Os pentecostais são constantemente acusados de não crerem na suficiência das Escrituras. Essa acusação é feita porque os pentecostais professam a contemporaneidade dos dons espirituais, inclusive os revelacionais, como a profecia, a palavra de sabedoria, a palavra do conhecimento e a interpretação das línguas. Mas, de fato, esses dons de comunicação formam um cânon paralelo às Escrituras? É claro que não! Esse tipo de argumento desconhece a natureza dos dons revelacionais expressados pelo próprio Novo Testamento.
O aplicado pentecostal sabe que a profecia e outros dons revelacionais
são possíveis e desejáveis, mas a “revelação” contida nos dons deve ser sempre
julgada pela própria Escritura. Os dons revelacionais podem ser definidos e
entendidos “como uma divulgação, da parte de Deus, de sua vontade a seu povo em
um momento particular. Seu objetivo é suprir necessidades especiais em meio aos
crentes, cuja natureza específica não precisa e muitas vezes não é conhecida
pelo profeta” (grifo meu)(1). Nenhuma profecia ou qualquer revelação complementa,
substitui ou atualiza as Escrituras. A profecia é, tão somente, uma reafirmação
sobrenatural em forma de aplicação dos princípios escriturísticos. Nenhuma profecia
contemporânea pode ser colocada em pé de igualdade com a Profecia Escrita. Os
pentecostais não negam a suficiência das Escrituras e, como qualquer grupo
protestante, eles sabem que a Bíblia é suficiente.
Todavia, o que é suficiência escriturística? Como lembra a Declaração
de Fé das Assembleias de Deus no Brasil: “A Bíblia é, portanto, a mensagem
clara, objetiva, entendível, completa e amorosa de Deus, cujo alvo principal é,
pela persuasão do Espírito Santo, levar-nos à redenção em Jesus Cristo”. Os
redatores da Declaração ainda complementam com concisão e síntese: “Nós a interpretamos
sob a orientação do Espírito Santo, observando as regras gramaticais e o
contexto histórico e literário. A Bíblia fornece-nos, ainda, o conhecimento essencial
e indispensável à nossa comunhão com o Pai Celeste e com o nosso próximo”.(2)
Como consequência, escrevem os redatores, “não necessitamos de uma nova
revelação extraordinária ou pretensamente canônica para a nossa salvação e o
nosso crescimento espiritual”.(3) O teólogo
Wayne Grudem, na mesma linha, assim define suficiência: “Dizer que as
Escrituras são suficientes significa dizer que a Bíblia contém todas as
palavras divinas que Deus quis dar ao seu povo em cada estágio da história da
redenção e que hoje contém todas as palavras de Deus que precisamos para a salvação,
para que, de maneira perfeita, nele possamos confiar e a ele obedecer”.(4)
Os conceitos de Grudem e da Declaração de Fé são bons porque
ligam a suficiência das Escrituras à revelação para salvação.(5) A Bíblia é
suficiente em relação a quê? A suficiência indica que a Bíblia nos fala sobre
tudo o que é necessário para a nossa salvação e, também, nos revela o Ser de
Deus. Portanto, é preciso ter em mente que a suficiência não significa exaustão
de todos os assuntos. Deus não falou “tudo” na Bíblia. A suficiência não quer
dizer que Deus não fale além das Escrituras, mesmo que a Sua fala pós-Escritura
nada mais seja do que uma reafirmação dessa Revelação Especial. “O princípio da
‘suficiência’ não quer ser entendido em termos quantitativos, e sim
qualitativos. Afirma ser a Bíblia o critério que ‘basta’ para definir o
evangelho e assegurar a autenticidade da fé”, como escreveu o teólogo luterano Gottfried
Brakemeier.(6)
Os pentecostais sabem que a Bíblia é a nossa única regra de fé
e prática. Quantas vezes eu, pessoalmente, já ouvi essa frase nos cultos
pentecostais?! Incontáveis! A experiência de Deus e com Deus, embora essencial,
não está acima das experiências bíblicas, que já passaram no teste do tempo e
da aceitação comunitária. A tradição, um elemento formador do cristão, também precisa
ser submetida à tradição bíblica, que tem função canônica sobre todas as demais
tradições.
A suficiência radical de alguns cessacionistas,
especialmente da escola fundamentalista, induz para a Bíblia perguntas para as
quais a Escritura não tem nenhuma resposta. Não é incomum que cessacionistas
radicais vejam na Bíblia, por exemplo, uma ciência minuciosa da criação. Como também
não é incomum que os crentes na suficiência radical da Bíblia a desonrem
tratando a Sagrada Escritura como manual político, científico e até estético. A
Bíblia não ensina qual é a melhor dieta ou o melhor sistema político-econômico,
nem indica em detalhes científicos como o mundo foi criado. A Bíblia é um livro
de princípios e valores, portanto, cabe ao interprete da Escritura aplicar com
sabedoria esses princípios e valores nos desafios do presente momento.
Agora, é necessário cuidado. Nenhuma revelação pós-Escritura
pode assumir caráter doutrinário. Os dons revelacionais nada mais são do que
uma aplicação sobrenaturalizada. E, como experiência de conforto e consolo, não
é elemento de ensino à coletividade da Igreja Cristã. Os dons revelacionais,
muito menos, podem ser encouraçados na forma de doutrina, tradição, liturgia,
usos e costumes ou regras comunitárias. Outro fator importante: com a Palavra
Escrita, a revelação por meio de profecias, sonhos, visões e interpretações de
línguas estranhas se tornou menos necessária no decorrer do tempo, mas não foi
e nunca será totalmente descartável até o advento de Cristo. Os dons
espirituais (veja 1 Coríntios 14) visam à edificação coletiva da comunidade,
por esse motivo, eles nunca serão descartáveis. Ora, sempre existirá a necessidade
de edificação comunitária no contexto da igreja.
