O crente está totalmente seguro em Cristo; não há segurança alguma fora de Cristo e do Seu aprisco
Ao longo dos séculos, os teólogos vêm debatendo a respeito da segurança da salvação, a fim de responder à seguinte pergunta, entre outras: “É possível perder a salvação?”. Considerando que estamos seguros em Cristo (João 10.27,28), esta segurança é inabalável? Esse debate, travado inicialmente entre Agostinho e Pelágio, no século IV, foi retomado com força no século XVII entre calvinistas e arminianos. Estes, na verdade, deram continuidade a uma discussão entre dois colegas de universidade: Franciscus Gomarus (1563-1641) e Jacobus Arminius (1560-1609). As ideias deste (mais conhecido como Armínio) foram condenadas formalmente, após sua morte, no Sínodo de Dort (1618-1619). Desde então, ele não é bem-visto pelos reformados calvinistas, pois tentou — e conseguiu! — fazer uma reforma dentro da própria Reforma Protestante.
Embora Armínio e seus primeiros seguidores não tenham se
posicionado claramente quanto à segurança da salvação, a Assembleia de Deus, em
sua Declaração de Fé, alinha-se à soteriologia arminiana (defendida pelos
remonstrantes e wesleyanos), a qual se resume em cinco pontos. Armínio, aluno de
Beza — sucessor de Calvino, em Genebra, Suíça —, evocou, em sua argumentação, os
primeiros pais da Igreja, como João Crisóstomo, e fez uso dos métodos e
conclusões teológicas medievais, baseando-se em sinergistas protestantes que o antecederam,
como Erasmo e Melâncton. Mas Armínio morreu no auge dessa controvérsia, aos 49
anos, e suas doutrinas quanto à salvação foram expressas num documento póstumo,
Remonstrância (hol. remonstrantie; fr. remontrance,
“protesto”, “objeção”, “um ato de oposição”), publicado em 1610 e apresentado
por seus seguidores (os remonstrantes) a uma conferência em Gouda, Holanda.
Os remonstrantes, aproximadamente 45 ministros e teólogos das
Províncias Unidas (Países Baixos), assumiram a causa de Armínio. Simão
Episcópio (1583-1643) foi o autor dos principais documentos e se tornou, posteriormente,
o primeiro professor do Seminário Remonstrante, na Holanda, fundado depois do
seu exílio (1619-1625). Hugo Grótius (1583-1645), estadista e cientista político
mais influente da Europa à época, também fazia parte desse grupo. O documento
dos remonstrantes foi examinado no Sínodo (uma assembleia) de Dort (1618-1619),
cuja maioria esmagadora era calvinista. Os remonstrantes argumentaram que Melâncton,
um líder luterano conservador, e outros luteranos mantinham visões similares ou
idênticas às de Armínio.
Em Dort, condenou-se formalmente o pensamento de Armínio, e
muitos de seus seguidores foram banidos, passando a ser perseguidos. Surgiram, então,
os famosos cinco pontos do calvinismo (resumidos pelo acrônimo TULIP), em
resposta aos remonstrantes:
Total depravity: depravação total.
Unconditional election: eleição incondicional.
Limited Atonement: expiação limitada.
Irresistible grace: graça irresistível.
Perseverance
of the saints:
perseverança dos santos. Este é o ponto que diz respeito à segurança da salvação,
porém só pode ser entendido plenamente à luz dos anteriores.
Depois do Sínodo de Dort, o arminianismo foi suprimido nos Países
Baixos (Holanda), acolhido na Inglaterra e nos EUA, bem como disseminado através
do ministério de John Wesley (1703-1791). A notável e histórica assembleia de
teólogos sábios e eruditos calvinistas, a Assembleia de Westminster, em Londres,
foi convocada em 12 de junho de 1643 pelo Parlamento da Inglaterra para estabelecer
a doutrina da Igreja em oposição ao arminianismo, o que deu origem à Confissão
de Fé de Westminster. A partir do século XVIII, o arminianismo dividiu-se
em dois grupos: o clássico e o liberal. O clássico é el aos pensamentos de
Armínio, os primeiros remonstrantes, Wesley e seus herdeiros. Uma clara prova de
que nem todos os arminianos se tornaram liberais é John Wesley, o qual se
considerava arminiano e defendia o arminianismo das acusações de que essa
escola levava à heterodoxia. Ele defendeu o sinergismo e a graça preveniente de
Deus; e pregou a justificação exclusivamente pela graça através da fé. Ele é a
maior fonte do chamado arminianismo do coração
Já o arminianismo liberal, que dá maior ênfase ao
livre-arbítrio e se a nos valores do Iluminismo, tem a sua origem em Philip
Limborch (1633-1712). Os arminianos liberais glorificaram a razão e, por isso,
têm recebido várias críticas justas por parte dos calvinistas, já que aqueles
penderam para o pelagianismo (ou, no mínimo, para o semipelagianismo), bem como
para o universalismo e até para o arianismo, que nega a plena deidade de
Cristo. Jonathan Edwards (1703-1758) se opôs de maneira veemente ao arminianismo
de Limborch (liberal). Por conta disso, muitos calvinistas, ainda hoje, sem
fazer uma investigação mais cuidadosa da História, consideram o arminianismo herético
ou sinônimo de teologia liberal, o que é uma acusação desonesta.
