Shlomo ben Ytzhak, mais conhecido como Rashi, rabino azquenazi e o mais importante dentre os comentaristas da Torah, tendo vivido no século XI e visto o povo judeu sofrer as perseguições empreendidas pelas cruzadas, escreveu, referindo-se a Gênesis 47.29: “A bondade demonstrada aos mortos é a bondade verdadeira, pois [nesse caso] não se espera retribuição”. Suas palavras lembram-nos que, a despeito de não podermos esperar qualquer tipo de favor, não estamos isentos de prestarmos cuidado respeitoso e digno à queles que faleceram. A obrigação é tão séria que, apesar das prescrições contidas em LevÃtico 21.11, que desobrigam um sumo sacerdote de entrar em contato com um morto, mesmo sendo seu parente, no caso de um lÃder religioso encontrar um cadáver em sua caminhada deve considerar-se responsável por cuidar do enterro do desconhecido. Maimônides, na Mishneh Torah, orienta sobre o comportamento devido em suas Leis do Luto, reforçando o ato que, na tradição judaica é conhecido como chesed shel emet, ou seja, um verdadeiro ato de bondade.
A qualidade a qual nos referimos foi expressa por um certo Yosef,
de Ramatayim, mais conhecido como José de Arimateia; membro do Sanhedrim, usou
de ousadia perante as autoridades romanas para requerer o corpo de Jesus, logo
após Sua morte. A situação exigia urgência, afinal, era a véspera de um Shabat haGadol,
um sábado grande, segundo nos relata o evangelista João, o que nos conduz a uma
quinta-feira, véspera de sábado (o fato não deve estranhar os estudiosos das
leis, pois o animal da expiação jamais poderia ser morto numa sexta, apenas
numa terça ou numa quinta-feira – mentiras históricas alimentadas pela tradição
católico-romana têm levado muitos judeus a se afastarem da fé em Jesus, desacreditando-o
como Messias de Israel). A preparação para o Shabat estava em curso e logo viria
o entardecer.
José requereu o corpo. Morto, ferido, sujo, manchado, não importava,
pois tratava-se do corpo do Mestre a quem ele mesmo recorreu, disfarçado pelas
sombras trazidas pelas noites em que inclinou ouvidos atentos aos ensinos
daquele jovem e impactante rabi. A ousadia demonstrada por José estava
diretamente ligada à importância que atribuiu ao corpo. Requerer das mesmas
forças dominantes que executaram o juÃzo e a condenação, ir, fazer descer o
corpo, tomar, lavar, ungir, cobrir, para, finalmente, guardar num sepulcro
novo, fazendo a humÃlima rocha receber e ocultar a Rocha dos Séculos, exigiram toda
a coragem daquele já agora declarado discÃpulo.
A ousadia de nosso irmão José deve nos servir de exemplo
para semelhante atitude diante não do corpo morto do Senhor, mas de Seu corpo
vivo, a Igreja, para corajosas tratativas em requerer, diante dos poderes,
tronos e governos, aqueles que se achegaram à cruz e, agora, apresentam-se necessitados
de serem lavados pela Palavra, ungidos com o óleo do EspÃrito, cobertos pela
Justiça do alto, conduzidos e guardados ao abrigo da Rocha, onde devem permanecer,
mesmo depois de mortos, a aguardar a prometida ressurreição, da qual, no Senhor
Jesus, Deus Pai operou as primÃcias. Enquanto muitos desprezam o corpo pelos
cuidados que ele requer, há aqueles que ainda dirão de seu desejo em servir ao
corpo de Cristo, para tal empenhando forças, recursos e reputação, conscientes
de que pouquÃssimo tempo resta, até que se cumpra o futuro glorioso para o qual
está reservado. Até lá ainda há tempo para seguir o ministério de José de
Arimateia a serviço do Corpo.
