Muitos anos atrás, depois de participar de um culto evangélico num dos subúrbios do Rio de Janeiro, escrevi um editorial no jornal Mensageiro da Paz sob o título “Poluição sonora nos templos”. Meu pastor leu o editorial e concordou comigo. O salão era pequeno, quase sem janelas, e o volume de som dos instrumentos agredia os tímpanos de todos, chegando quase ao ponto de provocar surdez. Infelizmente muitos músicos, àquele tempo, não entendiam que “acompanhar” os hinos significa ir atrás, abaixo das vozes, e não à frente.
Desde a minha conversão, aos 20 anos, sempre fui apreciador
da boa música sacra. Tocava gaita, acordeão e um pouco de órgão e piano. Fazia
parte da banda de música da igreja, regia e coro e, mais de cinquenta anos
atrás, fundei coral em diversas congregações, que ainda hoje louvam ao Senhor. Esse
apreço pela boa música – que minha querida esposa também possuía – passamos às
nossas filhas e netos. Se é verdade o que alguns dizem, de que em casa de judeu
nunca falta música e livros, então em nossa casa aflorou forte essa minha raiz
israelita.
Ritmo, harmonia e
melodia
Nas oportunidades que tenho de falar aos que servem à igreja
dirigindo o louvor e a adoração, lembro sempre que o ritmo fala ao corpo, a
harmonia à alma e a melodia ao espírito. É verdade que Martinho Lutero não
produziu apenas a Reforma da Igreja, mas também centenas de hinos. Foi emocionante
ter diante de meus olhos, no Castelo de Wittenberg, a partitura do mais famoso
cântico luterano: “Castelo Forte”.
Esse cântico está na mesma categoria de “Já refulge a glória
eterna” e de “Os guerreiros se preparam”. É um apelo a que marchemos contra as
hostes infernais erguendo bem alto a bandeira ensanguentada do Evangelho.
Quando o pastor William Boot pediu aos seus auxiliares que lhe preparassem uma
relação de obreiros leigos, lhe foi entregue uma ampla lista sob o título
“Exército de Voluntários”. Boot deu uma olhada nos nomes, pegou a caneta, riscou
a palavra “voluntários” e em seu lugar escreveu “Salvação”. A seguir, adotou
títulos militares para os obreiros e fundou o jornal Brado de Guerra, no qual o
obituário ficava na seção Promovidos à Glória. É claro que a hinologia do
Exército de Salvação teve de ser adequada à sua nova missão militarizada.
Se a harmonia fala à alma, poucos compositores chegaram
perto dos cristãos reformados Bach e Handel. O primeiro, harmonizando duas
melodias, foi insuperável na sua obra “Jesus, alegria dos homens”. O segundo,
na sua cantata “O Messias”, inspira milhões de pessoas, especialmente com o seu
arrebatador “Aleluia”.
Ao ouvir esta música pela primeira vez, a rainha Vitória, da
Inglaterra, pôs-se de pé, reverenciando e saudando o “Rei dos reis e Senhor dos
senhores”. Aliás, quando ouvi esse hino com o seu apoteótico final oitavado por
três famosos tenores, fui profundamente tocado pela graça de Deus. A propósito,
durante um ensaio dessa obra em Londres, no momento em que a talentosa cantora
interpretava impecavelmente, numa ária de nove minutos, o brado de fé de Jó:
“Eu sei que o meu Redentor vive”, o regente do grande coral e orquestra
interrompeu a música e perguntou à solista: “Moça, você acredita no que está
cantando?” Um pouco assustada ela respondeu que sim, e o maestro acrescentou: “Então
cante de tal maneira que os outros, ao ouvi-la cantar, também acreditem!”.
Conta-se que anos atrás, numa cidade da Bahia, uma jovem senhora
pediu permissão ao padre de sua igreja para cantar a “Ave Maria” de Gounod,
pagando assim uma promessa. O pároco lhe disse que poderia cantar na seguinte quarta-feira,
às 2 horas da tarde. A moça questionou: “Mas, padre, nesse horário não há
missa!”. A resposta que ela recebeu foi: “Você fez o voto de cantar, mas os
fiéis não fizeram a promessa de ouvi-la cantar!”.
Por volta de 1961, nos meus primeiros dias de fé, ainda
solteiro, participei de um culto público na Assembleia de Deus de Volta
Redonda, estado do Rio de Janeiro. Era uma quarta ou quinta-feira. As poucas pessoas
no templo mostravam uma indiferença e irreverência de chamar, pelo menos, a
minha atenção, até que o pastor da igreja, Nicodemos José Loureiro, anunciou
que um irmão queria cantar um hino, e este foi à frente. Tratava-se de pessoa de
idade, simples, que abriu a sua Harpa Cristã e começou a cantar, com sua voz já
meio cansada, um conhecido hino. Nenhum músico o acompanhava. Porém, logo no início
da primeira estrofe o ambiente começou a mudar. Os que folheavam a Bíblia ou
liam o jornal da igreja, ou faziam qualquer outra coisa, pararam de repente e
atentaram para a mensagem ungida do hino, que manifestava a graça e a glória de
Deus. Não houve quem não chorasse convulsivamente. Aquele culto, de seis
décadas atrás, continuou inesquecível para mim!
Se o ritmo fala ao corpo e a harmonia à alma, a melodia toca
o espírito. Nos concertos para piano e orquestra de Beethoven, especialmente no
segundo movimento de cada um deles, percebo a habilidade do compositor em
“falar” ao nosso espírito com a melodia, uma tarefa quase toda reservada ao
piano. Às vezes a partitura exige tanta ternura na comunicação da mensagem que
o(a) pianista quase roça o instrumento com o ouvido ao acionar as primeiras
notas.
