A Igreja e suas necessidades terrenas de organização

A Igreja e suas necessidades terrenas de organização


A igreja, como organização, é pessoa jurídica de feição própria e específica, que deve desfrutar de liberdade de criação, organização, estruturação interna e funcionamento

Jesus percorria cidades da Galileia, Samaria e Judeia junto com Seus discípulos e uma multidão que os acompanhava. Era sua igreja em um sentido prático e imediato – e um embrião da Igreja que seria por Ele edificada (Mateus 16.18). Aquele ajuntamento de pessoas não estava isento do cumprimento das leis da época, o Direito Romano, vigente nas terras de Israel. Diante das ardentes divergências políticas na questão dos impostos, os fariseus planejaram criar uma crise entre Jesus e o poder governante – ou um conflito entre Ele e o povo. Para tanto, enviaram seus discípulos para lhe perguntar: “É lícito pagar o tributo a César ou não”? (Mateus 22.17).

O texto nos mostra que Jesus, conhecendo a malícia dos seus inquiridores, pediu a eles que lhe mostrassem uma moeda e lhes respondeu, perguntando: “De quem é esta efígie e sua inscrição?”. A resposta continha a solução da controvérsia: “De César”. Jesus profere, então, a célebre sentença: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus, o que é de Deus” (Mateus 22.21). Esta passagem bíblica continua sendo um verdadeiro texto áureo para o estudo do relacionamento entre os seguidores de Jesus e o Estado, seja na vida individual (pessoa física), seja no coletivo cristão local (a igreja organizada como pessoa jurídica).

Enquanto cumpre seu papel espiritual na terra – de comunhão, adoração, proclamação e ensino –, a Igreja precisa organizar-se e funcionar de acordo com as leis terrenas, as quais, aliás, mudam conforme o lugar. Países e Estados – e até Municípios, em alguns casos – possuem regras distintas para as organizações religiosas, as quais devem ser seguidas (Romanos 13.1), se não ultrapassarem o limite identi­ficado e observado desde os tempos apostólicos: a vontade Deus, pois “mais importa obedecer a Deus do que aos homens” (Atos 5.29).

Pessoa jurídica

Personalidade jurídica é a capacidade de ser titular de direitos e deveres. São sujeitos com tal aptidão as pessoas físicas e as pessoas jurídicas. As pessoas físicas ou naturais são todos os seres humanos, desde o nascimento com vida – embora a lei assegure direitos também ao nascituro (feto ou embrião), desde a concepção (o início do processo de gestação). Já as pessoas jurídicas se dividem em (1) pessoas jurídicas de direito público e (2) pessoas jurídicas de direito privado. Sem descer a detalhes, consideremos, apenas, que as primeiras são entes públicos, tais como a União, os Estados e os Municípios, enquanto as segundas são entes privados: associações, sociedades (empresas), fundações, organizações religiosas e partidos políticos. O Código Civil Brasileiro trata desse tema no Livro I de sua Parte Geral, especialmente nos artigos 1”, 2”, 40, 41 e 44.

As igrejas são pessoas jurídicas de direito privado, enquadradas no Código Civil vigente (de 2002) como “organizações religiosas”. Por um equívoco legislativo, foram inicialmente tratadas como “associações”. Mas a alteração promovida pela Lei n” 10.825/2003 devolveu-lhes o conceito correto, mantendo a liberdade de criação, organização, estruturação interna e funcionamento, como dispõe o § 1” do art. 44 do código já citado. Antes dessa correção, houve grande e polvorosa preocupação, inclusive com a alteração de estatutos de centenas (talvez milhares) de igrejas. A modifi­cação da Lei Civil atendeu ao que determina a Constituição Federal: que o Estado não embarace o funcionamento dos cultos religiosos e igrejas (artigo 19, inciso I).

Conclui-se, portanto, que a igreja é uma pessoa jurídica de feição própria e específi­ca, que deve desfrutar de liberdade de criação, organização, estruturação interna e funcionamento, princípios que devem estar contemplados em todo o ordenamento jurídico que lhe atinge. Malgrado a existência de regras que nem sempre observam a rigor o postulado constitucional, este artigo visa apresentar, de forma sintética e simples, as necessidades terrenas de organização da igreja, que começa por sua constituição e registro como pessoa jurídica.

