Saiba por que preferimos chamar de ordenanças e não de sacramentos, e por que são apenas duas ordenanças e não sete, como os sacramentos católicos romanos
O batismo e a Ceia do Senhor são dois rituais cristãos que chamamos de “ordenanças da igreja”; os católicos romanos, os católicos ortodoxos e partes das igrejas protestantes os chamam de “sacramentos”. O assunto é um tanto complexo, pois, apesar de sua relevância na teologia cristã, o tema não é muito frequente no Novo Testamento, de modo que, ao longo dos séculos, não há unanimidade no tocante à sua natureza, eficácia, quantidade, também em como aplicá-los e a quem aplicar de maneira adequada. O verdadeiro significado ou a definição do que é sacramento ou ordenança, quantos e quais são eles e a sua função nos sistemas católico romano e evangélico podem ajudar na compreensão desses rituais cristãos.
A Igreja Católica Romana
A estrutura teológica do catolicismo romano e o sistema
sacramontólico são de difícil compreensão para os evangélicos. Isso porque estamos
acostumados com os cinco pilares da Reforma Protestante: sola Scriptura, sola
fide , sola gratia, solus Christus e soli Deo gloria. Cada um dos cinco solae
representa a chave de cada doutrina central dos reformadores do século 16 e se
relacionam, contrapondo os ensinos da Igreja Católica. Assim, sentimos
estranheza em relação ao ensino e às práticas dos católicos
A resposta teológica de Roma à Reforma ocorreu no Concílio de
Trento (1545-1563). O conclave sofreu diversas interrupções, por isso a sua duração
foi de quase oito anos. Muitos clérigos católicos viam a necessidade de uma reforma
nos costumes e leis da Igreja e de uma definição clara dos dogmas contra os pontos
de vista protestantes. Os pontos doutrinários tratados no evento foram opostos em
praticamente todas essas doutrinas representadas em cada chave dos cinco pilares
da Reforma.
O pensamento teológico proveniente do Concílio de Trento foi
submetido a uma revisão no Concílio Vaticano II (1962-1965). O conclave
desenvolveu e promoveu suas crenças e práticas para guiar a Igreja Católica,
veiculadas pelo Catecismo da Igreja Católica, publicado em 1992, no pontificado
do papa João Paulo II e publicado no Brasil no ano seguinte. Esse documento eclesiástico
é uma apresentação fiel e sistemática do ensino da Igreja Católica.
Os sacramentos
Em sua obra Patrística – Origem e desenvolvimento das
doutrinas centrais da fé cristã, J. N. D. Kelly define sacramentos como “ritos
externos, mais precisamente sinais, que, segundo creem os cristãos, transmitem,
por determinação de Cristo, uma graça santificadora invisível”. Kelly conta
que, embora o número de sacramentos varie de acordo com a época, não há certeza
do seu uso antes dos pais alexandrinos e de Tertuliano. As ideias dos pais gregos
e latinos dos séculos 4 e 5 seguiam mais ou menos nessa linha, e eram quatro os
sacramentos nessa época: o batismo, a confirmação, a eucaristia e a penitência.
O termo “sacramento” vem do latim sacramentum, que
foi introduzido na teologia e não possui um equivalente exato em grego. Era a palavra
usada para o juramento público de fidelidade do soldado romano, mas, a
princípio, era o nome dado ao depósito feito em lugar sagrado pelas partes envolvidas
numa questão jurídica como sinal de envolvimento numa causa justa até o
pronunciamento da sentença. A palavra se referia a algo sagrado ou consagrado, relacionado
a um mistério, ou qualquer sinal que possuísse um significado secreto. Desde muito
cedo na história da igreja, o vocábulo grego μυστήριον (mystērion
– “mistério, secreto”) foi aplicado aos rituais do batismo e da Ceia do Senhor.
Os pais latinos empregaram essa palavra para mystērion, que veio significar
“ordenança” ou “rito sagrado”.