Essa arte de viver ou interpretar a melodia, numa obra sem
letra, me parece ocorrer mais com músicos jovens – rapazes ou moças – do que
com alguns famosos pianistas quase octogenários. É inspirador perceber que o
intérprete parece aspirar, saborear e beber cada nota da melodia.
Duas pérolas de Frida
Vingren e Paulo Leivas Macalão
Em se tratando da música em nossas igrejas, é lamentável o
desapreço que revelamos para com alguns lindos hinos. Vou me referir aos
números 126 e 430, da Harpa Cristã.
O primeiro, de Frida Vingren, é um lindo poema acerca da
bem-aventurança do crente que, pacientemente, suporta tribulações por prosseguir
fielmente nos santos caminhos do Senhor. Assim viveram os heróis da Bíblia
Sagrada – entre os quais estão a própria senhora Vingren e seu marido. Estes,
revestidos do poder do Alto, chegaram às terras do Brasil com coragem e
profundo amor, proclamando a Cristo, o Salvador, mesmo sob as mais duras
provações.
As estrofes três e quatro falam por elas mesmas: “Quem
quiser ter a coroa de Deus passará por mais tribulação; às alturas santas
ninguém voa sem as asas da humilhação. O Senhor tem dado aos seus queridos,
parte do seu glorioso ser; quem no coração for mais ferido, mais daquela glória
há de ter. Quando aqui as flores já fenecem, as do céu começam a brilhar!
Quando as esperanças desvanecem, o aflito crente vai orar. Os mais belos hinos
e poesias foram escritos em tribulação; e as lindas melodias do céu se ouviram na
escuridão”.
Nessas duas estrofes estão alguns importantes degraus no
caminho da maturidade: as tribulações nos dão a posse da coroa de Deus; com as
asas da humildade voamos às alturas santas; quanto mais feridos somos no
coração, mais semelhantes a Cristo nos tornamos. Então vêm algumas verdades
esquecidas de muitos: se as flores daqui fenecem, brilham as do céu; se as
esperanças desvanecem, o aflito crente ora; os mais belos hinos e poesias
nascem do sofrimento, e as melodias do céu se ouvem melhor na escuridão.
A última estrofe parece um forte “amém” a tudo o que
acabamos de cantar: plena confiança na imensa graça e no amor de Cristo afasta
de nós o desalento e, então, como heróis vencedores gritamos “aleluias”, pois
do céu vem mais forte a brisa que nos leva ao seio do Senhor!
Anos atrás, eu e um colega pastor viajávamos pelas estradas do
estado de São Paulo, a trabalho, e, entre uma e outra parada, cantávamos hinos.
Precisamente enquanto cantávamos esse hino da irmã Frida, a presença do Senhor foi
tão forte que tivemos de estacionar o carro no acostamento da estrada a fim de
continuarmos a bradar louvores a Deus.
A beleza da mensagem,
da métrica e da rima
O outro hino, originalmente de autoria de Willian B.
Bradbury, recebeu nova letra de Paulo Macalão. É a essa letra e à sua rima que
vou me referir.
Esse cântico é um gentil e amoroso apelo ao pecador para que
se abrigue na arca da Salvação contra o dilúvio das águas do juízo divino
prestes a sobrevir ao mundo perdido: “Ouves, como o Evangelho nos dá vera
salvação e transforma o homem velho numa nova criação?”.
O apelo é seguido do testemunho pessoal do evangelista, que
também alcança o desviado: “Bem algum em mim não via, mas somente corrupção; e
cansado da porfia em Jesus achei perdão. Como a pomba que, cansada, foi na arca
repousar, a minh’alma fatigada em Jesus vai descansar. Mas o corvo foi-se
embora, sobre os mortos foi pousar; isto fazes tu agora? Quererás ao mal
voltar?”.
O lindo testemunho prossegue: “É Jesus a minha arca onde
posso repousar; e dali do mal as marcas nem eu posso avistar! Oh!, quão doce a
chamada que a mim me fez Jesus: ‘Vem, ó alma tão cansada! Vem das trevas para a
luz’”. Repete-se o apelo: “Pecador que estás ouvindo a mensagem do Senhor, tu na
arca és bem-vindo, no refúgio de amor”. O convite termina com uma solene
advertência: “Pois as águas do pecado breve te alcançarão; pela morte
despertado, baterás na porta em vão!”
Além da singeleza do convite baseado no Dilúvio e na arca de
Noé, me impressiona a perfeição da métrica e especialmente da rima. Tomando
como exemplo uma estrofe, a terceira, temos:
“É Jesus a minha arca, onde posso repousar; e dali do mal as
marcas, nem eu posso avistar! Oh! Quão doce a chamada, que a mim me fez Jesus!
Vem, ó alma tão cansada, vem das trevas para a luz”.
A última palavra dessa estrofe, “luz”, lembra o sepultamento
do autor, a que estive presente. Era por volta de uma hora da tarde quando nos
reunimos no cemitério ao redor do sepulcro aberto. O azul do céu estava
limpíssimo, e fazia calor. Então surge ao ocidente, na abóboda celeste, uma
pequena nuvem que vem deslizando em nossa direção, e se detém bem debaixo do
astro rei, formando uma linda coroa de luz a projetar a sua sombra sobre nós.
Indescritível o gozo que tomou conta de todos!
por Abraão de Almeida
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