O perdão expedido por Deus faz o crente refletir como deve se comportar junto aos seus semelhantes
O perdão é um dos pilares do Evangelho de Cristo e um dos muitos frutos oriundos do amor. Sem o perdão, o mundo seria tomado de ressentimentos e vinganças infinitas a ponto de tornar impossível a convivência humana. Seria inimaginável e inabitável um mundo sem a prática do perdão. Não haveria futuro. Sem o perdão, as pessoas viveriam em constante estado de ressentimento umas contra as outras. Essa foi a forma do ser humano sobreviver após a sua expulsão do paraíso como consequência do pecado, restaurando o amor nos relacionamentos através do perdão. Os relacionamentos humanos ferem uns aos outros e a nós mesmos, na circularidade de ferir e ser ferido, por isso é preciso perdoar o outro, pedir perdão e perdoar-se.
O perdão de Deus como
base do perdão relacional
O profeta Oséias é um dos exemplos mais emblemáticos do Antigo
Testamento quanto ao perdão de Deus. Apesar das múltiplas transgressões de Gômer,
a esposa de Oséias, ele a amou profundamente, foi em busca dela, a acolheu, a
recebeu em casa e principalmente a perdoou de seus muitos adultérios, prostituições
e idolatrias.
O amor de Deus foi a base de Jesus para responder a Pedro quando
da pergunta de quantas vezes deveria perdoar um irmão e a resposta pedagógica foi
de quatrocentas e noventa vezes, mas necessariamente isso não significa um
limite. Em seguida, Jesus contou a parábola do servo que não queria perdoar a dívida
de cem moedas de prata do seu devedor, quando o seu rei havia acabado de lhe
perdoar a dívida de trezentas toneladas de prata. Jesus queria demonstrar que, se
Deus havia perdoado uma dívida tão vultosa de um ser humano, como esta mesma
pessoa não teria condições de perdoar as dívidas relacionais das pessoas que lhe
eram iguais as quais lhe deviam infinitamente menos do que aquilo que Deus lhe
havia perdoado? (Mateus 18.21-35).
Esta mesma lógica está presente na oração do Pai Nosso: “Perdoa-nos
as nossas dívidas, assim como nós também perdoamos aos nossos devedores” (Mateus
6.12). Ela foi salientada por Jesus quando afirmou que, se em oração você se lembrar
de uma ofensa, esta deve ser perdoada para que o Pai Celestial perdoe também o
penitente (Marcos 11.25,26). O perdão é fruto da graciosa obra de Cristo para com
aqueles que deixam-se presentear pela graça do perdão divino; assim, o perdão é
um sinergismo entre a obra de Cristo e a vontade humana. Vontade porque é preciso
racionalizar e compreender o perdão recebido e querer viver em paz para perdoar
alguém.
A vontade é auxiliada pela memória que lembra o fato
dolorido. Sem o auxílio da memória, não há o que perdoar, pois a ofensa pode
ser resignada de forma errônea e escondida para mais tarde brotar como somatização
de doença ou ainda como vingança. Somente com a memória da ofensa e a vontade
de perdoar, numa atitude ativada pela inteligência em acessar os recursos
necessários para a cura, é que se pode perdoar.
O ápice da capacidade de amar de Jesus ocorreu na cruz, ao tomar
a culpa do mundo inteiro, sendo inocente e orando ao Pai para que perdoasse seus
algozes que lhe torturaram e crucificaram (Lucas 23.34). Por isso, o perdão é ao
mesmo tempo uma realidade humana e uma realidade divina. Em Cristo o perdão se
efetivou em toda a sua plenitude, sendo Ele ao mesmo tempo verdadeiro Deus e verdadeiro
homem. Assim, o ofendido e o ofensor, vivendo em Cristo, decidem se reconciliar
por causa daquilo que Ele fez na cruz ao perdoar seus ofensores, não apenas os
ali presentes, mas toda a humanidade decaída (LAFFITTE, 1995, pp. 13 e 268).
O ato de perdoar é renúncia e doação, é a renúncia ao prazer
da vingança e da auto piedade do ressentimento. Enquanto não se perdoa se
aciona o círculo vicioso da maldade, na qual vai se tentar vingar a injustiça sofrida
de um para com o outro de forma infinita. Por meio do poder do perdão,
interrompe-se o mecanismo da vingança e da violência (HALÍK, 2016, p. 1606).
