A terrível sedução das redes

A terrível sedução das redes


Quem está nas redes não está no mundo. Inspirada no conhecido brocardo jurídico “O que não está nos autos não está no mundo”, esta frase não é um plágio, mas também não é inédita. Dando um Google foi possível encontrá-la no contexto de uma frase maior, escrita em um e-book da área do Direito disponível na internet. Mera coincidência. No mencionado e-book, a preocupação do autor está voltada para a influência do mundo virtual nas relações jurídicas e sociais. Aqui, o pensamento está voltado para o reflexo do uso das tecnologias de comunicação na vida da igreja e no exercício de sua missão; e o termo “redes sociais” é usado de forma ampla, incluindo todas as plataformas de comunicação online.

A primeira indagação que surge diante da afirmação de que “Quem não está nas redes não está no mundo” é: será mesmo? É verdade que quem não está nas redes não está no mundo? A segunda reflexão que podemos fazer é: e daí? Fazemos mesmo tanta questão de estar no mundo, mesmo que isso nos custe o alto preço que é cobrado de quem quer estar nas redes?

Talvez seja prudente refletir um pouco sobre o fenômeno das redes sociais e o impacto que elas têm causado (e podem causar) na vida da igreja como instituição e comunidade espiritual. Talvez o tempo seja mais urgente e oportuno para a igreja brasileira, já que em alguns países do mundo ocidental o processo de influência das redes sociais está em fase tão avançada que são menores as chances de reversão de alguns dos prejuízos já vividos pelas igrejas.

A questão posta aqui não é a influência das redes sociais na vida do cristão como indivíduo. Esse é outro assunto (também extremamente importante, mas que não é o tema deste artigo). O que se propõe, neste texto, é uma reflexão a respeito das redes sociais e da igreja como representante e expressão do Reino de Deus na terra, detentora de uma missão espiritual que deve ser desempenhada com sabedoria, humildade, equilíbrio e muito zelo.

A internetilização do Evangelho

É antiga a discussão sobre o cuidado que se deve ter com o uso dos meios de comunicação de massa diante da nocividade patente que apresentam. E isso não é apenas uma questão religiosa, como se pode imaginar, mas um antigo alerta de muitos teóricos seculares, como Marshall McLuhan (1911-1980), expoente pensador da área, autor da notória expressão “aldeia global”.

Não se discute que os meios de comunicação sejam importantes e necessários. O que se considera, invariavelmente, é que a posição sábia a ser adotada é fazer um uso moderado deles, orientado por propósitos bons e bem definidos. Apesar de serem conhecidos os impactos negativos dos avanços tecnológicos, não é correto ignorar a importância das ferramentas modernas para a vida humana, no que se incluem os meios de comunicação. Se o uso equivocado e exagerado das redes sociais e dos demais sistemas de mídia produz graves resultados para a sociedade como um todo, quanto mais para as igrejas! Usá-las sem critérios é uma enorme imprudência. No Brasil, assiste-se ao fenômeno da internetilização do Evangelho (O neologismo é proposital). É verdade que a pandemia contribuiu muito para esse processo, mas não se verifica um retorno saudável à vida comum da igreja. Uma permanência intensa e uma inserção cada vez maior nas redes sociais devem ser vistas com cuidado.

Parece ser nítido que esse processo cavalga livremente, em pistas que já vinham sendo construídas através de um discurso que pregava a necessidade de as igrejas serem mais “relevantes” e de participarem ativamente dos “discursos públicos”. Mas há o risco também desse processo ser instigado por algum nível de vaidade pessoal e institucional, e levar ao avanço ainda maior de um injustificado e ingênuo ingresso nas redes sociais, sem a observância de critérios minimamente necessários.

Não se verifica maiores resistências a este fenômeno nem mesmo em estruturas eclesiásticas consideradas conservadoras. Na área da comunicação, o progressismo está em alta aceleração. Será que não estamos entregando nossa “língua” para ser escrutinada pelo “mundo”? Se quem não está nas redes não está no mundo, talvez seja melhor pensar bem até que ponto queremos estar no mundo – e como isso deve ser feito.

O controle público

A transmissão pela internet de todo e qualquer conteúdo produzido pelas igrejas as torna alvos fáceis de um eventual controle público da comunicação social. Ao tornar nosso discurso um discurso público, não teremos que nos submeter a regras públicas? Até que ponto é sábio publicizar o sagrado, o culto divino? Enquanto mais divulgamos o que falamos nos púlpitos, mais estamos nos entregando ao escrutínio do “mundo”, que, pelo engendramento das leis, poderá nos impor sérias restrições, como já tem ocorrido mundo afora.