John Wesley é u m teólogo muito importante para o
arminianismo, sobretudo para a doutrina da segurança da salvação. Todo o
metodismo e suas ramificações, como o Movimento da Santidade, adotaram a versão
de Wesley da teologia arminiana, a qual pouco se diferenciava do próprio
Armínio. Outro teólogo importante é John Fletcher (1729-1785), primeiro teólogo
sistemático do metodismo, que era grande oponente do calvinismo e teve grande
influência sobre Wesley. Richard Watson (1781-1833), metodista britânico e um dos
teólogos arminianos mais influentes do século XIX, escreveu a obra Institutas Cristãs
(1823), que forneceu ao metodismo seu primeiro texto autoritativo de teologia
sistemática.
A soteriologia armínio-wesleyana também tem os seus cinco
pontos (expressos mediante o acrônimo FACTS), os quais são uma tréplica pela
qual se responde aos cinco pontos do calvinismo:
Freed by grace to believe: liberto pela graça para
crer.
Atonement for all: expiação para todos.
Conditional election: eleição condicional.
Total depravity: depravação total.
Security in Christ: segurança em Cristo. Assim como
no calvinismo, este ponto diz respeito à segurança da salvação, mas só pode ser
compreendido plenamente à luz dos anteriores.
Freed by grace to believe (liberto pela graça para crer)
responde à quarta letra de TULIP. É uma alusão, mais precisamente, à graça
preveniente e persuasiva, mas não coercitiva. A graça salvífica, no arminianismo,
é convincente, convidativa, iluminadora e capacitadora. Ela antecede a conversão,
“libertando o arbítrio”, por assim dizer, o que torna o arrependimento e a fé possíveis.
Por conseguinte, este ponto do arminianismo diz respeito à obra preparatória do
próprio Espírito Santo na vida do homem abandonado em pecado. A salvação não
vem antes da fé e do arrependimento; o que vem antes é essa capacitação do
Espírito. Assim, a graça preveniente precede e capacita os primeiros indícios
de uma boa vontade para com Deus, para que o pecador tenha a fé salvadora e o arrependimento.
A graça de Deus vem antes da fé necessária para a salvação (Romanos 10.9,10,17)
e do arrependimento (Efésios 2.5,6; João 16.8-12; Mateus 13.37).
Atonement for all (expiação para todos) responde à
terceira letra da TULIP. Expiação geral não significa salvação para todos (de modo
automático), mas expiação geral do pecado adâmico. Por isso, arminianos
acreditam também na salvação das crianças que morrem antes de alcançar a idade
da razão ou do despertamento da consciência. Há uma distinção entre a expiação
e a redenção. A obra expiatória é ilimitada porque se refere ao pecado (João
1.29; cf. Levíticos 4; 16; 23); ou seja, a expiação é o ato de tirar o pecado,
em potencial; é diferente da redenção. A obra redentora é limitada porque se
refere ao pecador, pois a redenção diz respeito à salvação concretizada, de
modo ecaz, na vida do pecador.
A expiação precede a redenção; sem expiação pelo sangue não
há perdão do pecado (Levíticos 4.35). Jesus expiou o pecado do mundo para que todos
os que crerem sejam redimidos (Romanos 3.23; 6.23). Deus amou a todos os
pecadores (João 3.16; Romanos 11.32) e deseja que todos sejam salvos (1 Timóteo
2.4). Mas a salvação só se concretiza na vida do pecador quando este crê no
Redentor. Se a redenção (e não a expiação) fosse ilimitada em sua extensão, o
universalismo seria bíblico. Em resumo, Jesus provou a morte por todos (expiação),
para salvar a todos, em potencial (João 1.9,29; Tito 2.11; 1 João 2.1,2; 1 Timóteo
2.4-6; Hebreus 2.9). A salvação efetiva (redenção) está limitada aos que creem
e obedecem (João 5.24; Romanos 5.19; Hebreus 5.8,9).