Atos constitutivos e Regimento Interno

Como toda a pessoa que nasce e precisa ser registrada, as igrejas locais necessitam passar pelo mesmo processo. Isso é feito a partir da lavratura de uma ata, na qual os constituintes da igreja declaram sua união de vontade e propósito, dando um nome à organização religiosa nascente e indicando seus dirigentes, além de informar sua sede, sua localização física. Esses documentos originários são levados ao Cartório de Registro das Pessoas Jurídicas para a devida anotação registral. Feito isso, poderá a igreja solicitar seu cadastro em outros órgãos estatais, como a Receita Federal do Brasil, responsável pelo Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ).

Ainda sobre o aspecto constitutivo, é preciso considerar a necessidade que a igreja tem de, como organização, estabelecer suas próprias regras de funcionamento. Algumas igrejas se recusam a essa formalização, embora isso seja necessário até mesmo para garantir a sua autonomia organizacional, como prevê o texto constitucional. É salutar, contudo, que não se exagere na criação de regras, pois, como corpo espiritual, a Igreja possui a Bíblia como sua regra de fé e prática. O Estatuto Social deve ser econômico, identi­ficando a natureza da organização, suas ­finalidades, seus membros e respectivas obrigações, seu governo e o funcionamento de seus órgãos.

Além do Estatuto Social, que é obrigatório (§1” do artigo 44 do Código Civil), a igreja tem a faculdade de instituir um Regimento Interno (RI), detalhando o funcionamento da instituição. Como o próprio nome diz, seu caráter é interno. É um instrumento complementar ao estatuto, com o objetivo de tratar, com mais detalhes, de atribuições, funções, procedimentos, atividades e regras gerais de cumprimento interna corporis. Algumas igrejas usam o RI para prever um grande feixe de normas, muitas delas relativas a usos e costumes. É preciso refletir acerca disso, especialmente diante de características regionais e temporais de muitas dessas práticas. Ademais, se o poder transformador do Evangelho não houver alcançado o coração dos conversos, não será um Regimento Interno que o fará.

Há certos temas a respeito dos quais não pode haver lacunas ou dubiedades nos documentos de organização da igreja, como é o caso da tão falada identidade de gênero. Em uma “era de tantos direitos”, como diria Norberto Bobbio, é prudente que a igreja deixe bem claro os limites de tolerância, prevenindo-se quanto a eventuais extrapolações e judicializações em torno de pautas tão controvertidas atualmente. Contudo, mais uma vez, é importante apontar para o cuidado com o excesso de regras. É mais razoável que haja, no estatuto, tudo o que for fundamental quanto a direitos e deveres. Dar à igreja ares de muito legalismo e complexidade jurídica não é razoável.

Normas públicas de funcionamento

Mesmo tendo as Escrituras Sagradas como regra de fé e prática, e desfrutando, perante o Estado, de autonomia para deliberar sobre o seu funcionamento, por meio de regras endógenas (Estatuto e RI), a Igreja, como organização, está sujeita a normas públicas relativas a questões tangíveis, como a tributária, resolvida por Jesus – dar a César o que é de César –, as quais não podem ser desprezadas. Também tangível é a existência de um templo, que deve ser construído seguindo normas técnicas de engenharia e urbanismo, e observar outras posturas comuns à localidade, como o zoneamento.

Ainda nesse ponto podem ser acrescentadas questões ligadas à acústica e normas de segurança, que são fi­scalizadas pelo Corpo de Bombeiros. Há que se observar também as regras relativas ao direito da personalidade, contidas na Lei n” 13.709/2018, a LGPD, que dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, e tem, dentre outros fundamentos, o respeito à privacidade e à inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem. Em suma, a liberdade religiosa prevista na Constituição Federal é assegurada “na forma da lei”, conforme prevê o inciso VI do artigo 5” do Texto Magno. É preciso ter equilíbrio e não confundir nosso dever de ter uma conduta correta perante o mundo (Mateus 5.20) com perseguições movidas por ódio religioso ou represálias políticas, as quais também ocorrem e, quando ocorrerem, devem ser tratadas com sabedoria, sob a direção de Deus.