Segundo o Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs,
não se pode esperar encontrar a teologia dos sacramentos segundo critérios da igreja
atual nos pais gregos e latinos antes de Santo Agostinho (Agostinho de Hipona,
conforme os evangélicos). Agostinho definiu o sacramento como um “sinal externo
e visível de uma graça interna e invisível”, e que os sacramentos comunicam a graça
em virtude de sua promulgação como tal ex opere operato (literalmente, “pela
obra operada”; quer dizer, simplesmente pela sua ministração). Isso significa
que a sua eficácia não depende de quem administre ou de quem recebe. Quem
recebe um sacramento não pode torná-lo eficaz pela fé e nem por qualquer outra virtude,
mas ele pode se tornar ineficaz se não houver a intenção de recebê-lo.
Os teólogos medievais seguiram neste mesmo diapasão de Agostino
de Hipona. Duns Scotus (1265-1308) afirma que “sacramento é um sinal sensível, ordenado
para a salvação do ser humano itinerante, representando eficazmente, por instituição
divina, a graça de Deus”. Segundo Tomás de Aquino, na terceira parte da Suma
teológica (60.2), sacramento “é o sinal de uma realidade sagrada enquanto
santifica os homens”. O Concílio de Trento declarou que os sacramentos “contêm
a graça que eles representam e conferem essa graça àqueles que não colocam obstáculo
a isso”.
Os reformadores magistrais discordaram do conceito sacramental
da Idade Média ensinada pela Igreja Católica. Martinho Lutero descartou de imediato
quatro dos sete sacramentos medievais – a confirmação, a unção de enfermos, a ordem
e o matrimônio – em sua obra Do cativeiro babilônico da igreja, publicada em 1520.
Depois, ele deixou de fora também a penitência. Segundo Lutero, para ser
reconhecido como um sacramento, um ato deve ter sido instituído pessoalmente
por Cristo nos evangelhos; nesse caso, apenas dois rituais, o batismo e a Ceia
do Senhor, preenchem esses requisitos. Ulrico Zuínglio dizia que o sentido
etimológico da palavra sacramentum indica um ato de iniciação ou juramento e
com isso negava que os sacramentos tenham qualquer poder para libertar a
consciência. Os reformadores rejeitaram o ex opere operato e não reconheceram a
eficácia salvífica dos sacramentos.
As ordenanças
A Reforma Protestante trouxe mudanças radicais na teologia que
culminaram na ruptura com a Igreja Católica. Havia necessidade de novas
terminologias nos rituais e nas liturgias. A maioria dos reformadores manteve a
nomenclatura tradicional “sacramento”, mas com conceituação diferente; porém,
grande número descartou a terminologia católica e adotou “ordenanças”. Além desse
conceito diferente e da nova terminologia, esses rituais foram reduzidos a dois:
o batismo e a Ceia do Senhor.
As ordenanças não produzem nenhuma mudança espiritual em
quem se submete ao batismo e participa da Ceia do Senhor. Mas isso não diminui
a sua importância. Antes, pelo contrário, são de grande valor. Esses rituais
são ordens de nosso Senhor Jesus Cristo, pois Ele mesmo pediu para ser batizado:
“Eu careço de ser batizado por ti, e vens tu a mim? Jesus, porém, respondendo, disse-lhe:
Deixa por agora, porque assim nos convém cumprir toda a justiça. Então, ele o
permitiu” (Mateus 3.14, 15). E também, por se tratar de um símbolo da nossa união
com Ele e, ao mesmo tempo, a confissão pública dessa união (Romanos 6.3-5). A
Ceia do Senhor é o memorial de Sua morte em nosso lugar (1 Coríntios 11.23-26),
razão pela qual nunca os crentes tratam essas coisas sagradas com leviandade.
Assim, o batismo em águas e a Ceia do Senhor foram instituídos por ordem de Jesus
para que fossem observadas na igreja não porque transmitem algum poder místico
ou graça salvífica, mas porque simbolizam o que já aconteceu na vida de quem
aceitou a salvação de Cristo.
As Assembleias de Deus adotam o termo “ordenança” no lugar
de “sacramento” e reconhece como ordenança apenas o batismo e a Ceia do Senhor:
“São duas as ordenanças da Igreja: o batismo em águas e a Ceia do Senhor. Isso
se explica porque somente o batismo e a Ceia do Senhor foram ordenados por Jesus:
o batismo em águas: ‘Portanto, ide, ensinai todas as nações, batizando-as em
nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo’ (Mateus 28.19); e a Ceia do
Senhor: ‘Tomando o pão e tendo dado graças, partiu-o e deu aos discípulos,
dizendo: Este é o meu corpo que é dado por vós; fazei isto em memória de mim.
