A menção na Bíblia da existência de uma montanha tão alta que dela podem ser vistos todos os reinos da Terra (Mateus 4.8) dá margem para a crença na terra plana? Qual o entendimento correto do referido texto bíblico?
A ideia de que a terra seja plana não é nem bíblica, nem de outros escritos da Antiguidade e tampouco tem sustentação da ciência moderna. Pelo contrário, as cosmogonias antigas entendiam a sua forma como esférica. Fontes acadêmicas e populares mostram que, ao longo da história cristã, nunca foi crença e nunca foi ensinado que a terra fosse plana. Foram John William Draper e Andrew Dickson White que criaram esse mito ao recontar as navegações de Cristóvão Colombo para sustentar sua teoria do conflito e desacreditar a Bíblia diante da ciêcia.(1)
Alguns versos bíblicos usam vocabulário que revela a visão
de mundo em que a terra é redonda. Vejamos: “Ele é o que está assentado sobre o
globo da terra” (Isaías 40.22 - ARC); “de rodear a terra e passear por ela” (Jó
1.6 - ARC, NAA); e “quando compassava ao redor a face do abismo” (Provérbios 8.27
- ARC).
Ao mencionar os quatro cantos ou os confins da terra, a
Bíblia não assume que sua forma seja quadrada ou plana. Na verdade, “os quatro
cantos” referem-se aos pontos cardeais: norte, sul, leste e oeste. Em
Apocalipse 7.1, é dito: “Vi quatro anjos em pé nos quatro cantos da terra,
segurando os quatro ventos da terra”. Os quatro ventos tratam da direção de
onde vêm os ventos. A expressão “extremidades ou confins da terra” trata dos
lugares remotos de difícil alcance (Salmos 67.7; At 1.8).
Daniel 4.11, 20 e Mateus 4.8 são os trechos que mencionam
lugar alto de onde se avista o mundo e serviriam para sustentar a ideia da terra
plana. Em Daniel, o contexto é o sonho de Nabucodonosor, em que ele viu uma
árvore cuja altura chegava ao céu e de lá se via o mundo todo. Por se tratar de
um sonho, não se espera que seja retratada a realidade, ou seja, dele não se
faz uma leitura literal e se rejeita o argumento da terra plana. Em Mateus
4.1-11, o Diabo, primeiro, diz para que Jesus transformasse as pedras do
deserto em pão (v. 3); em seguida, transporta Jesus até o pináculo do Templo em
Jerusalém (v. 5); por último, “o diabo ainda levou Jesus a um monte muito alto,
mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a glória deles” (v.8 - NAA). Há alguns
usos figurados para “monte muito alto” na Bíblia. O primeiro uso é um paralelo
inexato com Mateus, pois não se refere ao mundo inteiro, quando o Senhor
ordenou a Moisés que fosse ao topo de Pisga, Monte Nebo. Dali, ele olhou em
todas as direções para contemplar a terra prometida (Deuteronômio 3.27;
34.1-4). Porém, a interpretação rabínica é de uma linguagem simbólica referente
ao mundo todo.(2) O segundo uso é o da associação com a idolatria nos lugares
altos (Deuteronômio 12.2; Ezequiel 6.3), o que se relaciona com a resposta seguinte
de Jesus ao diabo em Mateus 4.10: “Adore o Senhor, seu Deus, e preste culto
somente a ele” (Deuteronômio 6.13). O terceiro é o sentido de coisas boas (Isaías
40.9; Ezequiel 17.23). A ênfase de Mateus 4.1-11, então, está na autoridade
divina e na adoração exclusiva a Deus.
Assim, numa leitura de Mateus 4.8, é possível entender um
lugar alto no deserto como literal, mas “os reinos do mundo” como uma linguagem
figurada ou uma visão, pois de nenhum lugar da terra é possível ver todo o
planeta.
Notas
(1)
Hutchings, David. “Flat Wrong.” In
Of Popes and Unicorns: Science, Christianity, and How the Conflict Thesis
Fooled the World, David Hutchings e James C. Ungureanu (eds.), 2021, p. 49-70.
(2)
Gerhardsson, B. The Testing of God’s Son
(Matt 4:1–11 & Par.), 1966, p. 63.
por Daniele
Soares
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