Obstáculos e
benefícios do perdão
As ofensas que exigem o perdão (LAFFITTE, 1999, pp. 36-40) podem
ser de ordem física, envolvendo os bens ou a corporalidade; podem ser ofensas
psicológicas ou afetivas, cujas maiores consequências são as dificuldades de
amar e de ser amado e as de falta de reconhecimento da reputação e do respeito,
que ferem a sensibilidade; podem ser ofensas intelectuais, geralmente ligadas à
mentira, ao engano, à manipulação e à violação ao direito de saber; podem ser ofensas
morais, que atingem a vontade de escolha de alguém, que inclinou o sujeito para
o mal, para a cumplicidade exigida, com a imposição pelo medo e a quebra ou esmagamento
da vontade; ou podem ser ofensas espirituais, que privam o ser humano do direito
ao bem espiritual, sendo caracterizadas pela recusa do ensino correto do
Evangelho, pela recusa da reconciliação, pela prática da simonia, pela
comercialização e o charlatanismo da fé e pelo abuso espiritual, corrupção de
crianças, incitamento à idolatria - ainda que simbólica - e ateísmo imposto.
A ofensa gera inicialmente sentimento de injustiça e
vilipêndio. O sentimento ferido tanto pode diminuir quanto se aquilatar. Caso
persista, cria a possibilidade do rancor, da ira, do ódio e da vingança. A
imaginação opera conjuntamente quando cria situações reais ou fictícias, tanto inventando
ou aumentando a ofensa, pois talvez o ofensor não quis dizer ou fazer aquilo, mas
a imaginação pode lhe atribuir um valor excessivo, aumentando ainda mais a ofensa.
Se o indivíduo ofendido for inseguro quanto a ser amado, ou teve problemas em
ser amado em sua infância ou juventude, essa dinâmica aumenta ainda mais. O
sentimento, a imaginação e a insegurança, em operação isolada ou conjunta, geram
o ressentimento (o sentir novamente).
O ressentimento de Caim para com Abel o levou a matar o
irmão. No Evangelho, o simples ato de odiar o irmão significa um assassinato.
Quando uma ofensa acontece, seja ela individual, coletiva, voluntária ou
involuntária, ela cria uma situação nova, altera uma relação entre o que ofende
e o que é ofendido. E a situação só pode ser sanada mediante o perdão. Mas
quando o mal atinge um certo grau de gravidade, quando a vítima inocente já não
existe, o perdão - já tão difícil na vida quotidiana - torna-se humanamente impossível
(SALLES, 2019), especialmente nos casos de violência grave, como assassinato, terrorismo
e estupro. Não há resposta fácil à questão das ofensas irreparáveis e
imperdoáveis; entretanto, na cruz de Cristo, a possibilidade do perdão é real.
Existe uma cultura de ressentimentos e de falta de perdão, tanto
nas famílias quanto nas instituições e na sociedade. Atribuir o fracasso da
sociedade ou da política a outros entes ou ao inimigo polarizado é sinal de grave
ressentimento de uma comunidade, o que vai gerando necessidade de reparação e sentimento
de vingança. Enquanto uma comunidade ou pessoa se ressente dos outros, encontra
um subterfúgio para não tratar das suas próprias mazelas e pecados. Portanto, o
ressentimento é uma espécie de transferência de culpa e expiação das próprias culpas.
Em alguns casos, a igreja evangélica brasileira foi cooptada para este cenário
pela polarização política. A igreja, como possuidora do Evangelho de Jesus de
Nazaré, aquele que perdoou até mesmo seus algozes, deveria voltar ao caminho do
perdão para promover ampla cura da ferida purulenta em que a sociedade e a política
brasileira foram acometidas.
O ressentimento pode levar a uma agressividade passiva, no
sentido de que, mesmo que não se vingue diretamente, vai-se desenvolvendo formas
subjetivas e veladas de vingança, como a murmuração e a maledicência, numa
espécie de autoengano que vai prejudicando o outro, mas especialmente a si
mesmo com as consequências psicossomáticas e pela falta de alegria e paz
interior.
Os verdugos, açoites e castigos que Jesus citou na parábola do
credor impiedoso (Mateus 18.21ss), os quais foram consequência da falta de perdão
por parte do servo, que não perdoou a pequena dívida, são as consequências emocionais
da falta de perdão. Há pesquisas médicas que indicam que várias doenças têm origem
psicossomática na falta de perdão, no abrigar ressentimentos, no desejar a vingança
e no alimentar a raiva e o ódio.