Depois da ceia tomou do mesmo modo o cálice, dizendo: Este cálice é a nova
aliança em meu sangue, que é derramado por vós’ (Lucas 22.19, 20). Rejeitamos o
termo ‘sacramento’ e usamos a palavra ‘ordenança’, do latim ordo, ‘fileira,
ordem’. Tanto o batismo em águas como a Ceia do Senhor foram instituídos por Jesus
para que fossem observados pela Igreja” (Declaração de Fé das Assembleias de
Deus).
A ordenança é um rito simbólico universal e pessoal que
aponta para as verdades centrais da fé cristã e foi instituída por ordem ou mandamento.
Jesus “ordenou que fossem observadas na Igreja, não porque transmitem algum poder
místico ou graça salvífica, mas porque simbolizam o que já aconteceu na vida de
quem aceitou a obra salvífica de Cristo” (Teologia Sistemática – Uma
Perspectiva Pentecostal).
O Batismo
Há consenso geral sobre a importância do batismo em águas e o
seu reconhecimento como sacramento ou ordenança. Todos concordam que se trata
de um rito de iniciação na fé cristã desde o período apostólico. É verdade que
há algumas divergências periféricas sobre o tema entre os vários grupos evangélicos,
mas nada que se compare ao sistema católico romano. O batismo, segundo a teologia
católica romana, está completamente fora das Escrituras Sagradas no tocante à
natureza e à eficácia, no que diz respeito ao modo de aplicar e quem aplicar de
maneira adequada. O Catecismo da Igreja Católica segue o pensamento da
patrística, que o batismo purifica, e dessa forma, ensina que os efeitos do
batismo são a purificação dos pecados e a regeneração do Espírito Santo: “Os
dois efeitos principais são, pois, a purificação dos pecados e o novo
nascimento no Espírito Santo (...) Pelo batismo, todos os pecados são perdoados:
o pecado original e todos os pecados pessoais, bem como todas as penas
do pecado” (1262, 1263) – o grifo não é nosso.
Entendemos que o batismo não é essencial para remissão de
pecados. O Novo Testamento mostra que o referido rito não é para salvação, mas
para quem já é salvo, para o iniciado na fé cristã: “Quem crer e for batizado
será salvo; mas quem não crer será condenado” (Marcos 16.16). A segunda cláusula
não diz: “quem não for batizado será condenado”. João batizava as pessoas depois
de manifestarem “frutos dignos de arrependimento” (Mateus 3.8; Lucas 3.8); as pessoas
batizadas no Dia de Pentecostes haviam primeiramente recebido a palavra (Atos
2.41). O malfeitor crucificado ao lado do Senhor Jesus não foi batizado, no
entanto Jesus lhe disse: “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso”
(Lc 23.43). Essa prática continuou pelo menos nas primeiras décadas depois do período
apostólico. A Didaché, um documento da igreja da primeira metade do século 2, registra:
“Ninguém coma nem beba da Eucaristia, se não tiver sido batizado” (9.5). O
termo “eucaristia”, do grego εὐχαριστία
(eucharistía), literalmente significa “ação de graças, agradecimento”,
mas nunca se refere à Ceia do Senhor nas 15 vezes em que essa palavra aparece no
Novo Testamento (Atos 24.3; 1 Coríntios 14.14; 2 Coríntios 4.15). Esse rito é
chamado de “Ceia do Senhor” (1 Coríntios 11.20) e aparece também como “cálice
de bênção” (1 Coríntios 10.16).
O batismo em águas é o rito que simboliza o início da vida
espiritual. Como afirmam William W. Menzies e Stanley M. Horton em Doutrinas
Bíblicas – Os Fundamentos da Nossa Fé, é um testemunho público de “nossa identificação
com Jesus, em sua morte e ressurreição, que tornou possível a nossa vida que
temos nEle (Romanos 6.1-4)”. Trata-se de um ato significativo e importante em que
crente em Jesus é mergulhado nas águas, o corpo inteiro de uma só vez, “em nome
do Pai, e do Filho e do Espírito Santo” (Mateus 28.19) conforme ordenou o
Senhor Jesus.
