O processo de apostasia

O processo de apostasia


A apostasia é o resultado de um processo claro que começa com a incredulidade e é descrito em detalhes na Palavra de Deus

A apostasia não é apenas uma possibilidade, mas uma realidade. Negá-la é fechar-se para a revelação profética das Escrituras. Eis o profeta das lágrimas a exortar: “Assim diz o Senhor: Que injustiça acharam vossos pais em mim, para se afastarem de mim, indo após a vaidade e tornando-se levianos?” (Jeremias 2.5). O Senhor havia libertado Israel do Egito e guiando-o pela “terra de sequidão e sombra de morte” até ser introduzido “numa terra fértil” (Jeremias 2.6-7), mas o povo trocou o seu Deus por falsos deuses; a sua Glória por efemérides; o Manancial de Águas Vivas por cisternas que não retém águas (Jeremias 2.11-13). Para o profeta, a apostasia de Israel era paradoxal e insana (Jeremias 2.14-19, 20-28). O jovem profeta vê diante de si um paradoxo: se a lei impõe a impossibilidade de reaver o casamento após a separação, como Israel reverterá sua apostasia do Senhor (Jeremias 3.1-5)? O Senhor queixa-se pela rebeldia e insanidade de Israel. A apostasia já não era improvável, mas possível; não era ficta, mas real (Romanos 10–11; 1 Coríntios 10.1-13).

Conceitos e Definições

O termo traduzido por “apostasia” (mešûbhâh) pela ARC, em Jeremias 2.19, significa “rebeldia”, “infidelidade”, “perversão” e “desvio”. Nas páginas da Nova Aliança, o substantivo “apostasia” é a transliteração do grego ποστασα. O vocábulo aparece em duas passagens bíblicas importantes: a primeira em Atos 21.21, para referir-se ao “abandono” da fé judaica e conversão à fé cristã; e a segunda em 2 Tessalonicenses 2.3, para designar uma futura rebelião mundial contra Cristo, provocada por intensa incredulidade difundida pelo Anticristo (1 Timóteo 4.1). Neste caso, a difusão da apostasia em todas as camadas - religiosa, cultural e política - será um dos sinais contundentes da aproximação da parusia (2 Timóteo 4.3-4). Apostasia, então, é tanto a deserção ou abandono de uma crença quanto a revolta contra uma fé dantes professada. Trata-se de um “repúdio” à crença professada anteriormente (Jeremias 3.1,20; Mateus 19.7; Marcos 10.4).

Contudo, o substantivo “apostasia” apenas indica a coisa de que se trata, enquanto o adjetivo “apóstata”, a como é a coisa; e o verbo, ao que a coisa faz. Assim, o verbo aphistêmi (φστημι) significa “desviar”, “virar-se contra alguém”, “rebeldia”, “abandono”, “apostasia”. O termo aparece em Lucas 8.13 para descrever os que recebem a Palavra com alegria, mas por falta de raiz se “desviam” da fé após a tentação. Em Hebreus 3.12, a comunidade ­fiel é admoestada à retidão de coração para não se “apostatar do Deus vivo”. As causas para essa apostasia contra Deus são “coração mal e infi­el” e “endurecimento pelo pecado” (Hebreus 3.12,13). São assim os passos de uma pessoa que paulatinamente se apostata da fé: primeiro erra no coração, tornando-o incrédulo (Romanos 10.10), para depois tê-lo endurecido pelo pecado e, como consequência, se “afasta do Deus vivo”. Em todos esses casos, há uma ação rebelde deliberada e premeditada. Há um agente que age voluntária e efi­cazmente contra Deus e a fé da qual fazia parte.

Observe que o termo “endurecido” em Hebreus 3.13, no grego sklêrótês (σκληρότης), procede de uma raiz que significa “seco”, “duro” e fi­guradamente “insensível”, “teimoso” e “obstinado” – é dessa palavra que chegou à língua portuguesa “esclerose”, “esclerosado”. Essas imagens verbais descrevem uma reação contrária do apóstata à voz dúlcida do Espírito (Hebreus 3.7-11; Efésios 4.18-19; 1 Timóteo 4.2). O apóstata resiste aos apelos do Espírito em sua consciência. Nessas perícopes, o hebraísmo “coração” (καρδα) aparece concomitante com “mente” (νοός) e “entendimento” (διανοα) para descrever a disposição irredutível da pessoa em resistir ao Espírito, razão pela qual Davi orou: “Conserva isto para sempre no intento dos pensamentos do coração do teu povo; e encaminha o seu coração para ti” (1 Crônicas 29.18; Isaías 46.12; Colossenses 1.21). Há uma inclinação e uma disposição pecaminosas da vontade, da emoção e da razão da pessoa que as levam ao pecado de apostasia, podendo culminar até mesmo no pecado de impenitência (Hebreus 6.4-6), que seria o zênite de toda apostasia. O mesmo coração que crê (Romanos 10.10) é o mesmo que descrê; a mesma boca que confessava a fé (Romanos 10.10) é a mesma que passa a blasfemá-la (1 Timóteo 1.20).