Corpo dirigente, previdência e imposto de renda

Para muito além do prédio, a igreja é, acima de tudo, um grupo de pessoas que comungam a mesma fé. A parte física é apenas a estrutura necessária para as reuniões, cultos e outros serviços da comunidade local. Em sua organização, essa igreja precisa de um corpo dirigente. Os sistemas de governos eclesiásticos variam de acordo com a tradição da denominação. Os principais são: congregacional, presbiteriano, episcopal e representativo. As Assembleias de Deus instituíram um modelo organizacional misto (episcopal e congregacional). Em termos de estruturação diretiva, o mais comum é que haja um corpo governante formado por presidente, vice-presidente, 1” e 2” secretários e 1” e 2” tesoureiros, e que funcione fi­scalizado por um Conselho Fiscal. Tanto a Diretoria quanto o Órgão de Fiscalização são eleitos pela Assembleia Geral, que é o conjunto de obreiros e membros locais. Não há, no âmbito público – e nem pode haver –, uma lei que estabeleça como deve ser formada essa estrutura. O que se exige é que exista e exerça a representação da organização religiosa perante o Estado e suas instituições. Todo corpo precisa de uma cabeça.

Os dirigentes não são remunerados pelo exercício de suas funções estatutárias. Contudo, se ministros do Evangelho (o­ficiais do culto), poderão receber a remuneração que lhes é própria, denominada côngrua ou prebenda pastoral. Assim, o ministro de con­fissão religiosa se torna um segurado obrigatório da Previdência Social, como contribuinte individual, como prevê o inciso V, alínea “c”, do artigo 11 da Lei n” 8.213/1991, ressalvada a hipótese de já ter fi­liação previdenciária em decorrência de outro vínculo. A igreja, contudo, não será obrigada a reter ou recolher a contribuição previdenciária correspondente, posto que “não se considera como remuneração direta ou indireta, para os efeitos [da lei de custeio da Previdência] os valores despendidos pelas entidades religiosas [...] com ministros de confissão religiosa [...] em face do seu mister religioso ou para sua subsistência desde que fornecidos em condições que independam da natureza e da quantidade do trabalho executado” (§ 13 do inciso III do art. 22 da Lei n” Lei n” 8.212/1991, a Lei do Plano de Custeio da Previdência Social).

O ministro de con­fissão religiosa não mantém vínculo empregatício com a igreja. Exerce seu ofício por vocação divina, não preenchendo os requisitos que configuram a relação empregatícia, estatuídos pelo artigo 3” da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT): pessoalidade, não eventualidade, subordinação e onerosidade. Mas quanto ao Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF), segue-se a regra geral, que é o dever de retenção na fonte e recolhimento à Receita Federal do Brasil, pela igreja, do percentual correspondente ao valor sujeito à tributação, pena de incursão no crime de sonegação ­fiscal, previsto na Lei n” 4.729/1965. Para tanto, é preciso observar a tabela de tributação vigente, que prevê as faixas remuneratórias e suas respectivas alíquotas. Os que recebem valores superiores à faixa de isenção ­ficam sujeitos a alíquotas que vão de 7,5% a 27,5%. Esse leão não perdoa.

Obrigações trabalhistas e previdenciárias

Quanto aos empregados em geral – todos aqueles que prestam, para a igreja, serviços distintos do culto, mediante vínculo empregatício –, é preciso que haja o devido registro em Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), que agora é digital. A estes são assegurados os direitos comuns a todo e qualquer trabalhador celetista: regularidade de salário, FGTS, INSS, férias, décimo-terceiro etc. Geralmente, são agentes ou auxiliares administrativos, agentes de limpeza e de segurança, operários da construção civil, motoristas etc. O vínculo empregatício se dá quando preenchidos os requisitos previstos no já mencionado artigo 3” da CLT. O serviço voluntário não está sujeito a registro, principalmente por não haver contraprestação. O trabalhador eventual e o autônomo também não são abarcados pelas regras celetistas, seja o registro, sejam os direitos incidentes sobre a contraprestação, ante a ausência de habitualidade e subordinação.