A palavra “batismo” significa “imersão”, do verbo grego βαπτίζειν
(baptizein), “batizar, mergulhar”. A ilustração paulina do batismo em
águas reforça a do batismo por imersão (Romanos 6.3, 4; Cl 2.12). O Novo Testamento
deixa claro que o ato era realizado por imersão: “Porque havia ali muitas águas;
e vinham ali e eram batizados” (João 3.23); “E, sendo Jesus batizado, saiu logo
da água” (Mt 3.16); “E mandou parar o carro, e desceram ambos à água, tanto
Filipe como o eunuco, e o batizou. E, quando saíram da água, o Espírito do Senhor
arrebatou a Filipe” (Atos 8.38, 39). Todas essas declarações são evidências de
um batismo por imersão.
A ideia equivocada de que a água do batismo purifica pecado
contribuiu para a introdução do batismo infantil na igreja. Não há indício
dessa prática no Novo Testamento, mas o Catecismo da Igreja Católica afirma:
“Por nascerem com uma natureza decaída e manchada pelo pecado original, também
as crianças precisam do novo nascimento no batismo” (1250), e alega mais adiante:
“A prática de batizar as crianças é uma tradição imemorial da Igreja. É
atestada explicitamente desde o segundo século” (1252). O Catecismo não
apresenta nenhuma fonte que confirme tal declaração. O que se sabe é que a Didaché
instrui: “Àquele que vai ser batizado, você deverá ordenar jejum de um ou dois
dias” (7.4); Tertuliano de Cartago (155-224), em sua obra Sobre o Batismo,
prefere que o batismo seja adiado até que os bebês cheguem à idade de
discernimento.
A prática do batismo infantil no catolicismo se fundamenta basicamente
na interpretação de que o batismo é um meio da graça salvadora, que o batismo
purifica pecado. Todos os reformadores magistrais rejeitaram a compreensão
católica sobre a eficácia do batismo, mas não há unanimidade sobre quem deve recebê-lo
de maneira adequada. Alguns resquícios, no entanto, permaneceram na teologia dos
reformadores, como o batismo infantil. O batismo infantil permanece ainda hoje
em grande parte da teologia evangélica, mas não está baseado na necessidade da
purificação do pecado original ou na necessidade de regeneração batismal.
Lutero dizia que negar o batismo às crianças pelo fato de
ainda não ter fé era o mesmo que uma nova forma de justificação pelas obras. Zuínglio
dizia que o “batismo é a iniciação tanto daqueles que já creram como dos que vão
crer”. Assim, os bebês são comprometidos a seguir a Cristo antes de qualquer experiência
pessoal da fé. Mas, depois, ele deu ênfase à analogia entre a circuncisão dos
israelitas e o batismo. A ideia era reforçar a unidade essencial entre a antiga
e a nova alianças. Zuínglio defendia a ideia de que se deve aplicar o sinal da
aliança aos bebês: “No batismo, então, os bebês se tornam herdeiros das promessas
da aliança de Deus, para serem realizados por uma fé futura”. Ainda hoje, muitos
consideram o batismo como sinal e selo da aliança, que teria sido substituído pela
circuncisão dos israelitas.
Os anabatistas questionavam algumas ideias de Lutero e Calvino
e se opuseram ao batismo infantil. Eles negavam a validade do batismo de bebês,
mas inicialmente não batizavam novamente aqueles que haviam sido batizados quando
crianças. O batismo das pessoas que haviam sido batizadas na infância só
começou em janeiro de 1520, em Zurique, Suíça. Como essas pessoas haviam sido
batizadas na infância, seus opositores chamaram os seguidores do movimento de “anabatistas”,
termo que significa “rebatizadores”. Essa palavra era considerada inadequada, pois
para eles essa prática não era um rebatismo, já que o batismo infantil não tinha
validade bíblica e essa não era a única doutrina distintiva deles. O movimento
se fortaleceu entre 1525 e 1528, principalmente em Estrasburgo e Augsburgo.
