A interpretação do texto bíblico e os elementos da prédica pentecostal
O termo grego hermeneutiké refere-se à interpretação de palavras, leis ou textos de várias naturezas. Sua forma verbal (gr. hermeneuo, “interpretar”) deriva do mitológico Hermes (GORMAN, p. 163), nome que aparece duas vezes no Novo Testamento (cf. Atos 14.12; Romanos 16.14). Filho de Zeus e Maia, ele era considerado o deus da ciência e da eloquência, “o intérprete da vontade divina” (GRIMAL, p. 223-224). No âmbito teológico, embora a Hermenêutica (ciência e arte de interpretar textos) forme parte do departamento da Teologia Exegética, relaciona-se com a Homilética (ciência e arte de pregar sermões), que integra a Teologia Prática. Neste artigo, daremos destaque a essa interdisciplinaridade, dando destaque à obra do Espírito Santo, já que a pregação pentecostal é o casamento entre a exegese (interpretação do texto sagrado) e o discurso (exposição) cujo celebrante é o próprio Paráclito.
Interpretação e pregação da Bíblia ao longo da história
Desde os tempos do Antigo Testamento, métodos hermenêuticos
vêm sendo empregados pelo povo de Deus. Um entendimento de seus pressupostos
“proporciona uma perspectiva mais equilibrada e uma capacidade para um diálogo
mais significativo com os que creem de modo diferente” (VIRKLER, p. 35). A
maioria dos eruditos concorda que a primeira menção à Hermenêutica na Bíblia está
em Neemias 8. Haja vista os israelitas terem perdido, possivelmente, sua compreensão
do hebraico durante o período do exílio, Esdras e sua equipe teriam traduzido o
texto hebraico para o aramaico e acrescentado explicações para elucidar o
sentido.
Escribas que surgiram posteriormente tinham grande cuidado
ao copiar as Escrituras e criam que cada letra era inspirada por Deus. Essa
reverência tinha vantagens e desvantagens, pois, ao mesmo tempo que os textos
eram cuidadosamente preservados, passou-se a priorizar, pouco a pouco, um método
heterodoxo de interpretar o texto sagrado, supervalorizando-se cada detalhe
incidental do texto. “A exegese alegórica baseava-se na ideia de que o
verdadeiro sentido jaz sob o significado literal da Escritura. [...] Durante o
primeiro século da Era Cristã os intérpretes judaicos concordaram que a Escritura
representa as palavras de Deus, e que estas estão cheias de significado para os
crentes” (VIRKLER, p. 38).
Quando veio ao mundo, o Senhor Jesus tratou narrativas, inclusive
as de Gênesis, como eventos históricos. E, ao fazer aplicações, Ele as extraiu do
significado normal do texto, contrariando o alegorismo da tradição judaica. O
Mestre priorizou o que está escrito, e não a tradição (cf. Marcos 7.6-13; Mateus
15.1-9; 7.28,29), e os apóstolos seguiram seu exemplo, pois citavam o Antigo
Testamento literalmente. Para eles, história era história; poesia, poesia;
símbolos, símbolos etc. Consideraram as Escrituras hebraicas como Palavra de
Deus (2 Pedro 1.21; 2 Timóteo 3.16,17; Atos 13.16-22; 7.9-50; Hebreus 11).
Pedro, inclusive, tratou os escritos de Paulo como inspirados pelo Espírito, da
mesma forma que o Antigo Testamento (2 Pedro 3.16).
