A relação histórica dos pentecostais com os métodos tradicionais de interpretação da Bíblia e sua contribuição para hermenêutica evangélica
Os primeiros pentecostais dos quais fizeram parte os fundadores das Assembleias de Deus no Brasil, Gunnar Vingren e Daniel Berg, eram crentes cujas origens batistas na Suécia e nos EUA foram fortemente influenciadas pelo pietismo, que era uma forma de ver a vida cristã orientada pela Bíblia e com base na experiência, ressaltando a apropriação da fé e o estilo de vida de santidade como elementos mais importantes do que as estruturas formais de teologia e ordem eclesiástica. Os pequenos grupos de crentes consagrados (collegia pietatis) entre os crentes batistas na Suécia, que se reuniam para a edificação mútua em estudo bíblico e oração, conforme incentivado pelo pietismo, fizeram surgir os grupos de pessoas conhecidos como os läsare – leitores. Eram aqueles que, após passarem por uma experiência profunda com a graça redentora de Deus, se tornavam leitores e estudantes íntimos da Bíblia. A fé deles era centralizada na Bíblia. A teologia deles era baseada exclusivamente no Livro. Para eles, a Bíblia era a Palavra de Deus inspirada, infalível, inerrante e autoridade de fé e prática. A pergunta mais importante era: “O que a Bíblia diz?”. As grandes doutrinas da Bíblia, como pecado e graça, regeneração, justificação, santificação, céu e inferno, eram todas realidades vivas para os pioneiros. De acordo com Olof Bodien, as prisões estatais da Suécia eram seminários teológicos dos batistas.
Os primeiros “lugares” de interpretação bíblica entre os
pentecostais brasileiros
Um pouco do locus do labor interpretativo da Bíblia inicial entre
os crentes pentecostais no Brasil com essas características de tão-somente ler,
estudar e ensinar a Palavra de Deus foram: (1) os artigos publicados nos
periódicos pentecostais Voz da Verdade (1917), Boa Semente
(1919-1930), O Som Alegre (1929-1930), e Mensageiro da Paz (a
partir de 1930); (2) os primeiros livretos e folhetos; (3) os hinários
pentecostais Cantor Pentecostal (1921) com 44 hinos e 10 corinhos, e Harpa
Cristã (1922) com 100 hinos; (4) os comentários das revistas da escola dominical
Estudos Dominicaes (1924-1930) e Lições Bíblicas (a partir de 1930);
(5) os estudos bíblicos ministrados nas Escolas Bíblicas de Obreiros,
ministrados a partir de 1922; e (6) os livros que começaram a ser publicados
pela Casa Publicadora das Assembleias de Deus (CPAD) a partir de 1940.
A hermenêutica primitiva pentecostal
Não há nenhum registro histórico feito pelos intérpretes da Palavra
de Deus nas primeiras décadas do pentecostalismo no Brasil informando, de
maneira explícita, a metodologia hermenêutica e a corrente teológica que estavam
adotando. Nem há referência à metodologia hermenêutica em algum artigo publicado
nos primeiros periódicos ou algum livro sob o título “Hermenêutica”. Para
Archer (2004), o método bíblico interpretativo dos primeiros pentecostais era o
Método da Leitura da Bíblia. Roger Stronstad chama esse período inicial de “hermenêutica
pragmática” ou “original clássica”, como Oliverio a denomina. Nos Estados Unidos,
os pentecostais usaram esse método para desenvolver a compreensão doutrinária
do batismo no Espírito Santo de forma diferente do entendimento dos wesleyanos e
dos keswickianos. Ainda, segundo Archer (2004), os pentecostais não criaram
novo método de interpretação da Bíblia, porém eles se utilizaram do método interpretativo
pré-crítico de uma perspectiva pentecostal que, por sua vez, se tornou uma maneira
singular (pentecostal) de ler e interpretar a Bíblia. No entanto, Archer (2004)
argumenta que a singularidade da hermenêutica pentecostal a distinguiu da tradição
narrativa a partir da qual o Método da Leitura da Bíblia foi praticado.