A atitude desse homem de Ramatayim pode ser justificada pelo
fato de ser judeu e o respeito estar impregnado em sua tradição. O problema que
tal justificativa levanta é que a Jerusalém de seus dias estava repleta de judeus
e, que se saiba, apenas ele e Nicodemus, provavelmente liderando alguns outros,
atreveram-se a lutar por um morto, arriscando suas próprias vidas. Segundo uma
tradição, depois do episódio, José de Arimateia foi perseguido e preso como
parte dos ‘revoltosos’ seguidores do Mestre. Não podemos afirmar, mas é bem
possÃvel que todos os envolvidos tenham sofrido consequências por sua participação
no sepultamento.
Conhecer um povo e suas tradições abre caminho para uma compreensão
mais abrangente, mesmo de fatos atuais. Uma pesquisa da BBC News, feita pelo BBC
Verify, seu serviço de checagem, em 15 de janeiro último avaliou que, das 251
pessoas feitas reféns no atentado de 7 de outubro, 94 ainda estariam em Gaza,
sendo que, provavelmente, 60 estariam vivos e 34 estariam mortos. A contagem já
teria levado em consideração as mortes de Youssef Ziyadne e Han, pai e filho,
cujos corpos foram resgatados em um túnel subterrâneo perto da cidade de Rafah.
A pesquisa, obviamente, não incluiu as trocas posteriores. Foi em 15 de janeiro
que se estabeleceram os termos de um cessar-fogo temporário, o segundo após o
cessar-fogo ocorrido entre 27 e 30 de novembro de 2023, quando 109 pessoas
foram libertadas por motivos humanitários. As Forças de Defesa de Israel resgataram
oito reféns vivos e 40 restos mortais. Outros três reféns foram mortos
incidentalmente pelas IDF em 15 de dezembro de 2023. O atual cessar-fogo prevê
a troca de 33 reféns israelenses por centenas de prisioneiros, muitos deles
envolvidos em ataques suicidas e ações que mataram dezenas de israelenses
durante a segunda intifada, no ano 2000, ou no ataque do dia 7 de outubro. O
acordo ainda estabelece a retirada das forças militares de Israel da região de
Gaza, a formação de uma zona-tampão para facilitar o recebimento de ajuda em
alimentos, combustÃvel e medicamentos e o retorno controlado de cerca de 2
milhões de deslocados para suas casas ou para o que restou delas.
Além da persistente dúvida sobre o cumprimento dos termos do
acordo, permanece para Israel a dúvida sobre o estado dos reféns, preocupação
que somente aumenta, especialmente após a soltura dos últimos reféns pelo
Hamas, visivelmente magros e relatando terem passado por privações e torturas.
A Hostages and Missing Family Forum, organização que representa a maioria das
famÃlias dos reféns prossegue, junto a utros organismos, requerendo informações
sobre a real situação daqueles que ainda não retornaram. O Comitê Internacional
da Cruz Vermelha manifestou em comunicado oficial a “necessidade urgente” de
“ser acesso aos reféns”. Seu porta-voz declarou estar muito preocupado com a atual
situação.
Mesmo escapando à compreensão de alguns, Israel prosseguirá
lutando pelo retorno de seus cidadãos – vivos ou mortos. Cada corpo resgatado,
ainda que confirme uma expectativa dolorosa, ao mesmo tempo serve de consolo a
uma famÃlia, pela oportunidade de vivenciar o desfecho de uma história,
sepultar dignamente seu morto e clamar pela cobertura da justiça. Vivos ou
mortos, eles testemunharão acerca daquilo que passaram e serão denunciantes de
seus algozes. Israel quer os vivos e Israel quer os mortos. Trata-se de uma questão
de valores. Por causa desses valores ancestrais, um dia, alguns ousados
requereram um corpo, sepultaram e prepararam o cenário para o evento seguinte –
a ressurreição. Cremos que o poder que um dia ressuscitou um corpo é o mesmo
que operará a ressurreição espiritual de uma nação. Oremos por Israel. Oremos
pelos vivos, árabes ou judeus. Oremos para que o Senhor console as famÃlias
daqueles que partiram, abraçando-as com Sua bondade e misericórdia.
por Sara Alice Cavalcanti
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