Sem dúvida, o “Novo Testamento lança a base para o método
histórico-gramatical da moderna hermenêutica evangélica” (VIRKLER, p. 43). Mas os
pais da Igreja (100-604 d.C.), em sua maioria, não priorizaram o legado
hermenêutico do período apostólico, e sim o alegorismo. Clemente de Alexandria
(150-215 d.C.) acreditava que as Escrituras ocultavam seu verdadeiro
significado e desenvolveu a teoria de que cinco sentidos estão ligados à
Palavra de Deus: histórico, doutrinal, profético, filosófico e místico. Orígenes
(185-254), influenciado por Filo (c. 20 a.C.-50 d.C.), acreditava que o Antigo
Testamento era uma vasta alegoria. Segundo ele, como o ser humano é tridimensional,
o corpo é o sentido literal, a alma, o moral, e o espírito, o alegórico ou
místico (BRAY, p. 82-84).
Enquanto o método alegórico ganhava força entre os pais alexandrinos,
em Antioquia da Síria aperfeiçoou-se o método empregado por Jesus e os
apóstolos. Tendo como protagonista Teodoro de Mopsuéstia (350-428), lançou-se ali
as bases da Hermenêutica contemporânea baseada no princípio de interpretação
gramático-histórica, pelo qual se afirma que cada passagem deve ser interpretada
segundo as regras da gramática e os fatos históricos. Não obstante, essa escola
caiu em descrédito por causa de Nestório (386-451), um aluno de Teodoro dado a
heresias no campo da cristologia, e não recebeu apoio dos mais influentes pais
da Igreja.
Agostinho de Hipona (354-430), o maior erudito de sua época,
abraçou o alegorismo, a despeito de ter formulado muitas regras hermenêuticas prevalecentes
no método gramático-histórico. Sua posição acabou predominando na Idade Média (sécs.
V a XV), afastando os exegetas católicos da interpretação literal e histórica.
“Durante esse período, aceitou-se geralmente o princípio de que qualquer interpretação
de um texto bíblico devia adaptar-se à tradição e à doutrina da igreja” (VIRKLER,
p. 46-47). Entretanto, muito do que ocorreu no fim da era medieval foi benéfico
para a Reforma Protestante (séc. XVI): surgiram de universidades (1150-1300),
além de pensadores cristãos e pré-reformadores, como Tomás de Aquino (1226-1274),
John Wycliffe (1329-1384) e John Huss (1369-1425).
Martinho Lutero (1483-1546), o principal nome da Reforma, acreditava
que a fé e a iluminação do Espírito são indispensáveis à interpretação da
Bíblia. Ele defendeu que a fonte primacial de autoridade do hermeneuta são as Escrituras,
e não a tradição, contrapondo-se aos dogmas romanistas. João Calvino (1509-1564),
o maior exegeta entre os reformadores, acreditava que a iluminação espiritual é
necessária e considerava a interpretação alegórica uma artimanha do Diabo para obscurecer
a intenção autoral. O resgate e o aperfeiçoamento do método gramático-histórico,
do qual emergiu o protestantismo, gerou uma reação por parte dos hermeneutas católicos,
que preferiram preservar o método alegórico.
O confessionalismo surgiu então como uma tréplica protestante
à Contrarreforma. Mas seus métodos hermenêuticos foram, de modo geral,
deficientes, já que se priorizou o dogmatismo. Outra escola foi a pietista, que
reagiu à exegese dogmática dos confessionalistas. Embora, a princípio, os pietistas
tenham adotado o método gramático-histórico, pouco a pouco se apegaram às
impressões subjetivas e às experiências, o que resultou em interpretações
contraditórias. Veio então o racionalismo, movimento influenciado por ideólogos
da Renascença, o qual pecou por dar uma atenção exagerada ao uso da razão,
contrariando Lutero, segundo o qual podemos ser racionais ministerialmente — a fim
de compreender a Palavra de Deus e obedecê-la —, e não magisterialmente, como juízes,
ao interpretar as Escrituras (VI-RKLER, p. 51).