Existem pessoas que adquiriram o hábito cruel de viverem em situações
de desconforto emocional oriundo da falta de dar perdão aos outros e muitas
vezes de si mesmo, numa espécie de autossabotagem. A tal ponto está incrustrado
em suas estruturas de pensamento que se sentem vazias quando não estão remexendo
os seus labirintos mentais doloridos. Não perdoar alimenta o orgulho ferido, a amargura,
o ressentimento, a cólera, a acusação, o desejo de vingança, o ódio, a espiral
de violência, a perda de liberdade e da paz interior. A falta de perdão deixa a
pessoa ligada àquela que a feriu, girando continuamente em torno dela,
repetindo como ela é malvada. “Perdoar significa, portanto: desfazer-se de. Em latim,
significa: dimittere, mandar embora, despedir.” (GRÜN, 2019, p. 95).
As consequências positivas da liberação do perdão são a melhoria
da saúde emocional, física, mental e consequentemente a saúde espiritual. O perdão
fortalece os laços de relacionamento, pois ele demonstra que em Cristo todos
são iguais e carecem tanto de perdoar quanto de serem perdoados. O perdão ainda
promove uma cultura de não violência, de paz e harmonia, trazendo prazer e
alegria na comunhão entre os irmãos.
Para que aconteça o perdão, é preciso prescindir da
moralidade e das exigências de reparação, porque a moralidade implica em fazer
justiça ou ao menos aplicar a justiça justa, no sentido de que aquele que praticou
um ato que feriu alguém (seja agressão real ou simbólica) precisa pagar por aquilo
que cometeu; dessa forma, o clamor por reparação justa pode ser um obstáculo ao
perdão. Quando aquela é confundida com vingança, esta vai gerando um ciclo
vicioso de reparações até que alguém o interrompa com a prática do perdão. O
perdão tem a ver com restauração de relacionamentos, enquanto a justiça com a
reparação do dano não pode interferir no perdão, caso contrário o perdão
somente seria possível quando da reparação, e biblicamente não é essa a exigência
que se faz do perdão. Esta mesma lógica está presente na suposta necessidade de
que, para que o ofendido possa perdoar, o ofensor precisa pedir perdão. O perdão
independe da reparação ou do pedido de perdão, embora um pedido formal seja recomendável
(Mateus 5.24).
Superando a mágoa e
reconstruindo a confiança
Geralmente, numa situação de ofensa em que se exige o
perdão, há uma relação de duplicidade, no sentido de que dificilmente alguém é totalmente
a vítima e o outro o vilão. São situações em que motivações recíprocas estiveram
envolvidas que geraram a ofensa. Isso leva ao fato de que, para haver perdão, é
preciso também esboçar arrependimento por parte de quem impetrou a ofensa, mas nem
sempre isso acontece. Nesse caso, o ofendido precisa superar esse obstáculo para
que se efetive o perdão, mesmo sem a aquiescência do ofensor. Para que haja
reconciliação é crucial o reconhecimento da condição humana de pecadores, caso contrário,
se exigirá uma perfeição moral ao outro (Romanos 7.15,19) impossível de ser alcançada
nos relacionamentos e isso impossibilita o perdão (SUNG, 2007, p. 94-96). “A
pessoa escrupulosa jamais experimenta o perdão simplesmente porque jamais tomou
conhecimento do caráter verdadeiro de seu pecado” (HALÍK, 2016, p. 2804).
Para que aconteça o perdão e a cura, é preciso que a condição
emocional esteja maturada. Quando o apóstolo Paulo disse para o sol não se por
sobre a ira (Efésios 4.26), estava se referindo à pressa para consertar alguma ofensa,
de se consertar ao tempo certo, para não correr risco de provocar mais feridas
ou apenas encetar um perdão hipócrita quando feito de forma forçada antes do
tempo. Por isso, um dos sentidos da palavra perdão no latim é dar completamente
(per+donare), como um donativo valioso, sem reservas nem contrapartidas.
Ou seja, há uma perda ao direito de exigir reparação (nesta afirmação não está
incluída a justiça impetrada pelo Estado), especialmente em relação ao perdão dos
inimigos ou quando o mal é irreversível ou incapaz de se desfazer o mal feito (Hanna
Arendt in: SALLES, 2019, p. 14). Todavia, a maturação emocional do perdão
depende de uma decisão racional de perdoar, caso contrário ela alimentará o
desejo de vingança e de ódio, e este já não se foca mais no motivo da ofensa,
mas na simples alimentação do litígio com vistas ao prazer macabro. Ao
alimentar a vingança, o ofendido torna-se tão mal quanto o agressor.
