Leif Wassemann, de apenas cinco anos, permanecia abaixado no chão do barco Gerda III de propriedade dos Sondig, dinamarqueses, enquanto ouvia as vozes dos alemães vasculhando a embarcação à procura de judeus. O Gerda III já havia sido abordado outras vezes e ainda seria outras mais, num total de mais de uma dúzia de viagens transportando judeus da Dinamarca para a Suécia durante os terríveis dias da perseguição nazista, mas os refugiados nunca foram descobertos. Wassemann e sua família testemunharam do cuidado dispensado pelos dinamarqueses, apesar de todo o risco que corriam.
A Dinamarca permaneceu ocupada desde 1940 e somente foi
liberta do jugo nazista em 1945. Em 1943, a população do país conseguiu,
através de um bem elaborado esforço, levar quase toda a população judaica para
a Suécia, nação neutra, anulando o plano alemão de prender os judeus durante os
dias de penitência, entre RoshHaShana e YomKipur, aproveitando o costume da
comunidade de reunir-se nas sinagogas ou em suas casas. Para levá-los para os
campos de extermínio de Auschwitz e Bergen-Belsen já havia navios alemães
ancorados em Copenhagen, além de veículos que completariam a viagem até os fornos
crematórios. No entanto, no dia primeiro de outubro, segundo dia de RoshHaShana
daquele ano, o rabino chefe da Dinamarca, Marcus Melchior, viu o livramento dado
pelo Eterno através de um povo que não se omitiu diante da crueldade do
opressor.
O estado de alerta naquela nação já vigorava desde o mês de
agosto de 1943 e outras ações
emergenciais foram levadas a termo. Hitler decidira capturar e destruir os judeus
da Dinamarca, mas não contava com os cidadãos que iriam escondê-los em suas
casas, com o democrata dinamarquês Hans Hedtoft, membro do movimento da
resistência de seu país, com religiosos, médicos, pescadores, profissionais de
todas as áreas que cooperaram efetivamente para que o projeto mortal não
lograsse sucesso. O Hospital Bispebjerg, sob a liderança do Dr. Koster, abrigou
grande número de judeus. A população cooperou fazendo chegar doações àquela
instituição. Rolos da Torah ficaram escondidos em uma das Igrejas Luteranas Unidas.
Como resultado de todo esse esforço, mais de 7 mil vidas de judeus foram
salvas, tendo sido capturados um total de 481 judeus dinamarqueses. Ainda
assim, o governo da Dinamarca conseguiu interceder por eles, lutando para que
ficassem no campo de Theresienstadt. Para aquele lugar de condições insalubres,
porém melhores do que os campos poloneses, foram enviados alimentos, vitaminas
e alguma fiscalização da Cruz Vermelha.
Ao findar a guerra, os judeus que retornaram às suas casas encontraram-nas
conservadas e limpas. Seus pertences, mesmo seus animais e seus jardins, haviam
sido mantidos por seus amigos. Não é sem motivo que há um monumento em forma de
barco em Jerusalém num tributo a homens e mulheres que fizeram, com seu gesto,
diferença entre a vida e a morte.
Há, no entanto, nesse relato do heroísmo dinamarquês, algo
que jamais foi confirmado e, curiosamente, ocupa lugar destacado entre os
tantos outros acontecimentos amplamente documentados. Sendo assim, guardamos o
cuidado de mencioná-lo sem atribuir valor histórico, ainda que seu peso
cultural e a forma como o relato agregou-se às narrativas pós holocausto
revelem a força que teria fosse ele (teria sido?) verdadeiro. Conta-se que os
judeus foram obrigados a usar na roupa uma estrela de David, à semelhança do
que já acontecia em outros países ocupados, para distingui-los dos demais
cidadãos. O Rei Christian X da Dinamarca também a teria colocado e desafiado a
ordem, saindo às ruas com a identificação, sendo logo seguido por seus súditos.
Dessa forma, anulou a força do ato discriminatório e protegeu sua população. Se
não há registros da veracidade do ato, é impossível negar a participação do
soberano durante a ofensiva nazista. Jamais abandonou seu povo, discursou abertamente
contra o governo do Führer, permitiu as ações de proteção aos judeus e
protagonizou uma narrativa real de caráter humanitário que marcou positivamente
seu país.