Em igrejas pentecostais onde há muita manifestação
revelacional, sem o acompanhamento da exposição bíblica, lamentavelmente, existe
uma imaturidade generalizada. Os dons revelacionais não substituem a exposição
e o ensinamento constante, disciplinado e esquematizado das Sagradas Escrituras.
A natureza do dom é a edificação no culto, mas o cristão precisa do ensino
metódico para vivenciar a vontade de Deus além da adoração coletiva. A
profecia, como lembra o teólogo pentecostal Eurico Bergstén, “não deve ser fonte
de consulta ou meio de obter direção, seja na vida espiritual ou na vida
material”.(7) O pastor Estevam Ângelo de Souza, que foi um importante líder da
Assembleia de Deus em São Luís (MA), escreveu ainda sobre esse assunto: “A
autoridade máxima em matéria de fé, a norma infalível da vida espiritual, a
temos completa e perfeita no Antigo e no Novo Testamento. Nem podemos crer que
possuam realmente o dom de profecia aqueles que pretendem serem profetas, sem se
submeterem às normas estabelecidas pela Palavra de Deus e ensinadas por aqueles
a quem Ele chamou, ungiu e confirmou como seus ministros, para o bem de sua
Igreja. [...] O dom de profecia no Novo Testamento não tem a finalidade de
estabelecer normas para a vida cristã, para o governo da Igreja e para a
maneira de agir dos ministros, especialmente se tais ‘normas’ são contrárias às
doutrinas neotestamentárias.(8)
Donald Gee, importante teólogo da Assembleia de Deus
inglesa, escreveu ainda na década de ²³:
“Existem graves problemas sendo levantados pelo hábito de dar e receber
‘mensagens’ pessoais de orientação por meio dos dons do Espírito [...] A Bíblia
dá lugar para tal direção vinda do Espírito Santo [...] Tudo isso, porém, deve ser
mantido na devida proporção. O exame das Escrituras mostrará que, de fato, os
primeiros cristãos não recebiam continuamente tais vozes do céu. Na maioria dos
casos, eles tomavam suas decisões pelo uso do que normalmente chamamos ‘senso
comum santificado’ e viviam normalmente. Muitos de nossos erros na área dos
dons espirituais surgem quando queremos que o extraordinário e o excepcional
sejam transformados no frequente e no habitual. Que todos os que desenvolvem
desejo excessivo pelas ‘mensagens’ possam aprender com os enormes desastres de
gerações passadas e com nossos contemporâneos [...] As Sagradas Escrituras é
que são a lâmpada nossos passos e a luz que clareia o nosso caminho”.(9)
A própria Escritura nos mostra que Deus se revela pela
natureza – a Revelação Geral (cf. Romanos 1.19, ou, “pelas coisas que estão
criadas”). O apóstolo Paulo usa duas palavras gregas phaneron e ephanerōsen que
trazem o ponto revelacional na natureza. É claro que a Revelação Geral é limitada,
incapaz de ensinar os rudimentos da fé cristã, mas mostra claramente a grandeza
de Deus. Assim, a revelação pós-Escritura se assemelha à Revelação Geral (cf.1 Coríntios
14.22), pois não tem por objetivo
revelar os fundamentos da doutrina cristã, todavia, conseguimos com ela
contemplar um pouco mais da glória do Senhor. Por outro lado, “uma mensagem especial,
que somente a Bíblia pode transmitir, é a notícia que Deus interveio no drama
humano para redimir-nos. A natureza e a consciência não poderiam jamais revelar
semelhante verdade”.(10) Portanto, tanto a natureza como os dons espirituais
comunicam a mensagem de Deus, mas essa mensagem nunca será dissonante da
Sagrada Escritura.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
(1) PALMA,
Anthony D. 1 Coríntios. ARRINGTON, French L. e STRONSTAD,
Roger. Comentário Bíblico Pentecostal - Novo Testamento. 1 ed.
Rio de Janeiro: CPAD, 2003. p 1039.
(2) Declaração
de Fé das Assembleias de Deus. 1 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2017. p 39.
(4) Declaração
de Fé das Assembleias de Deus. 1 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2017. p 29.
(5) GRUDEM,
Wayne. Teologia Sistemática: Atual e Exaustiva. 1 ed. São Paulo: Edições Vida Nova, 1999. p 86.
(6) O mesmo faz, por exemplo, a Igreja Anglicana em seus
artigos de fé: “As escrituras contêm todas as coisas necessárias para a salvação;
de modo que tudo o que nela não se lê, nem por ela se pode provar, não deve ser
exigido de pessoa alguma que seja crido como artigo de Fé ou julgado como
exigido ou necessário para a salvação”.
(7) BRAKEMEIER, Gottfried. A Autoridade da Bíblia. 1
ed. São Leopoldo: Editora
Sinodal, 2015. 116p.
(8) BERGSTÉN, Eurico. Teologia Sistemática. 1 ed. Rio
de Janeiro: CPAD, 1999. p 114.
(8) SOUZA, Estêvam Ângelo de. Os Dons Ministeriais na
Igreja: Padrões Bíblicos para o Serviço Cristão. 1 ed. Rio de Janeiro: CPAD,
1993. p 37,38.
(9) GEE,
Donald. Concering Spiritual Gifts. 20 ed. Springfield: Gospel Publishing House,
2007. p 200.
(10) HORTON,
Stanley M. e MENZIES, William M. Doutrinas Bíblicas: Os Fundamentos da Nossa
Fé. 1 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 1995. p 19.
por Gutierres Fernandes Siqueira
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