O perdão faz o crente se parecer mais com Deus, que não nega misericórdia para quem o ofendeu
Quando se fala da palavra perdão, tem-se em mente uma ação cujo objetivo se baseia na abstenção do direito de retribuir a uma pessoa de acordo com seus maus atos. Essa prática encontra diversas referências na Palavra de Deus, e o próprio plano da Salvação implica o perdão de Deus para as pessoas que se arrependem de seus pecados e são transformadas pela fé em Jesus. O perdão é mais do que uma verdade bíblica e teológica; é um dever que deve ser praticado por todos os que servem a Deus.
No Antigo Testamento
A Palavra de Deus nos mostra que o perdão já era apresentado
no Antigo Testamento. A formação do povo de Deus passa por diversas narrativas individuais
e coletivas sobre mandamentos, desobediências, julgamentos e punições, mas o
perdão também é visto nos textos sagrados. O livro de Gênesis nos apresenta uma
história familiar que se estende do capítulo 37 ao 50, onde José, filho de Jacó,
passa por adversidades que foram perpetradas pelos seus irmãos de sangue. A
relação da família de Jacó, com um marido e várias mulheres e a geração de
diversos filhos com essa multiplicidade de mulheres, fez brotar animosidades graves
entre os irmãos. Eles o venderam e ele se tornou escravo, e a seguir, prisioneiro.
Sua liberdade foi perdida duas vezes. Por treze longos anos, José perdeu não só
a capacidade de ir e vir, mas também a sua imagem em uma sociedade na qual era estrangeiro.
Acusado falsamente de assediar a mulher de seu senhor, amargou anos numa cadeia
egípcia, até que, por uma ação de Deus, o homem de 30 anos foi elevado à condição
de vice-governador do Egito. Em nenhum momento dessa história José se esqueceu
de Deus, e permaneceu fiel a Ele nas piores adversidades.
Mas havia uma experiência pela qual José teria de passar: a de
perdoar seus irmãos, aqueles que o afastaram do convívio do seu amado pai, que contaram
a sua história como alguém que não mais existia. Por causa deles, José havia amargado
duramente momentos humilhantes. O que José não sabia era que a exaltação de Deus
para com sua vida não excluiu a experiência de perdoar os seus irmãos. Moisés descreve
o contexto emocionante em que os irmãos se reencontraram, por ocasião da fome na
terra e na viagem que os seus irmãos mais velhos fizeram para o Egito, a fim de
conseguir comida. O legislador narra como os irmãos foram confrontados com o
seu passado e como um possível ressentimento foi transformado no perdão que José
precisava liberar e os irmãos precisavam receber. Houve o reconhecimento de que
apesar de o mal ter sido intentado, Deus havia transformado aquela situação em
bem (Gênesis 50.20). Mas a história de José nos mostra também que nem sempre os
que perpetram o mal conseguem se sentir perdoados (Gênesis 50.14-17), e aqui cabe
uma observação: o perdão precisa ser não somente dado, mas também recebido. A
consciência de quem cometeu um delito é um fator que precisa ser trabalhado
para que o perdão seja compreendido. Outro exemplo que destaco é o de Davi, o homem
cujo nome foi associado à ancestralidade do Messias, mas que também se tornou um
exemplo de como o perdão pode mudar a vida de uma pessoa que desceu ao nível
mais baixo de desejos e descontrole. Após ter se deitado com Bate-Seba e engravidá-la,
Davi tentou enganar o marido dela e, não conseguindo fazê-lo, dado à
integridade daquele homem, decide mandá-lo para a morte nas mãos dos inimigos do
povo de Deus. Urias morto, Davi tomou Bate-Seba, agora viúva, como sua mulher,
e o caso, em tese, foi encerrado aos olhos dos homens, mas não aos olhos de
Deus.
Davi foi confrontado pelo profeta Natã, que por meio de uma história,
conectou Davi a um personagem que agiu com desrespeito pelo lar de um vizinho,
e cuja ação custou uma vida. Davi reconhece que o seu pecado é digno de morte,
mas Natã diz ao rei: “O Senhor traspassou o teu pecado; Não morrerás” (2 Samuel
12.13). Deus havia perdoado Davi, mas a criança dele com Bate-Seba morreria. O
pecado tem um preço aos olhos de Deus. Mesmo recebendo o perdão do Eterno, Davi
experimentou o preço de suas ações, mostrando que nem sempre o perdão de Deus
anula certas consequências de nossos atos nesta terra. A intemperança sexual de
Davi lhe renderia muitos problemas dentro de casa e no reino com o passar dos
anos.
