Em um mundo que rejeita todo e qualquer princípio universal, verdade objetiva ou obediência hierárquica, só há um caminho: solidificar ainda mais nossa cultura. As únicas coisas capazes de sustentar nossa estrutura são as bases sobre as quais estamos fundamentados. Por isso, em termos de discussão autoritativa, estabelecer verdades, revisitar conceitos e resgatar a relevância doutrinária são atitudes básicas, primárias e inadiáveis da Igreja no mundo pós-moderno. O próprio ato de falar sobre esse assunto já é um desafio, pois, na sociedade de hoje, não se concebe — em tempos multiculturais como este — qualquer possibilidade de haver “verdades universais” (conceitos que são tão comuns e abrangentes que não há como conceber a ideia de que existem pessoas que pensem o contrário).
Se você se sente perplexo por isso, devo lhe dizer: “Bem-vindo
à sociedade pós-moderna”. Neste contexto, o dever mais básico que temos de cumprir
é resgatar a supremacia da Palavra de Deus. Isso não significa que os crentes
devem comprar mais versões da Bíblia ou mesmo ouvir mais mensagens durante semana
(ainda que seja indispensável). Não se trata disso, pois em qualquer lugar que
se vá existe alguém falando de Deus. O que se requer é que haja uma atitude diferente
em nosso relacionamento com a Palavra: nossa motivação, nossa volição, nossa cognição,
enfim, todo o nosso ser precisa da influência do modus vivendi prescrito nas Escrituras
Sagradas.
E é justamente aqui que se encontra o desafio: estabelecer a
supremacia da Palavra na vida da igreja. É possível que, diante desse questionamento,
alguém talvez pense: “Mas, a Bíblia tem a primazia em nossa vida”. Em muitos lugares,
realmente tem, mas, de forma geral, ainda há falta dessa primazia. Qual tem
sido o tempo reservado para a exposição da Palavra nos cultos? Com qual frequência
nos contentamos com uma mensagem bíblica sem buscar algo que seja meramente
motivacional ou de natureza “auto-ajudadora”? Tal busca evidencia que a Bíblia,
para muitos cristãos, perdeu a suficiência. Aliás, como disse John McArthur,
“talvez a doutrina que mais esteja sob ataque na igreja de nossa geração seja a
suficiência das Escrituras”. O professor da Grace Community Church arremata sua
asseveração dizendo que “mesmo pessoas que proclamam a autoridade, a inspiração
e a infalibilidade das Escrituras, às vezes se negam a afirmar sua suficiência.
O resultado é virtualmente o mesmo que negar a autoridade bíblica, porque afasta
as pessoas da Bíblia, na busca de outra ‘verdade’”. E esta “outra verdade”, a qual
se refere McArthur, decididamente não é a verdade a qual Clemente se referiu, dizendo
que “toda verdade é a verdade de Deus” independentemente de quem tenha partido.
É a “verdade” criada a partir do ethos ou da visão particular de cada um. Infelizmente,
muitos, como escrevi há oito anos na extinta revista Pentecostes (CPAD), “estão
substituindo a Bíblia por caixinhas de promessas, disk-profecias, consultas pessoais
telefônicas ou via Internet aos gurus neopentecostais. Isso tudo é uma clarividência
do quanto perdemos nossa verdadeira identidade”.
Fundamentos
Muita gente acredita que básico é algo simples, quase sem valor,
e do qual se pode prescindir. Nada mais equivocado. Analise apenas um exemplo: Existem
milhares de modelos de automóveis, desde os mais populares até os mais luxuosos.
Mas, qual a função básica de um veículo automotor? Locomoção, obviamente. Imagine
se você adquirisse um carro hidramático que possui direção hidráulica, ar
condicionado, sistema de GPS e vários outros recursos que a tecnologia proporciona,
mas que não o transportasse, ou seja, não proporcionasse o básico. Você se
contentaria apenas com esses recursos? É óbvio que a resposta é um sonoro
“não”. Então, está muito claro: retire o aspecto básico de algo e logo você descobrirá
que as coisas perdem a razão de ser, pois, básico é tudo aquilo que é fundamental,
que faz parte da base.
Com esse entendimento, fica claro o porquê de o salmista chamar
atenção para o fato de que na “verdade, [...] os fundamentos se transtornam; que
pode fazer o justo?” (Salmos 11.3). Mesmo sabendo dos aspectos conjunturais do
texto bíblico citado, ele traz à baila uma questão crucial para o nosso tempo
pós-moderno: o perigo evidente que existe no fato de se abrir mão daquilo que é
básico, elementar e fundamental entre nós. Por exemplo, todo cristão sabe que o
postulado mais básico e elementar do evangelicalismo é que a Bíblia é a Palavra
de Deus. O que acontece se esse fundamento for transtornado, estremecido, retirado
ou desprezado? A resposta é óbvia.
Vejamos apenas três amostras de ataque a esse fundamento em
nossos dias:
1) O desprezo à autoridade da Bíblia – Às vezes, vemos crentes
que não consideram uma mensagem elaborada biblicamente como sendo da parte de
Deus. Para estes, só se acontecerem “movimentos” que satisfaçam seus caprichos,
anseios e expectativas a mensagem será recebida como sendo de Deus.
2) A adulteração da Bíblia ao transformá-la em um livro de autoajuda
– O descrédito em relação ao texto sagrado é tão grande, que agora a Bíblia foi
transformada — na boca de alguns — apenas em um livro motivacional, de autoajuda.
Para que a Bíblia seja utilizada dessa forma, ela é submetida ao pior tipo de
expediente manipulativo que se possa imaginar — a chamada eisegese. O processo é
mais ou menos como um engessamento, pois o pretenso orador se aproxima do texto
com os seus pressupostos e empresta uma conotação não pretendida pelo autor do
texto sagrado para que a mensagem venha a se coadunar com suas invencionices.
3) O não exercício do sacerdócio universal dos crentes – O resgate
desse postulado imprescindível da Reforma Protestante vem, de um tempo a esta parte,
sendo solapado por aqueles que mais deveriam amar, cuidar e defender a integridade
da mensagem bíblica. O terrorismo psicológico se instaura a partir do púlpito com
as ameaças de “pregadores” que vociferam: “Se você duvidar do que estou
dizendo, Deus pesará a mão sobre sua vida e sua família”. Essa é uma característica
paradoxal deste tempo presente, pois o que motivou um elogio do historiador e médico
Lucas em relação aos crentes bereanos (Atos 17.11) agora, estranhamente, provoca
aversão naqueles que se dizem porta-vozes de Deus.
A Bíblia é um livro que exerce influência em toda a maneira de
o ser humano viver, seja na esfera ou dimensão espiritual, seja no aspecto existencial.
O conteúdo bíblico não tem a finalidade de transformar os homens em anjos ou semideuses,
antes seu propósito é que estes sejam adequados ao modelo de homem perfeito:
Jesus Cristo de Nazaré (Efésios 4.12,13). Para isso, a mensagem não pode ser mutilada,
pois, ao ser interpretada de maneira incorreta, ela perde o seu efeito (Atos
8.26-40).
por César Moisés Carvalho
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