerrante, infalÃvel e completa. É um tempo que
reservamos para receber mais da vida de Deus em nosso interior, alimentando-nos
da Palavra e do EspÃrito; fortalecendo-nos para a jornada cristã. Conquanto sejam
importantes, outros momentos de estudo não o substituem, em função do propósito,
do desejo ardente de desfrutar a presença de Deus por amor a Ele. Sem outras
intenções.
Não é um estudo sistemático, acadêmico ou cientÃfico, mas a
expressão da alma anelante pelo alimento divino cotidiano. Como a criança
recém-nascida, que deseja de coração o leite espiritual puro, indispensável para
o seu crescimento (1 Pedro 2.2, NVI). (Por isso, é recomendável que no momento
devocional seja feita a leitura do texto bÃblico, evitando-se comentários e os muitos
devocionais prontos, tão popularizados atualmente no mercado. Conquanto possam ser
lidos, pois tem seu valor, é fundamental que haja um tempo especÃfico e
exclusivo para as Escrituras, a Palavra de Deus, sem mediações).
Conclusão
Em tempos de tanta agitação, é preciso livrar-se do excesso de
informações; da contaminante infoxificação. Libertar-se de vÃcios eletrônicos. Fugir
da arena de debates. Fechar as portas para frivolidades e banalidades e desenvolver
disciplinas espirituais saudáveis, como a reserva de tempo para leituras
diárias da BÃblia, fazendo dela nossa meditação de dia e de noite (Salmos 1.2;
119.97). Nesses momentos sublimes o EspÃrito Santo fala profundamente ao nosso
coração e nos ensina imutáveis e profundas verdades espirituais, as quais Ele
nos faz lembrar sempre que delas precisamos, dando-nos conforto pessoal e a
palavra certa àqueles que nos ouvem em cada ocasião (João 14.26).
Somos passageiros em um mundo danificado, corrompido pelo pecado.
Precisamos diariamente respirar o ar que vem de cima, que vem de Deus, para
termos condições de auxiliar àqueles que o Senhor nos confiou, e que dependem desse
mesmo oxigênio celestial, tão vital para a alma.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Claudionor Corrêa de. Dicionário Teológico. 1. ed.
Rio de Janeiro: CPAD, 1998.
ARRINGTON, French L. & STRONSTAD, Roger. Comentário BÃblico Pentecostal.
Novo Testamento. Volume 2. Romanos – Apocalipse. 4.ed. Rio de Janeiro:
CPAD, 2009.
CARSON, D. A. et al. Comentário BÃblia Vida Nova. Sªo Paulo: Vida Nova, 2009.
GILBERTO, Antonio. BÃblia com Comentário de Antonio Gilberto. 1. ed. Rio de
Janeiro: CPAD, 2021.
GOULD, J. Gleen. Comentário BÃblico Beacon. Vol. 9. Gálatas a Filemon. 6ª
impressªo. Rio de Janeiro: CPAD,2020.
VINE, W. E., et al. Dicionário Vine. Rio de Janeiro: CPAD, 2003.
por Silas Rosalino de Queiroz
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