Muitos grupos anabatistas já existiam antes da Reforma, entre eles estão os
valdenses.
O batismo é somente para os crentes e é necessário primeiro crer
em Jesus e também pedir para ser batizado (Atos 8.36-38). Para isso é necessário
arrependimento e fé. A criança não preenche esses requisitos. O Novo Testamento
mostra o batismo seguido da fé (Atos 2.41; 8.12). Isso não deixa margem para o
batismo infantil. Os que defendem o pedobatismo costumam apelar para o
testemunho de Lídia (Atos 16.15), do carcereiro de Filipos (At 16.33, 34) e de
Crispo, o principal da sinagoga de Corinto, juntamente com os demais que
receberam a Jesus como seu Salvador (Atos 18.8), e a família de Estéfanas, que o
apóstolo Paulo batizou (1 Coríntios 1.16). Nenhum desses testemunhos, porém,
fala de criança. É uma interpretação forçada querer introduzir o batismo de
crianças nessas passagens bíblicas.
Por sua vez, a teologia da maioria dos movimentos unicistas
destoa do padrão evangélico: o arrependimento, o batismo em água e o
recebimento do Espírito Santo juntos constituem a completa experiência da salvação.
Além disso, os unicistas batizam somente em nome de Jesus e não “em nome do
Pai, e do Filho e do Espírito Santo”, como ordenou o Senhor Jesus (Mateus
28.19).
A Ceia do Senhor
A Ceia do Senhor é o rito da comunhão e significa a
continuação da vida espiritual (1 Coríntios 11.20). A Ceia do Senhor foi instituída
diretamente pelo Senhor Jesus após a refeição da Páscoa na companhia de Seus discípulos
(Mateus 26.26-28). Desde então, a Igreja vem celebrando esse memorial e proclamando
a nova aliança: “Semelhantemente também, depois de cear, tomou o cálice,
dizendo: Este cálice é o Novo Testamento no meu sangue; fazei isto, todas as vezes
que beberdes, em memória de mim” (1 Coríntios 11.25). Essa solenidade envolve o
passado (a morte de Jesus), o presente (a nossa comunhão) e o futuro (a Sua
Segunda Vinda): “Porque, todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice,
anunciais a morte do Senhor, até que venha” (1 Coríntios 11.26).
Os católicos romanos ensinam que, no ato da consagração, o
pão e o vinho são literalmente transformados no verdadeiro corpo e sangue de Cristo,
em uma mudança metafísica. Eles afirmam que essa mudança é na essência ou
substância, não nos “acidentes”, como eles chamam, mantendo o pão a forma, a textura
e o sabor do pão. Essa doutrina é chamada de “transubstanciação”, do latim trans,
“mudança”, e substantia, “substância, natureza”. Ou seja, a
transubstanciação é a mudança da substância do pão consagrado no corpo de Cristo
e, da mesma forma, a mudança da substância do vinho consagrado no sangue de Cristo.
O Catecismo da Igreja Católica declara: “No santíssimo sacramento da Eucaristia
estão contidos verdadeiramente, realmente e substancialmente o Corpo e o
Sangue juntamente com a alma e a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo e, por conseguinte,
o Cristo todo” (1374) – os grifos não são nossos – e continua: “É pela conversão
do pão e do vinho no Corpo e no Sangue de Cristo que este se torna presente em
tal sacramento” (1375) – o grifo não é nosso. Essa crença foi aprovada no
Concílio de Latrão IV em 1215 e reafirmada no Concílio de Trento.
As palavras de Jesus: “Isto é o meu corpo” (Mateus 26.26) e “Isto
é o meu sangue” (Mateus 26.28) são os dois elementos da Ceia do Senhor. O
Senhor Jesus estava pessoalmente com os Seus discípulos quando disse essas
palavras, e isso mostra que o corpo e o sangue nas passagens não são literais, mas
trata-se de uma linguagem metafórica (1 Coríntios 5.8).