Curioso paralelo aconteceu no dia primeiro de junho, quando
as ruas de Berlim e de outras cidades da Alemanha viram-se repletas de pessoas
usando o quipá (cobertura), pequeno ‘chapéu’ usado pelos judeus, mesmo sendo
tais pessoas, em sua maioria, não judias. O ato foi uma resposta à triste
declaração de Felix Klein, comissário do governo alemão para o combate ao
antissemitismo, aconselhando a população judaica a evitar o uso da cobertura
para coibir novos ataques, que envolvem discursos de ódio, pichações a
monumentos judaicos, uso de símbolos nazistas e agressões pessoais.
Com uma população de mais de 82 milhões de alemães e uma comunidade
de cerca de 200 mil judeus, o governo alemão têm procurado oferecer proteção policial
a sinagogas e escolas, mas isso não parece ser suficiente. A chanceler Angela
Merkel admitiu, em entrevista à rede CNN, que os alemães precisam ser mais vigilantes,
devido ao seu passado. Segundo ela, “sempre houve um certo número de
antissemitas entre nós”.
O “conselho” de Klein provocou uma resposta do presidente de
Israel, Reuven Rivlin, acusando a Alemanha de “capitular” diante do antissemitismo
ao sugerir que os judeus evitem chamar a atenção. Para ele, em lugar disso,
deveria ser oferecida proteção para que todos pudessem transitar de forma livre
e segura naquele país. Klein justificou-se declarando que sua intenção foi a de
provocar o debate. Pouco provável e, no mínimo, inconveniente, num momento em que
os atos contra a população judaica cresceram mais de 20% em 2018, em relação a 2017.
Numa atitude corajosa, o governo alemão convocou uma passeata
que reuniu uma multidão de manifestantes em Berlin e estendeu-se a outros
locais. Na capital alemã estiveram presentes várias autoridades locais, além do
embaixador de Israel na Alemanha, Jeremy Issacharoff e do comissário Felix
Klein, pivô do embaraço. O ato recebeu o nome de ‘passeata do quipá’, pois
todos portavam a pequena cobertura. O tablóide “Bild” estampou em sua capa um
solidéu (quipá) para ser recortado e usado. “A única resposta é que todos
usaremos quipá. A quipá pertence à Alemanha.”, explicou o editor-chefe, Julian Reichelt.
Angela Merkel declarou, ainda, que é necessário combater os fantasmas do
passado para que o país não retorne ao velho antissemitismo: “temos que dizer aos
nossos jovens o que a História trouxe sobre nós e os outros”.
Contemplar a massa de pessoas com suas cabeças cobertas,
como um ‘mar’ de judeus, cruzando as ruas de Berlim num assentimento à
conclamação governamental, evocou a memória de um rei dinamarquês que preferiu
fazer-se igual aos perseguidos do que omitir-se ou vender-lhes as vidas. A
sugestão do comissário Klein denota a covardia daqueles que advogam a perda da
identidade para a manutenção da segurança. Ora, de que valem a vida e a
segurança se elas são mantidas à custa daquilo que somos? Os que, desde tempos imemoriais,
morreram por sua fé e lutaram por suas convicções são exemplos que, certamente,
inspiraram os dinamarqueses no passado, os alemães de hoje e tantos outros que
não estiverem dispostos a calar as lições da História.
Ainda, a título de esclarecimento, existem quipot
(plural de quipá) de todos os tamanhos e formatos. Quando feitos de cetim,
costumam ser chamados de solidéus. Seu uso é uma maneira de declarar que há
alguém acima de nós e tornou-se um símbolo de identificação para o povo judeu.
O nome ídishe para quipá é iarmulke. Etimologicamente, a
palavra deriva da composição entre os termos aramaicos: ieru, que quer dizer
‘temor de’, e malca, ‘o rei’. Assim, o uso do quipá nada mais é do que uma
forma de manifestar o temor ao Rei, ao Rei sobre todos os reis, debaixo de cuja
mão todas as vidas se encontram, e a Quem prestarão contas.
por Sara Alice Cavalcanti
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