Primeiras hermenêuticas de pentecostais traduzidas para o
português
Uma das primeiras obras com o título “Hermenêutica” entre os
pentecostais brasileiros que se tem registro foi Hermenêutica – princípios de
interpretação das sagradas escrituras, de autoria dos pastores pentecostais
norte-americanos E. Lund e P. C. Nelson, e traduzida para o português em 1968. A
obra de Lund e Nelson apresenta a importância do estudo da hermenêutica, a
disposição necessária para o estudo proveitoso da Bíblia, observações gerais sobre
a linguagem bíblica e as regras de hermenêutica que o intérprete da Bíblia deve
obedecer. Essas regras são as seguintes: a Bíblia interpreta a si mesma; averiguar
e determinar qual seja o sentido corrente e comum; averiguar e determinar sempre
qual o pensamento especial que o autor se propõe a expressar; tomar as palavras
no sentido indicado no contexto, a saber, os versículos que antecedem e
precedem o texto que se estuda; tomar em consideração o objetivo ou desígnio do
livro ou passagem em que ocorrem as palavras ou expressões obscuras; consultar
passagens paralelas, as que fazem referência uma à outra, que tenham entre si alguma
relação ou tratem de um mesmo assunto – paralelos de palavras; consultar os
ensinos, as narrativas e os fatos contidos em passagens ou textos elucidativos que
se relacionem com o texto obscuro ou discutível – paralelos de ideias; e recorrer
ao teor geral, ou seja, aos ensinos gerais das Escrituras – paralelos de ensinos
gerais. A hermenêutica bíblica de Lund e Nelson foi adotada como livro-texto dessa
matéria no Instituto Bíblico das Assembleias de Deus de Pindamonhangaba (SP) e em
vários outros cursos teológicos nas décadas de 70, 80 e 90.
Focando na compreensão dos diversos gêneros literários que compõem
a Bíblia, dois eruditos norte-americanos, Gordon D. Fee, pentecostal assembleiano,
e Douglas Stuart, lançaram em 1981 o livro Entendes o que lês? que foi traduzido
para o português em 1984. O objetivo da obra hermenêutica era ajudar o leitor a
apreciar as diferenças de gêneros e a ler de modo inteligente e proveitoso as partes
não narrativas da Bíblia. Fee e Stuart advertiram ser necessário obedecer aos
textos bíblicos e não somente lê-los ou estudá-los. Numa referência aos teólogos,
os autores afirmaram: “Somos regularmente conclamados, não só a sermos
estudiosos, mas também a compreendermos a maneira de aplicar a Bíblia”. O
grande desejo desses autores era que seus leitores compreendessem tão cuidadosamente
e tão plenamente quanto possível o que é que devemos saber acerca de Deus e da
sua vontade no século em que vivemos.
Primeiras hermenêuticas pentecostais brasileiras
Uma das primeiras hermenêuticas bíblicas escritas por autor pentecostal
brasileiro que se tem conhecimento é o livro Hermenêutica Bíblica de
Antonieto Grangeiro Sobrinho, lançado em 1980. Este livro foi elaborado,
segundo Grangeiro, “a pedido de servos de Deus, com o objetivo de atender às nossas
classes de estudos bíblicos”. Para ele, a necessidade de conhecer, observar e
divulgar as verdades da Bíblia, a fim de se determinar os verdadeiros contornos
doutrinários que devem ser observados pelo povo de Deus e evitar a penetração
de erros e heresias largamente difundidos, era um verdadeiro desafio nos seus dias.