Contrariamente a isso, é preciso decidir escolher o bem das pessoas e não a
vingança, e não ser definido pelo mal sofrido, mas se livrar da dor. A racionalização
exige que a ofensa seja sentida e vivenciada, sem sublimações ou falsos esquecimentos,
pois, para que haja perdão de fato, é preciso sentir profundamente a dor, para em
seguida dar lugar ao perdão. Por isso mesmo, perdão não é esquecimento, “pois
não se pode perdoar o que foi esquecido, o que deve ser destruído é a dívida e não
a memória” (SALLES, 2019, p. 429).
O perdão poderá ser exercido não somente como pós-ofensa, mas
na capacidade de não se irritar ou se deixar ressentir quando há motivos para
tal. Jesus exercia esta capacidade quando disse: “sou manso e humilde de coração”
(Mateus 11.29). Esta capacidade de Jesus, a qual pode-se aprender dEle, trará “descanso
para a sua alma”. A vida funciona melhor e experimenta-se muita paz quando a
pessoa não se sente ofendida por qualquer coisa, quando não se ressente, quando
é capaz de ignorar as ofensas, passar por cima de coisas que incomodam. Isso não
significa ficar quieto e guardar no coração. É simplesmente não deixar ser atingido
por aquilo, sem guardar mágoas ou ressentimentos. Isso não impede a pessoa de
ser alvo de injustiças e violências, apenas ela não será abalada pela ofensa. É
a prática da “Santa Indiferença” apregoada por Inácio de Loyola. Nesse sentido,
a mansidão precede a necessidade de perdoar. Mas, obviamente, nem sempre é possível
exercer a mansidão. As emoções, em alguns casos, não são controláveis, elas
invadem a alma sem pedir licença.
Conclusão
Oferecer perdão real e verdadeiro, livre de ares de piedade e
arrogância, somente pode ser feito por aqueles que estão cientes de que vivem do
perdão de Deus e dos outros, sabedores da imensa dívida que têm para com o Pai celestial,
a qual foi perdoada em Cristo. Isso nos torna mais semelhantes a Cristo, na escalada
de espiritualidade que somos desafiados a seguir.
Somente a plena satisfação no amor de Deus pode evitar rupturas,
inimizades, desespero e mágoa, quando se descobre que ninguém é capaz de satisfazer
os desejos mais profundos de intimidade e compromisso, ou quando as pessoas
agem de forma contrária ao amor, o que pode gerar ressentimentos e amarguras. A
convivência humana, embora repleta de satisfação, comunhão e encantamento, será
sempre precária, limitada e muitas vezes confusa, com ressentimentos, dores e amarguras,
mas é nela que exercemos o ministério dado por Deus e onde o amor é demonstrado
de maneira intensa e profunda.
Corrie Ten Boom foi uma mulher cristã holandesa que, durante
a ocupação nazista da Holanda, escondeu com sua família judeus em sua casa. A
Gestapo descobriu o esconderijo e prendeu Corrie, seu pai e sua irmã Betsie, os
quais foram enviados para campos de concentração nazistas. Seu pai faleceu
poucos dias após ser preso, sua irmã Betsie morreu por maus tratos. Após a guerra,
Corrie dedicou o resto de sua vida a pregar perdão e reconciliação, inclusive encontrando-se
com seus algozes. Um grande exemplo para nós.
Bibliografia
BOOM, Corrie Ten. O
Refúgio Secreto. Colombo: Pão Diário, 2016.
CHAMPLIN, R. N.; BENTES, J. M. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. Vol. 5. São Paulo:
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HALÍK, Tomás. Toque
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LAFFITTE, Jean. O
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OLIVEIRA, José H. Barros de. Perdão: Teoria e Avaliação. Psicologia, Educação e Cultura, Colégio
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ORTLUND, Dane C. Manso
e Humilde: o Coração de Cristo para Quem Peca e Para Quem Sofre. Rio de
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POMMERENING, Claiton Ivan. A Obra da Salvação. Rio de Janeiro: CPAD, 2017.
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SUNG, Jung Mo. Um
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por Claiton Ivan Pommerening
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