Durante a Reforma Protestante, surgiram novas
interpretações. Lutero rejeitou a doutri na da transubstanciação, mas defendia a
ideia de que o corpo e o sangue de Jesus estão presentes “em, com e sob” o pão e
o vinho, mas as moléculas não são transformadas em carne e sangue. Essa
doutrina foi chamada mais tarde de “consubstanciação”. No entendimento dos católicos
romanos, o pão e o vinho são o corpo e o sangue físico de Cristo; na
concepção luterana, o pão e o vinho contêm o corpo e o sangue físico. As
igrejas reformadas defendem a presença espiritual do corpo e do sangue,
mas o apóstolo Paulo não fala dessa presença na reunião, porque Jesus já está presente
conosco e principalmente nos cultos (Mateus 18.20; 28.20; João 14.23). Zuínglio,
reformador suíço contemporâneo de Lutero, ensinava que esses elementos são
emblemas que representam o corpo e o sangue de Jesus. Na verdade, esses elementos
são metafóricos, representando o corpo e o sangue de Cristo.
Em 1529, Lutero e Melanchton estiveram com Zuínglio e seu companheiro
Ecolampádio em Marbugo, sob os auspícios de um príncipe protestante da
Alemanha, para unificar esses movimentos, mas não houve acordo. Houve consenso em
14 pontos, menos nesse. O ponto crucial dessa diferença era a presença ou a
ausência do corpo físico de Cristo na Ceia do Senhor, pois Lutero enfatizava a
interpretação literal das palavras: “Isto é o Meu corpo”. Zuínglio, por outro
lado, alegava que um corpo físico não pode estar em dois lugares ao mesmo
tempo. Não houve unificação, mas um acordo de respeito mútuo.
Os outros cinco ritos
A Igreja Católica Romana
reconhece sete sacramentos. Ela não os inventou, mas os aperfeiçoou e adaptou
de forma criativa, inserindo passagens bíblicas e os conceitos usados desde a patrística
e que foram ampliados na Idade Média. De onde ela tirou esse número? Pedro Lombardo
(1100-1160) considerou como sacramentos os sete rituais: batismo, confirmação, eucaristia,
penitência, unção, ordem e matrimônio. A ideia de sete sacramentos é invenção dele.
O número sete é ainda hoje tido por muitos como o número da perfeição. Na Idade
Média, representava o número das coisas sagradas e a perfeição dos dons de
Deus, como a semana de sete dias era o símbolo da perfeição de Sua criação.
Tomás de Aquino (1224-1274) justifica o número sete na
terceira parte da Suma Teológica: “Os sacramentos da Igreja visam duas finalidades:
aperfeiçoar o homem no que concerne ao culto divino de acordo com a religião da
vida cristã e apresentar um remédio contra a rebelião do pecado. O número de sete
sacramentos se justifica sob os dois pontos de vista”. Ele alega em seguida a semelhança
que há entre a vida espiritual e a vida corporal e vice-versa. Este argumento
aparece no Catecismo (1210). Esses sete sacramentos estão classificados em três
grupos: os sacramentos da iniciação cristã, os sacramentos da cura e “os
sacramentos que estão a serviço da comunhão e da missão dos fiéis” (1211). A
ideia de Agostinho de Hipona de que o sacramento é um “sinal externo e visível
de uma graça interna e invisível” continua valendo na Igreja Católica.
O Catecismo da Igreja Católica declara que “os sacramentos
da nova lei foram todos instituídos por Nosso Senhor Jesus Cristo” (1114). E
vai mais além, pois considera os sacramentos como a virtude que saiu do corpo
de Jesus na cura da mulher que sofria de fluxo de sangue: “Como ‘forças que saem’
do corpo de Cristo, sempre vivo e vivificante, ações do Espírito Santo em
operação no seu Corpo que é a Igreja, os sacramentos são ‘as obras primas de
Deus’ na Nova e Eterna Aliança” (1116). Essas declarações são interpreta-ções
aleatórias e desconectadas do pensamento bíblico.
São três os sacramentos da iniciação cristã segundo o Catecismo:
batismo, confirmação e eucaristia. Reconhecemos batismo e eucaristia (a Ceia do
Senhor) como ordenanças instituídas pelo Senhor Jesus, mas discordamos dos
católicos quanto à natureza, eficácia, maneira de sua ministração e a quem ministrar.