Deste modo, a apostasia pode começar com a incredulidade (Romanos 10.10; 1 Timóteo 4.1) – que é o desprezo pela revelação da verdade e a recusa pessoal de lhe prestar assentimento. Depois, caso não seja contida a tempo, pode avançar para a heresia, que se caracteriza com a recusa e a dúvida da verdade divina; e, a seguir, caso não se interrompa o processo, vem a apostasia, que se manifesta pelo repúdio consciente e total da fé cristã e, por fim, como condição que pode anteceder ao pecado de impenitência, o cisma, que é a hostilidade direcionada contra a fé, contra a Escritura, contra a comunhão dos santos, e contra o próprio Deus, Cristo e o Espírito Santo (1 Timóteo 1.19-20; Hebreus 6.4-6). Esses passos descrevem o que disse Paulo em Gálatas 5.4: "da graça tendes caído". Ou o que a­rmou em 1 Timóteo 1.19, como “naufrágio na fé”.

Portanto, o pecado de apostasia é cometido pelos domésticos da fé, pelo crente. Trata-se de uma transgressão cometida por alguns crentes no âmbito da comunidade cristã. O crente, outrora sincero à sua pro­fissão de fé, dirige-se agora contra a fé amada e professada, virando as costas para Cristo.

O fato de em algum momento o cristão vacilar na fé, como ocorrera a Pedro (Mateus 26.31-35,69-75) e muitos outros discípulos (João 6.66; Mateus 26.56), não significa um estado de rebelião ou apostasia, pelo simples fato de a pessoa, nalgumas vezes, carregar o peso e a dor de seu afastamento, como Pedro que “chorou amargamente” (Mateus 27.75) e, arrependido e converso, tornou-se uma das colunas do ministério apostólico (João 21.15-19; Gálatas 2.9-12). A apostasia é muito mais do que um deslize momentâneo.

Contudo, Paulo refere-se a Himeneu e Alexandre como exemplos dos que haviam rejeitado a fé e passado a blasfemá-la (1 Timóteo 1.20). Blasfêmia (βλασφημα) aqui pode indicar desde uma difamação contra Paulo até uma irreverência ímpia às coisas divinas, a Deus, ou à fé cristã. A imprecação paulina “os quais entreguei a Satanás” (veja 1 Coríntios 5.5) é motivada provavelmente por uma injúria caluniosa e difamatória contra a fé, a comunidade cristã e Paulo, e que merecia um caráter disciplinar severo.

Judas não se arrependeu, mas sentindo tristeza e grande remorso, fez a sua desvairada e inútil expiação por si mesmo (Mateus 27.3-5; Atos 1.16-18). Considere que é do termo traduzido pela ARC como “arrependimento” (metaméllomai) em Mateus 27.3 que se deriva ametamélêtos (μεταμέλητος), que significa “irrevogável”, “sem arrependimento”, “impenitente”, como em Romanos 2.5 (“Mas, segundo a tua dureza e teu coração impenitente, entesouras ira”), razão pela qual a versão ARA traduz Mateus 27.3 por “remorso”. Judas foi moído emocionalmente, mas não obteve o tipo de arrependimento (μετανοέω) que opera para a conversão e restauração da alma. Ele não pôde ser “renovado para arrependimento” (Hebreus 6.6).

Pelo visto, alguns pecados podem levar à impenitência pela natureza ímpia e consciente daquele que o pratica. É o caso da blasfêmia contra o Espírito Santo (Mateus 12.22-32; Lucas 11.14-23) e da apostasia, conforme Hebreus 6.4-6; 10.29.

O autor aos Hebreus lança aos leitores cristãos uma lógica irrefutável: “Porque é impossível que os que já uma vez foram iluminados e provaram o dom celestial, e se fi­zeram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e as virtudes do século futuro, e recaíram sejam outra vez renovados para arrependimento; pois assim, quanto a eles, de novo cruci­ficam o Filho de Deus e o expõe ao vitupério”.

O texto descreve tanto uma impossibilidade quanto uma possibilidade. A possibilidade é a de o crente se apostatar depois de experimentar os dons salví­ficos. A impossibilidade é de o apóstata, depois de ter sido feito “participante do Espírito Santo”, ser “renovado para arrependimento”. Para entendermos esse contexto é necessário frisar que os autores da Nova Aliança ainda traziam consigo a imediatidade dos juízos divinos contra os rebeldes e apóstatas tantas vezes descritos na Escritura que interpretavam (Hebreus 10.26-31; 1 Coríntios 10): morte dos idólatras (Êxodo 32.25-29); de Nadabe e Abiú (Levíticos 10); dos murmuradores (Números 14.26-38); de Ananias e Sa­fira (Atos 5.1-11); de Herodes (Atos 12.23), entre outros juízos. Acrescente o fato de que, sendo o escritor aos Hebreus um hermeneuta do Antigo Testamento, não encontrava na Escritura expiação para pecados de apostasia, injúria ao Senhor e voluntários, pois a estes a punição era clara: “pois desprezou a palavra do Senhor e anulou o seu mandamento; totalmente será extirpada aquela alma, e a sua iniquidade será sobre ela” (Números 15.30,31). Contudo, havia expiação para os de ignorância (Números 15.27,29). Assim, eles esperavam o juízo divino contra aqueles que, tornando-se apóstatas, pisam o Filho de Deus, têm por profano o sangue do testamento com que foram santifi­cados e fazem agravo ao Espírito da graça (Hebreus 10.29). Para o autor sagrado, "horrenda coisa é cair nas mãos do Deus vivo" (Hebreus 10.31), e tais pecados levam à execução, talvez até imediata, dos juízos divinos.