Um terceiro exemplo de perdão é visto em Jonas, o profeta fujão
comissionado para anunciar aos ninivitas o juízo de Deus que lhes estava
reservado. A existência daquele povo deveria chegar ao fim, pois suas maldades
eram muitas (Jonas 1.2), mas Deus decidiu dar uma oportunidade para que eles se
arrependessem, e Jonas seria o mensageiro dessa boa notícia. Mesmo contra a sua
vontade, o hebreu foi constrangido por Deus a falar sobre o julgamento iminente
aos inimigos, e comunicar que, caso não se arrependessem, seriam exterminados.
Os ninivitas daquela geração se arrependeram e, ao invés de receberem
o juízo de Deus, receberam o perdão divino. A graça de Deus no livro de Jonas
mostra que a capacidade do Eterno em perdoar foi estendida aos gentios, a um
povo que não pertencia à aliança de Deus com Israel. Apesar da atitude negativa
do profeta hebreu, Deus quis dar uma oportunidade para aquela nação se
arrepender, ainda que o seu enviado quisesse vê-los destruídos ou alcançados pelas
maldades que haviam praticado. Sobre o perdão, Jonas nos ensina que mesmo
conhecendo a Deus, podemos ser tentados pelo nosso senso de justiça própria, mas
também aprendemos que Deus deseja perdoar aqueles que temos por inimigos. A
graça divina é estendida e possível a todos.
No Novo Testamento
O Novo Testamento nos mostra que o perdão divino foi um
assunto constante na mensagem de Jesus. Ele não somente anunciou o perdão de
Deus, mas demonstrou na prática o perdão, como no caso da mulher que ungiu os
seus pés (Lucas 7.48). Ele perdoou a mulher apanhada em adultério (João 8.11) e
um ladrão que estava na cruz (Lucas 23.43). Mas, de forma mais específica,
perdoou a Pedro, um de seus discípulos. O homem que se tornaria um apóstolo
acompanhou o Senhor Jesus em seu ministério, e pela impulsividade que lhe era
própria, diante de uma fala de Jesus sobre ser abandonado pelos que discipulou,
o pescador disse que jamais o abandonaria. Horas depois, passou pela
experiência de negar o seu Senhor, mesmo tendo sido avisado por Ele de forma bastante
específica. Porém, Pedro pôde ser restaurado por Jesus em um encontro após a
ressurreição do Senhor. Na ressurreição, os anjos disseram às mulheres que
foram ao sepulcro: “Não vos assusteis; buscais a Jesus, o Nazareno, que foi
crucificado; já ressuscitou, não está aqui; eis aqui o lugar onde o puseram.
Mas ide, dizei a seus discípulos e a Pedro que ele vai adiante de vós para a
Galileia; ali o vereis, como ele vos disse” (Marcos 16.6,7). A ressurreição de
Jesus nos fala que o Senhor abriu o espaço para a reconciliação com aqueles que
o abandonaram por ocasião da crucificação.
Um terceiro exemplo digno de recordação é o de Estêvão, um
diácono da Igreja em Jerusalém, que se destacou falando do evangelho. Sua
mensagem era acompanhada de sinais e prodígios (Atos 6.8), e isso chamou a
atenção de alguns líderes religiosos, que usaram de desonestidade para trazerem
um mau testemunho contra Estêvão. Em sua defesa, o diácono retomou a história
dos hebreus, desde Abraão até Salomão. Estêvão fez esse retrospecto para
responder à acusação que haviam feito acerca de Jesus, de que Ele destruiria o Templo
e mudaria os costumes dos hebreus. Ao fim do discurso, tendo concluído dizendo
que uma casa não comportava a glória de Deus, Estêvão lembra que aquele tipo de
situação, a de acusarem justos e profetas, redundou na morte de Jesus. Os
profetas anunciaram a vinda do Justo, e aqueles homens o traíram e mataram.
Isso foi o suficiente para que Estevão fosse apedrejado, mas não antes de pedir
a Deus que perdoasse seus algozes por aquele crime que estavam cometendo.