O sacramento da confirmação sequer aparece na Bíblia e não tem nenhum sinal tangível
vinculado a ela. O Catecismo vincula de maneira aleatória ao suposto
sacramento as passagens bíblicas que falam das manifestações do Espírito Santo,
batismo no Espírito Santo, dons espirituais, fruto do Espírito. Tal ensino
mistura ensino bíblico com Tradição e Magistério, por isso há divergência
hermenêutica em relação aos evangélicos.
A penitência era uma prática antiga na vida da igreja que se
iniciou no século 2. Seu registro mais antigo aparece no Pastor de Hermas
(Mandamentos, IV) e em Tertuliano (A Penitência, VII.9,10). O
problema era como lidar com os pecados cometidos depois do batismo. A solução para
quem peca após a iniciação cristã é o perdão obtido pela penitência, mas o penitente
só tinha direito a uma penitência na vida. Nesse período, se associava o batismo
em água à ideia de remissão de pecados. A penitência tornou-se com o passar do
tempo um sacramento da Igreja Católica. Com o estabelecimento formal da
confissão auricular em 1215, no IV Concílio de Latrão, a confissão veio a ser
um meio de impor penitências. O Concílio de Florença em 1439 formalizou a penitência
como um sacramento.
Uma tradução inadequada na Vulgata servia de base para a
Penitência, segundo Erasmo de Roterdã. O humanista italiano Lorenzo Valla
(1407-1547) havia descoberto diversos textos da Vulgata que não representava o
equivalente grego no Novo Testamento, como paenitentiam agite adpropinquavit
enim regnum caelorum, “Fazei penitência, porque está próximo o reino dos
céus” (Mateus 4.17 – Matos Soares). O texto grego, dizia Erasmo, deveria ser
traduzido “arrependam-se, porque está próximo o reino dos céus”. Havia uma série
de crenças medievais na teologia católica romana fundamentadas em textos dessa
natureza e a penitência era uma delas.
O sacramento da unção, também conhecido como extrema unção, não
é um sacramento ou ordenança. Como dizia Lutero, “não foi pessoalmente instituída
por Cristo”. A unção dos enfermos é uma prática bíblica (Marcos 6.13) que nós
adotamos conforme a Declaração de Fé das Assembleias de Deus. A ênfase,
entretanto, não está no azeite, mas, sim, na oração da fé, que salva o doente: “Está
alguém entre vós doente? Chame os presbíteros da igreja, e orem sobre ele, ungindo-o
com azeite em nome do Senhor; e a oração da fé salvará o doente, e o Senhor o
levantará; e, se houver cometido pecados, ser-lhe-ão perdoados” (Tiago 5.14). É
muito comum entre nós o ministério de cura, mas se trata de um ensino bíblico e
não de uma ordenança.
O sacramento da ordem é o ritual católico para consagrar ou ordenar
sacerdotes. Os teólogos católicos romanos creem que a Igreja Católica é a continuação
da encarnação do Senhor Jesus Cristo e, portanto, a mediadora da graça, se
posicionando como a segunda pessoa de Cristo, como encarnação ininterrupta do
Cristo que subiu ao céu. A Igreja Católica se coloca a si mesma entre Deus e o
mundo. Segundo o Catecismo da Igreja Católica, isso vale também para a
hierarquia da igreja com o papa no topo, seguido dos bispos e padres. O sacramento
católico da ordem ou consagração diz respeito à ordenação de sacerdotes e,
segundo o Catecismo, os homens consagrados pela ordem têm capacidade de mediar
a graça.
A ordem do sacramento “transcende uma simples eleição,
designação, delegação ou instituição pela comunidade, pois confere um dom do
Espírito Santo que permite exercer um ‘pode sagrado’ (‘sacra potestas’) que só
pode vir do próprio Cristo através de sua Igreja” (1538) – o grifo não é nosso.