Conditional election (eleição condicional) responde à
segunda letra de TULIP. Se a eleição fosse incondicional, ela impugnaria o caráter
de Deus. Há duas grandes escolas arminianas quanto a isso. A primeira é a que interpreta
a eleição segundo a presciência de Deus e diz que Ele elegeu de antemão os que
receberiam a salvação pela fé. Estes responderiam livremente, de maneira
positiva, à graciosa oferta de salvação. Nesse caso, a predestinação é a determinação
(decreto) de Deus para salvar por intermédio de Cristo todos os que livremente respondem
à oferta divina da graça livre ao se arrependerem do pecado e crerem em Cristo.
A segunda escola, que parece mais lógica para este articulista,
é a que não nega a presciência de Deus, mas defende prioritariamente a eleição
corporativa, condicionada a seu plano. Ela não despreza a presciência de Deus
nem a predestinação, mas arma que Deus nos elegeu em Cristo. Ou seja, não
foram eleitos indivíduos para a salvação, e sim a Igreja, a Universal Assembleia
dos Santos (Efésios 1.1-4; 1 Pedro 2.9,10). Quando, então, o nome do salvo é
inserido no Livro da Vida? (Apocalipse 17.8). Embora Deus saiba tudo — de modo
antecipado —, Ele não obriga o ser humano a crer nEle. Por isso, não destinou pessoas,
indivíduos, à salvação ou à perdição. Antes, destinou que muitos seriam salvos por
meio de Jesus Cristo, enquanto muitos outros seriam condenados por rejeitarem o
Salvador. Deus sabe o m antes do começo, porém o ser humano é responsável por suas
escolhas (Atos 27.21-44).
Total depravity (depravação total) equivale, aparentemente,
à primeira letra da TULIP. Mas é uma referência, mais precisamente, à depravação
total que é extensiva e corruptora, e não à intensiva e destruidora do calvinismo.
Depravação total, no arminianismo, é a corrupção do bem, e não a destruição do
bem. O ser humano nasce com a propensão de pecar, e não com a necessidade de pecar.
A vontade do homem foi diminuída, e não destruída. A imago dei, ainda que
arranhada pelos efeitos deletérios do pecado, não foi destruída. Se a depravação
tivesse destruído a capacidade do ser humano de distinguir o bem do mal e
escolher o bem antes que o mal, teria também destruído a sua capacidade de
pecar. Portanto, a depravação total é mais extensiva que intensiva.
Somente um ser moral e livre pode fazer escolhas morais ou imorais.
Se ele fosse amoral por natureza, não poderia ser acusado de qualquer imoralidade.
Nascemos, por conseguinte, com a propensão para o pecado, e não com a
necessidade de pecar. Se o pecado fosse necessário, não seríamos responsáveis
por ele (cf. Romanos 3.19). Ainda que sejamos depravados por natureza, cada
pecado é livremente escolhido. O homem tem livre-arbítrio (ainda que
prejudicado pelos efeitos deletérios do pecado), pois toda a humanidade é
pecadora (Romanos 3.23). Apesar da Queda e seus efeitos, Deus deu ao ser humano
a permissão para escolher (Deuteronômio 30.19; Josué 24.15; Salmos 119.173; Mateus
23.37; Lucas 9.23; Apocalipse 22.17). Mesmo depois de Adão ter pecado e se
tornado espiritualmente “morto” (Gênesis 2.17; Efésios 2.1) e “pecador por
natureza” (Efésios 2.3), não se tornou depravado a ponto de não poder ouvir a
voz de Deus ou de responder livremente ao seu Criador (2 Pedro 3.5).
Security in Christ (segurança em Cristo) responde à quinta
letra da TULIP. Armínio e os remonstrantes não se posicionaram peremptoriamente
em relação a essa questão. Mas, como se sabe, a remonstrância não é uma declaração
completa da teologia arminiana. Há duas grandes escolas arminianas quanto à
segurança da salvação. A primeira é a dos que se dizem “calvinistas moderados”,
representada por Norman Geisler, a qual pressupõe que, uma vez salvo, sempre
salvo, haja o que houver. A segunda escola é a dos wesleyanos e assembleianos,
os quais acreditam na possibilidade de perda de salvação. Eles não usam o bordão:
“Uma vez salvo, salvo para sempre”, já que este é contrário às Escrituras (cf. 1
Coríntios 15.1,2; Hebreus 3.12-14; 2 Pedro 2.1,2; Apocalipse 3.8). Anal, Jesus
orou por Judas e o considerou eleito, mesmo sabendo que ele se desviaria (João
17.9; At 1.25).