Estêvão nos ensina que quando Jesus é o nosso foco, podemos perdoar àqueles que
desejam a nossa morte. Esses exemplos nos mostram que o perdão no Novo
Testamento foi real e possível, e que estava sendo incorporado às práticas
cristãs.
O perdão na prática
cristã
A prática do perdão faz com que nos tornemos mais parecidos
com Deus, que se dispõe a perdoar àqueles que ofenderam. Se nos lembrarmos de
que Deus, que tem o poder de nos julgar e condenar por causa dos nossos pecados,
ante ao nosso arrependimento pode nos perdoar, somos exortados a fazer o mesmo
para com os nossos ofensores. O perdão para com os nossos inimigos não é uma
opção, mas um mandamento. O perdão que devemos conceder deve ser direcionado não
só aos nossos desafetos, mas igualmente aos nossos irmãos. A convivência em
família tem a capacidade de nos mostrar o que há de melhor e o que é mais
difícil de ser aceito entre os familiares, e o mesmo eventualmente se dá entre
aqueles que foram alcançados pelo evangelho. Paulo teve de lidar na igreja coríntia
com irmãos que levavam outros aos tribunais por desavenças, sem que a igreja se
posicionasse no sentido de exercer juízo entre aqueles que tinham pendências entre
si. O apóstolo conhecia o comportamento deles e disse o seguinte: “Mas vós mesmos
fazeis a injustiça e fazeis o dano, e isso aos irmãos” (1 Coríntios 6.8). O fato
de irmãos desejarem prejudicar uns aos outros mostrava uma imaturidade da igreja,
e a vergonha pública quando casos assim eram levados aos tribunais. A ausência de
pessoas sábias na igreja gerava um constrangimento para aquela congregação.
Esse exemplo nos mostra que pode haver entre nós pessoas cujo caráter precisa ser
modificado, a fim de não envergonharem o evangelho com suas más ações, e outras
pessoas que precisam aprender a perdoar irmãos que ainda não se conscientizaram
de suas obrigações diante de Deus e da sociedade, pois se o problema foi parar
na justiça, por certo estava infringindo algum tipo de ordenança legal naqueles
dias.
Deus também espera que suportemos algumas falhas de nossos
irmãos: “...suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos uns aos outros, se
algum tiver queixa contra outro; assim como Cristo vos perdoou, assim fazei vós
também” (Colossenses 3.13). É certo que o faltoso deve ser confrontado com suas
más ações a fim de não as repetir ou deve ser afastado da comunhão dos santos.
O perdão após a
disciplina
Um dos fatores que caracteriza a comunhão dos santos é o perdão
concedido a uma pessoa que, tendo pecado, aceitou a disciplina como meio de
restauração espiritual. A igreja tem o poder e o dever de disciplinar um de seus
membros que tenha cometido um pecado, mas o objetivo da disciplina é a
restauração daquele que pecou. Todos estamos sujeitos a pecar contra Deus, mas
o que nos distingue é ter a consciência de que o arrependimento pelo pecado cometido
precede o perdão. Paulo recomenda que se uma pessoa foi repreendida, e compreendeu
o seu erro, deve ser restaurada à comunhão dos santos (2 Coríntios 2.5-9). A
igreja deve confirmar para com essa pessoa o seu amor, para que Satanás não
tenha a vitória com a ausência de perdão por parte de nossos irmãos (2 Coríntios
2.10).
O ato de perdoar como
uma dádiva
A capacidade de perdoar, de oferecer o perdão por uma
ofensa, só é dado somente a quem foi ofendido. Os hebreus sabiam dessa regra, e
ficaram chocados quando viram Jesus curando um homem trazido por seus amigos e
descido no telhado de uma casa. Ao que nos parece, no texto bíblico, vemos que Jesus
se dirige àquele homem e lhe diz que os seus pecados estão perdoados. Os
doutores da Lei, presentes naquele local, questionaram com um argumento
aparentemente óbvio: “Quem é esse que diz blasfêmias? Quem pode perdoar
pecados, senão Deus?” (Lucas 5.21). A lógica daqueles homens tinha um sentido:
só quem foi ofendido pode perdoar a ofensa. O perdão não pode ser aplicado por
outra pessoa, senão a que foi afetada por uma atitude pecaminosa ou ofensiva.