O mesmo Catecismo afirma mais adiante: “O mesmo acontece com o único
sacerdócio de Cristo: tornou-se presente pelo sacerdócio ministerial, sem
diminuir em nada a unicidade do sacerdócio de Cristo: Por isso, somente Cristo é
o verdadeiro sacerdote; os outros são seus ministros” (1545). A verdade é que o
sacramento da ordem não tem fundamentação bíblica. O que a Bíblia revela sobre
o assunto?
A salvação não depende de intermediação de qualquer
instituição religiosa, nem da igreja, e muito menos da Igreja Católica. A
salvação está unicamente no nome de Jesus (João 14.6; Atos 4.12): “Porque todo aquele
que invocar o nome do Senhor será salvo” (Romanos 10.13); “Porque há um só Deus
e um só mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, homem” (1 Timóteo 2.5).
São três os principais sistemas de governo espiritual da Igreja:
episcopal, presbiteriano e congregacional. No sistema episcopal, a autoridade
espiritual é delegada por Deus ao bispo, ou a uma ordem de bispos, como o modelo
papal; no sistema presbiteriano, a autoridade regional é conferida aos presbitérios,
e a autoridade nacional, aos concílios; no sistema congregacional, a autoridade
é local, não existindo uma autoridade oficial externa. Todas essas formas de
governo têm suas variações. Os defensores de cada um desses sistemas acreditam
ter fundamentação bíblica. Os episcopais acreditam que Tiago exercia a autoridade
de bispo, pois parece ter presidido a assembleia de Jerusalém: “E, havendo-se
eles calado, tomou Tiago a palavra, dizendo: Varões irmãos, ouvi-me” (Atos 15.13).
Mas, no modelo presbiteriano, Tiago é interpretado como moderador, pois afirma
na carta enviada às igrejas: “Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós” (Atos
15.28), e não “Pareceu bem a mim, Tiago”, ou algo similar. Mas, outros veem em Tiago
um modelo congregacional, pois ele aparece como pastor de uma igreja local, de Jerusalém:
“Acenando-lhes ele com a mão para que se calassem, contou-lhes como o Senhor o
tirara da prisão e disse: Anunciai isto a Tiago e aos irmãos. E, saindo, partiu
para outro lugar” (Atos 12.17), sendo este um modelo eclesiástico que parece se
identificar com o aplicado por Paulo e Barnabé (Atos 14.23). Temos, então, um exemplo
das diversas interpretações sobre o governo espiritual da Igreja. Nenhum desses
sistemas é definitivo e, além disso, há pontos de intersecção em todos eles.
Não há no Novo Testamento uma forma dogmática de governo da Igreja que sirva
como regra fixa de governo eclesiástico.
Sobre o suposto sacramento do matrimônio, cabe ressaltar que
o casamento não é um sacramento porque não foi ordenado por Cristo, mas instituído
por Deus na Criação (Gênesis 2.24). Grande parte da teologia medieval usava como
base para justificar o matrimônio como sacramento a passagem de Efésios 5.31,
onde a Vulgata Latina traduz o termo grego mystērion por sacramentum.
Erasmo de Roterdã frisou que essa palavra devia ser traduzida simplesmente por
“mistério” e que não havia qualquer referência ao matrimônio.
A Igreja Católica Romana adotou, adaptou e aperfeiçoou os
conceitos e as ideias dos sacramentos inventados pela patrística e defendidos pelos
teólogos e concílios da Idade Média. Segundo Lutero, os sete sacramentos no contexto
católico romano são uma forma de legitimar o poder da Igreja Católica Romana.
Em sua obra Sobre o Cativeiro Babilônico, ele volta a defender o sacerdócio de todos
os crentes e afirma que, por meio dos sacramentos, Roma subjugará as pessoas, embora
a Igreja não seja capaz de apagar o pecado das pessoas pelo batismo.
Lutero e os reformadores do século 16 examinaram a tradição
da patrística e da Idade Média, submeteram-na às Escrituras Sagradas e adotaram
apenas o ensino que eles consideravam ter fundamentação bíblica. Coisa que o
Concílio de Trento não fez. O Concílio de Trento reconheceu os sete sacramentos
e pronunciou um anátema a quem não aceitasse todos os sete sacramentos. O Concílio
do Vaticano II manteve a decisão tridentina.
por Esequias Soares
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