Wesleyanos — e assembleianos — creem que a salvação pode ser
perdida, mas não por qualquer motivo, visto que há passagens bíblicas fortes em
defesa da perda da salvação, especialmente Apocalipse 3.8; 2 Pedro 2.1,2;
Hebreus 3.12-14; caps. 6 e 10 etc. O crente está seguro em Cristo (João
15.1-6). “Não há segurança fora de Jesus e do Seu aprisco. Não há segurança espiritual
para ninguém estando em pecado (cf. Romanos 8.13; Hebreus 3.6; 5.9). Jesus
guarda o crente do pecado; e não no pecado" (GILBERTO, Antonio [editor], Teologia
Sistemática Pentecostal, CPAD, 2008, p. 373). Somos mantidos em Cristo pelo
seu poder, mediante a nossa fé nEle (1 Pedro 1.5; Judas v. 20; 2 Coríntios
1.24). A salvação é eterna para os que obedecem ao Senhor (Hebreus 5.9; 1 Co
15.1,2). Estamos em pé pela fé em Cristo, e não por predestinação: “tu estás em
pé pela fé” (Romanos 11.20); “se é que permaneceis firmes e fundados na fé” (Colossenses
1.22,23); “Deus é salvador de todos, mas principalmente dos fiéis [lit. “dos que
creem”]” (1 Timóteo 4.10; cf. Salmos 91.14; 2 Timóteo 1.12; 1 Coríntios 1.8).
Diante do exposto, o salvo deve obedecer a Deus. Mas não para
que a sua obediência o salve ou o mantenha salvo, e sim como uma expressão da
sua salvação, do seu amor e da sua gratidão para com aquEle que o salvou. Não nos
tornamos salvos por aquilo que fazemos ou deixamos de fazer. A salvação é pela graça
mediante a fé em Jesus Cristo (Atos 16.31). A preservação dela também é pela fé
no Senhor, pois está escrito: “O justo viverá da fé” (Romanos 1.17). Que Deus
nos conceda, a cada dia, uma visão espiritual mais ampla e profunda, a fim de
compreendermos a sublimidade da gloriosa salvação que Jesus Cristo consumou, da
qual, pela graça, já somos participantes. Glória, pois, a Ele!
Referências
AKER, Benny C. João. In: ARRINGTON, French L. et al. Comentário
Bíblico Pentecostal: Novo Testamento. 1. ed. Rio de Janei-
ro: CPAD, 2003.
ARMÍNIO, Jacó. As Obras de Armínio. 1. ed., vol. 1.
Rio de Janeiro: CPAD, 2015. Versªo
digital.
BARKER,
Kenneth L. et al. The NIV Study Bible. Grand Rapids, Michigan:
Zondervan, 2011. Versão digital.
BERGSTÉN, Eurico. Introdução à Teologia Sistemática.
1. ed. Rio de Janeiro: CPAD, 1999.
GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres. 1. ed. São
Paulo: Editora Vida, 2001.
GILBERTO, Antonio. Soteriologia — a doutrina da salvação.
In: GILBERTO, Antonio et al. Teologia
Sistemática Pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 2008.
GONZÁLEZ, Justo L. Uma Breve História das Doutrinas Cristãs.
1. ed. Sªo Paulo: Hagnos, 2015.
HORTON, Stanley
M. et al. Teologia Sistemática: uma perspectiva pentecostal. 1.
ed. Rio de Janeiro: CPAD, 1996.
MENZIES, William W.; HORTON, Stanley M. Doutrinas
Bíblicas: uma perspectiva pentecostal. 1. ed. Rio de Janeiro: CPAD, 1995.
MOUNCE,
William D. Mounce’s Complete Expository Dictonary of Old and New Testament
Words. Grand Rapids, Michigan:
Zondervan, 2006. Versão digital.
OLSON, Roger E. Teologia Arminiana: mitos e realidades.
São Paulo: Editora Re‑exªo, 2013.
RADMACHER,
Earl; ALLEN, Ron; HOUSE, H. Wayne. Compact Bible Commentary. Nashville,
TN: Thomas Nelson, 2004.
THIESSEN, Henry Clarence. Palestras Introdutórias à
Teologia Sistemática. São Paulo: Imprensa Batista Regular, 1987.
por Ciro Sanches Zibordi
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