Na verdade, sabemos que nem sempre são necessárias leis – no sentido estrito do termo – para que o discurso religioso sofra restrições. As sociedades vão criando suas próprias normas de comunicação, que viram tradições e moldam paulatinamente o discurso público. Com isso, vão sendo repelidas expressões e opiniões sobre determinados temas. Criam-se estruturas de discursos convencionais alinhados com o “politicamente correto”, rechaçando-se tudo o que passa a ser considerado como “desvio” de comunicação, linguagem “inadequada”, “discurso de ódio” etc.

Quando isso ocorre, tendo ou não lei que criminalize a opinião, o grupo social se torna preso a novos códigos linguísticos e padrões de fala comuns, que são homogeneizados ao longo do tempo e eliminam quaisquer expressões que a “sociedade” rejeite. Não é à toa que em muitos países o discurso religioso esteja repleto de restrições já incorporadas ao dia a dia das igrejas. Um rol de conteúdos sobre os quais é proibido falar. Expressões que não se pode usar, principalmente nos púlpitos. A ampla exposição midiática de nossos cultos já não estaria prejudicando o conteúdo de nossas prédicas? Falamos tudo o que precisaríamos falar quando sabemos que estamos falando para o “mundo” via internet e não apenas para a igreja local?

Além do patrulhamento externo, o excesso de envolvimento com o mundo exterior, precipitado mais ainda pelo uso imoderado dos meios de comunicação, tem a tendência de produzir em nós, e no interior das igrejas, um certo nível de autocensura. O conhecimento da deturpação de sentido de algumas expressões passa a limitar nosso vocabulário. Opera-se uma intimidação mental quanto ao uso de expressões antes comuns e adequadas ao ambiente religioso. A malícia do mundo nos afeta, atingindo nossa liturgia, inclusive nossos hinos sacros, que também sofrem afetação. Seria esse um processo inevitável?

Comunicação e missão

A reflexão sobre a importância das redes sociais deve passar também pela consideração da missão precípua da igreja, que é a pregação do Evangelho e a edificação dos crentes. A difusão de conteúdo visa realmente a evangelização? Ainda que seja esse o foco, o conteúdo que disponibilizamos via internet é mesmo necessário e adequado na forma que o produzimos dentro do contexto comunitário local? Tem gerado os resultados pretendidos?

Quanto ao aspecto da edificação dos crentes, a reflexão precisa ser ainda mais detida, pois o que se espera de uma igreja local é o investimento em comunhão, o que se faz, necessariamente, pela priorização da presença física para o mútuo compartilhamento, como nos ensina Atos dos apóstolos. Outrossim, podem ser incalculáveis os prejuízos causados pela acomodação virtual e por uma crescente dependência de conteúdos bíblicos superficiais e plurais oferecidos pela internet. Se, por um lado, a difusão de conteúdo pode contribuir para algum crescimento espiritual dos que isso buscam, por outro lado a falta de assentar-se para ouvir a “doutrina dos apóstolos” pode fazer com que o analfabetismo bíblico e a confusão teológica cresçam, além de impedir que se participe de bênçãos espirituais que exigem integração ao corpo de Cristo, que é a igreja.

O processo de “virtualização” do ministério pastoral precisa ser comedido, atentando-se para o que realmente atende a necessidades específicas e pontuais da comunidade local para a sua verdadeira edificação. Há situações que realmente justificam o uso das redes sociais para compartilhar o culto. A questão é saber identificá-las com serenidade. Já está em discussão (e prática) no Brasil até mesmo a realização de cultos pelo sistema metaverso (a criação de um ambiente virtual)! E daí?

Direito de imagem

Outro aspecto a ser considerado quanto ao conteúdo a ser compartilhado e ao seu formato diz respeito ao direito de imagem. Será razoável considerar necessário, por exemplo, que uma norma jurídica nos diga não ser recomendável expor ao mundo imagens de pessoas em verdadeiros closes, pinçados de momentos de contrição vividos em nossos cultos? Não seria prudente analisar a conveniência de transmissões ao vivo, especialmente quando se trata de reuniões de liderança, que discutem assuntos internos ligados à administração eclesiástica? Não seria um contrassenso expor nas redes sociais conteúdos que antes considerávamos inadequados até mesmo para alguns auxiliares do culto? Estas são apenas algumas das muitas questões que circundam este tema. É temerário usar as redes sociais apenas com uma visão técnica. É preciso, acima de tudo, uma avaliação pastoral. O uso empolgado, irrefletido (ou vaidoso) dos meios de comunicação pode nos causar muitos prejuízos. O presente texto não tem a pretensão de apresentar conclusões, senão apenas suscitar alguns pontos ilustrativos que, talvez, possam servir para um processo de reflexão mais profunda. Que Deus nos dê sabedoria para exercer o devido juízo de ponderação, fazendo o melhor emprego possível das tecnologias da comunicação à nossa disposição, sempre buscando a glória de Deus (1 Coríntios 10.31).

por Silas Rosalino de Queiroz

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