Se aquele homem estava paralítico porque pecara contra Deus, então só Deus
poderia perdoá-lo. O que eles não entendiam é que Jesus era Deus, e sendo Deus,
Ele podia perdoar qualquer pecado. Nesse caso, uma questão didática deveria ser
ensinada aos seus críticos. Jesus pergunta àqueles homens: “Qual é mais fácil?
Dizer: os teus pecados estão perdoados, ou dizer: Levanta-te e anda? Ora, para
que saibais que o Filho do Homem tem sobre a terra poder de perdoar pecados
(disse ao paralítico), eu te digo: levanta-te, toma a tua cama e vai para tua casa”
(Lucas 5.24). Se Jesus podia, diante do olhar dos críticos, curar um
paralítico, nada o impedia de perdoar pecados.
Ação do Espírito
Santo
Os filhos de Deus não estão sozinhos no que tange ao tema perdão.
O Espírito Santo nos auxilia nessa tão difícil tarefa de subjugar a nossa
vontade de justiça própria para que Deus trate com quem nos ofendeu.
Para tratar do perdão e da forma como o Santo Espírito nos ajuda
nessa árdua tarefa de exigir ou fazer a justiça que entendemos ser nosso direito,
nada melhor do que trazer um testemunho. Loren Cunninghan, pastor das Assembleias
de Deus que fundou a agência missionária JOCUM, exemplifica tal fato na história
de Cornelia Arnolda Johanna ten Boom, conhecida mundialmente como Corrie ten
Boom, uma holandesa sobrevivente de um campo de concentração. Ela, seu pai
Casper e sua irmã Betsie haviam sido presos pela Gestapo por esconderem e
auxiliarem judeus no período da ocupação nazista na Holanda. Eles pertenciam a
uma família pacífica, de relojoeiros, e que temiam a Deus. O pai de Corrie
morreu 10 dias após chegar ao campo de concentração, e Betsie morreu meses
depois. Por um milagre, Corrie recebeu a liberdade para morrer em casa por
força de uma doença que havia contraído na prisão, e logo após sua soltura, chegou
à ordem de sua execução do governo alemão, que não se concretizou.
A veterana decidiu dedicar sua vida à pregação do Evangelho,
desde que não fosse na Alemanha. Certo dia, viu-se pregando em praça pública sobre
Jesus na Alemanha, e entre as pessoas que vieram aceirar Jesus estava um dos guardas
do campo de concentração onde Corrie havia sido presa. Eles se reconheceram e o
homem foi pedir perdão a ela. Um grande confronto se deu nesse momento, pois
ela se lembrou de todas as maldades que ela, seu pai e sua irmã sofreram nas
mãos dos nazistas. Aquele guarda foi responsável por matar a irmã de Corrie a
pauladas na frente dela. Em oração, ela disse a Deus que não conseguia perdoar
aquele homem, e Deus lhe disse: “Perdoa-o”. Ela disse novamente ao Senhor que não
conseguia perdoar aquele homem. Deus uma segunda vez disse a ela que o perdoasse.
Ela então disse a Deus em oração que fora aquele homem que tinha tirado sua
irmã Betsie do alojamento, tirou as roupas dela e a deixou no frio e na neve
antes de matá-la de forma violenta. Deus, então, disse a ela: “Perdoa-o por
amor a mim”. Nesse momento, Corrie ten Boom disse que sentiu uma onda de amor
vinda da parte de Deus, e que a ação do Espírito Santo em sua vida fez com que ela
perdoasse aquele homem. Todo aquele bloqueio das memórias que tinha sobre
aquele homem se dissolveu. O que ele havia feito não poderia ser mudado. O perdão
oferecido por Corrie ao ex-guarda do campo de concentração não trouxeram de
volta o pai e a irmã daquela serva de Deus, mas nos mostrou que Deus pode nos
ajudar a exercer, no poder do Espírito, uma das tarefas mais árduas da vida
cristã. O testemunho dessa serva de Deus deve nos fazer refletir que oferecer o
perdão pode ser uma ação difícil até mesmo para a pessoa mais piedosa, mas que tal
dificuldade pode ser vencida com a ajuda do Espírito. O perdão é um ato que tem
em Deus o primeiro praticante, e que deve ser, no poder do Espírito, praticado por
todos aqueles que temem a Deus.
por Alexandre Claudino Coelho
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