Imunidade e outras questões tributárias

É importante examinar, ainda que suscintamente, no que consiste a imunidade tributária das igrejas. Um conceito corrente de imunidade é hipótese de não incidência tributária constitucionalmente qualifi­cada. Isso diz respeito a patrimônio, renda, serviços e entidades sobre os quais a Constituição Federal veda a instituição de impostos. Aliás, é importante destacar que a imunidade alcança somente impostos, conforme consta na alínea “b” do inciso VI do artigo 150 da Carta Magna, e não tributos no sentido amplo. O artigo 145 lista como tributos: impostos, taxas e contribuintes de melhoria. Outros dispositivos constitucionais tratam das contribuições especiais (sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse de categorias profi­ssionais ou econômicas) e do empréstimo compulsório. Tributo é gênero. Imposto é espécie.

Não há incidência de impostos sobre atividades ou patrimônios das entidades religiosas e dos templos de qualquer culto. Portanto, a igreja não paga IPVA (Imposto Sobre a Propriedade de Veículos Automotores), ISSQN (Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza), IPTU (Imposto Sobre a Propriedade Territorial Urbana) ou ITBI (Imposto Sobre a Transmissão de Bens Intervivos). Quanto ao IPTU, a imunidade alcança não apenas o templo, mas todas as suas dependências, inclusive a casa pastoral (se de propriedade da igreja). Julgando casos concretos, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que a imunidade atinge até mesmo imóveis locados ou vagos. O que não pode haver é desvio das finalidades essenciais da igreja, o que, se provado pelo ­fisco, afasta a imunidade. Quanto ao ICMS (Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), além da imunidade, sua incidência é alheia às atividades da igreja.

Obrigações contábeis

É entendimento consolidado que, embora desfrutem de imunidade tributária, as igrejas são obrigadas a cumprir obrigações acessórias de índole fi­scal, dentre as quais está a escrituração contábil. Isso está dito no artigo 178 do decreto n” 9.580/2018, que regulamenta a tributação, a ­fiscalização e a administração do Imposto de Renda. Contudo, é preciso dizer que, em um exame geral do ordenamento jurídico pátrio, há um certo vácuo legislativo quanto a tratar, de forma específi­ca, as obrigações acessórias ligadas aos templos de qualquer culto. Costuma-se, por vezes, invocar dispositivos genéricos ou, no máximo, que façam referência a instituições de educação ou de assistência social sem ­fins lucrativos, como se observa no artigo 12, § 2”, alínea “c” da Lei n” 9.532/1997.

De qualquer sorte, pode-se dizer que o simples fato de a igreja possuir obrigações ­fiscais ligadas às questões trabalhistas e previdenciárias às quais está vinculada, como já explicitado, faz com que tenha de se preocupar com uma série de providências administrativas que não dispensam, de forma alguma, as práticas contábeis correntes – digitais, em sua maioria. Assim, para dar conta de tantas tarefas burocráticas (apresentadas de forma singela e resumida neste artigo), é indispensável que a igreja conte com profi­ssionais da área contábil que conheçam as especificidades das organizações religiosas. É bom que esse conhecimento seja não apenas teórico, mas também prático. Isso é importante tanto para evitar prejuízos, pela omissão no cumprimento de normas, quanto para não engessar a igreja, com rigorismo excessivo e rotinas incompatíveis com o seu caráter espiritual, que deve permear e orientar toda a sua existência.

É preciso haver sabedoria, muita sensibilidade e cautela, para não tratar a igreja apenas como uma organização humana, pois ela é, acima de tudo, uma instituição divina. Nesse sentido, o papel da liderança espiritual é fundamental para que a igreja permaneça funcionando como um organismo vivo.

por Silas Rosalino de Queiroz

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