Foi nesse período que o método histórico-crítico (extremamente
racionalista e contrário ao gramático-histórico) ganhou destaque. “A crítica histórica
da Bíblia surgiu na chamada ‘Idade da Razão’, que pode ser datada entre o fim
da Guerra dos Trinta Anos (1648) e a erupção da Revolução Francesa (1789). Foi
uma época em que o philosophe substituiu o teólogo como fonte de toda a
sabedoria e o Iluminismo se tornou a ordem do dia” (BRAY, p. 225). Se os
racionalistas priorizaram o uso da razão, o movimento derivado dele, o
liberalismo, foi além e fez dela sua fonte primacial de autoridade (VIRKLER, p.
52).
O que é a pregação pentecostal?
Embora os hermeneutas e pregadores pentecostais divirjam dos
calvinistas no campo soteriológico, especialmente, concordam com eles quanto
aos pressupostos de interpretação das Escrituras, sobretudo estes dois: (1) a
Bíblia é a Palavra de Deus infalível, inerrante e suficiente; (2) as
Escrituras interpretam as Escrituras (VIRKLER, p. 49). Afinal, os reformadores
não inventaram o método gramático-histórico, mas resgataram a forma de
interpretar a Bíblia empregada pelo Senhor Jesus, seus apóstolos e os pais antioquenos.
Por outro lado, os pentecostais são continuacionistas: não abrem mão da iluminação
do Espírito Santo, ao fazer exegese, nem de sua capacitação sobrenatural para
expor a Palavra.
De acordo com a Retórica Clássica, a exposição eficaz e
persuasiva tem três características, representadas por três vocábulos gregos: logos
(conteúdo verbal da mensagem, incluindo-se arte e lógica na sua exposição); pathos
(fervor, paixão, sentimento e eloquência do expoente); e ethos (caráter percebido
do orador). Em 1 Tessalonicenses 1.5 (ARA), Paulo faz menção delas, substituindo
pathos por outros dois elementos: “nosso evangelho não chegou até vós tão
somente em palavra [logos], mas, sobretudo, em poder [dynamis], no
Espírito Santo e em plena convicção [plerophoria], assim como sabeis ter
sido o nosso procedimento [ethos] entre vós e por amor de vós”.
Paulo, claramente, emprega o termo logos para referir-se ao conteúdo
das Escrituras (cf. 2 Timóteo 2.15; 4.2). Em seguida, emprega as palavras dynamis
e plerophoria no lugar de pathos. A primeira refere-se ao poder dinâmico
do Espírito (cf. Atos 1.8; 1 Coríntios 2.1-5); e a segunda, à convicção do
pregador decorrente dessa capacitação do Paráclito. Nesse caso, o poder de
convencimento do pregador pentecostal é mais que pathos, já que este diz
respeito, exclusivamente, à performance do próprio orador. O termo plerophoria
está associado à ação direta do Espírito na vida do pregador (cf. Atos 2.13-36;
4.28-33).
Finalmente, Paulo cita o terceiro elemento do discurso
eficaz segundo a Retórica Clássica: ethos, que diz respeito ao caráter percebido
do orador. Esse apóstolo, claramente, refere-se à conduta e à postura do pregador
pentecostal (cf. Atos 20.17-19; Filipenses 1.27), o qual, muito mais que “carisma”,
precisa ter um bom caráter. Afinal, a “glória da pregação pode ser a eloquência,
mas a batida do coração é a fidelidade. [...] O caráter e a piedade do ministro
determinam mais a qualidade da mensagem ouvida do que as características da
mensagem pregada” (CHAPELL, p. 27-31).
Bibliografia
BRAY, Gerald. História da Interpretação Bíblica. 1.
ed. São Paulo: Vida Nova, 2017.
CHAPELL, Bryan. Pregação Cristocêntrica. 1. ed. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002.
GORMAN, Michael J. Introdução à Exegese Bíblica. 1.
ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017.
GRIMAL, Pierre. Dicionário da Mitologia Grega e Romana.
6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
VIRKLER, Henry A. Hermenêutica: Princípios e Processos de
Interpretação Bíblica. 1. ed. São Paulo: Editora Vida, 1987.
por Ciro Sanches Zibordi
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