Sob este aspecto, é necessário considerar seriamente o que o texto diz sobre o perigo da apostasia; no entanto, não se deve perder de vista o alcance do sacerdócio e da expiação de Cristo, e da segurança salvífi­ca que nEle temos, que perdoa “qualquer que disser alguma palavra contra o Filho do Homem” (Lucas 23.34), mas a “blasfêmia contra o Espírito não será perdoada aos homens, nem neste século nem no vindouro” (Mateus 12.31-32). Um dos sinais claros do apóstata é sua completa rejeição à voz do Espírito. Ele a rejeita conscientemente até que não reste mais possibilidade de ser “renovado para arrependimento” pela esclerose do coração. Se trata assim de uma atitude contumaz de completo abandono e desprezo à obra salvífi­ca operada pela Trindade Econômica. Por essa possibilidade irreversível, os cristãos neotestamentários são orientados a cuidar de si para que não se tornem apóstatas (2 Tessalonicenses 2.20-12; Hebreus 6.1-6; 10.29-30; 2 Pedro 2.17,21; Judas 11-15)

Os tipos de apostasia

Apostasia contra a fé

Durante o presente excurso, verifi­cou-se que a natureza própria da apostasia é a incredulidade, e o objeto a que se dirige inicialmente é a fé. Como visto, o apóstata é alguém que de modo consciente e deliberado abandona sua con­fissão de fé, desprezando-a, e a combate por meio de difamações, injúrias, blasfêmias entre outros recursos vis. Neste aspecto, ele difere do herege. Resguardado os devidos limites e admoestações bíblicas contra as heresias, o herege não é necessariamente um apóstata, mas alguém que erra em algum princípio doutrinário e, portanto, pode ser convencido e restaurado. Já o apóstata não é alguém que passa a ter um conceito diferente da doutrina, mas uma pessoa que se revolta contra a própria fé, a injuria, a difama e nega os dons salvífi­cos, a graça salvadora de Deus em Cristo, e não atende mais os apelos do Espírito em sua consciência vã e cauterizada. Existe a possibilidade de retorno e arrependimento para o herege, mas pelo que se depreende de vários textos do Novo Testamento, o apóstata não encontra “renovação para arrependimento”. Ele chegou a um estágio de incredulidade e de endurecimento do coração que o faz considerar profano o sangue que o santi­ficara, desprezando o próprio Cristo e toda benefi­cência soteriológica que dEle advém; e com sua rebeldia prática ultraja o Espírito da graça, rejeitando toda possibilidade de ser redimido. Essa forma ativa de apostasia é um pecado de impenitência na qual o apóstata não consegue redimir-se.

Apostasia escatológica

O Novo Testamento apresenta que antes da parusia muitos falsos profetas surgirão e “enganarão a muitos” (Mateus 24.11). O aumento da iniquidade e incredulidade (Mateus 24.12; Hebreus 3.12) preparará o cenário para que muitos apostatem da fé pela operação de espíritos enganadores e de homens hipócritas que falam mentiras (1 Timóteo 4.1-2). Trata-se de um cenário e tempo escatológico para a manifestação do “império da apostasia” e manifestação do homem do pecado, o fi­lho da perdição, que "se opõe e se levanta contra tudo o que se chama Deus ou se adora" (2 Tessalonicenses 2.3-4). Observe que na descrição da manifestação do Anticristo, o cenário no qual ele se revela é o da “apostasia”. A atitude do “homem do pecado” descreve o próprio conceito e definição de apostasia: ele “se opõe e se levanta contra tudo o que se chama Deus ou se adora” (2 Tessalonicenses 2.4). Não se trata apenas de uma posição intelectual contra a crença em Deus, mas uma oposição direta e blasfema contra Deus. A apostasia contra a fé prepara e desenvolve o cenário no qual o Anticristo se manifestará.

Conclusão

Observamos que a apostasia é um pecado dirigido contra a fé, contra Deus, contra Cristo e contra o Espírito Santo. Trata-se de um pecado que é gerado no ventre vil da incredulidade, podendo desenvolver-se numa forma de heresia até culminar como apostasia e cisma contra a fé dantes professada. A apostasia é uma possibilidade ao mesmo tempo em que é impossível a restauração de um apóstata, na classe assinalada pelo escritor aos Hebreus. Deste modo, as duas formas de apostasia estão relacionadas. A apostasia da fé gera a apostasia escatológica e prepara o cenário para a manifestação do maior de todos os apóstatas da fé: o Anticristo.

por Esdras Costa Bentho

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