Mas, Grangeiro advertiu que a hermenêutica se constituía apenas num auxílio
(grifo meu) na árdua tarefa de interpretar a Palavra de Deus. Entretanto,
ressalvou que, ainda que a Bíblia se interprete a si mesma, não se pode
dispensar esse precioso instrumento – a hermenêutica – colocado à nossa
disposição. Ele informou que o método de estudo hermenêutico faz parte da
Teologia Exegética ao lado da crítica textual e da exegese. Sua Hermenêutica se
compôs de conhecimentos preliminares para o estudo da hermenêutica; os conhecimentos
necessários das Sagradas Escrituras para interpretá-las; fundamentos da interpretação
bíblica (línguas originais, interpretação de textos isolados, textos obscuros,
sentido usual e comum das palavras, Jesus falando aos seus discípulos em linguagem
natural e ao alcance deles, e hebraísmos); a interpretação em sentido geral; textos
e contextos; interpretação da linguagem figurada; tipos; parábolas; símbolos;
profecia; auxílios externos (geografia bíblica, história e outros auxílios); e
dificuldades de interpretação da Bíblia. Grangeiro revela que sua hermenêutica foi
resultado de “um esforço dedicado à pesquisa em obras de estudiosos do assunto,
para atender ao escopo planejado”. A obra escrita com características
propedêuticas se constituiu no livro-texto da matéria na Escola Teológica das
Assembleias de Deus no Brasil (ESTEADEB), com sede no Nordeste, e ainda hoje
instrui a centenas de obreiros assembleianos por meio da Coleção de Ensino Teológico
da CPAD.
Cinco anos após a Hermenêutica de Grangeiro, o pastor e
escritor Raimundo de Oliveira lançou em 1986 o livro Como Estudar e
Interpretar a Bíblia com a proposta de um método que permitisse a Bíblia
falar por si mesma aos seus leitores.
Em 2003, o pastor e teólogo pentecostal Esdras Costa Bento escreveu
a sua Hermenêutica Fácil e Descomplicada, adotando o método de ensino
integrado para colocar ao alcance dos leitores blocos organizados de conceitos e
afirmativas, capazes de mostrar a unidade do estudo teológico e secular, e a
unidade do conhecimento interpretativo na multiplicidade de suas abordagens. Esdras
Bento trata dos fundamentos da Hermenêutica, Inspiração e Revelação, Hermenêutica
Bíblica, Hermenêutica Material, Escolas Tendenciosas de Interpretação, Hermenêutica
Contextual, Hebraísmos, Poética Hebraica e Figuras de Linguagem.
Os métodos hermenêutico-exegéticos em relevância entre
pentecostais
Nessas duas primeiras décadas do século XXI, na história da interpretação
bíblica entre os pentecostais no Brasil, a questão do método adotado começou a ser
discutido. Assinalo aqui os três mais debatidos nos últimos tempos.
Método Histórico Narrativo
Em 1994, o teólogo pentecostal norte-americano Stanley M.
Horton editou a Teologia Sistemática – uma perspectiva pentecostal, que foi
traduzida para o português em 1996. Nesta teologia sistemática, James H. Railey
Jr e Benny C. Aker, no capítulo 2, intitulado “Fundamentos Teológicos”, defendem
o que chamam de “crítica narrativa”, afirmando que os intérpretes pentecostais
vêm, já há algum tempo, empregando essa metodologia na sua forma mais simples.1
Para Railey Jr e Aker, o teólogo conservador acredita que a
narrativa está arraigada à história. Então, a história é o meio pelo qual teria
sido efetivada a revelação. “Ao proceder a narrativa, o autor sagrado foi
orientado pelo Espírito Santo na seleção daquilo que serviria ao seu propósito,
omitindo o restante”, explicam.
De acordo com esses dois teólogos pentecostais, a narrativa
era comum na Antiguidade, e ainda o é em muitos lugares, especialmente nos
países do chamado Terceiro Mundo. A narrativa estaria em franca ascensão no
Ocidente. Railey e Aker destacam o uso e a importância da narrativa como método
interpretativo. Ela comunica tanto de modo indireto como direto. No modo indireto,
o narrador expõe os seus argumentos através de elementos tais como o diálogo e o
comportamento. Por sua vez, para Railey e Aker, o comportamento se torna
“paradigma daquilo que os leitores devem valorizar e seguir (em Atos 2, receber
o Espírito com o falar em outras línguas fez-se normativo)”. Na comunicação
direta, o autor ensina na primeira pessoa de maneira proposicional. Citam como
exemplo de orientação proposicional na Bíblia a forma epistolar. Concluem,
então, que a Bíblia contém teologia tanto narrativa quanto proposicional.
Em 1999, o pastor e teólogo pentecostal norte-americano Anthony
D. Palma lançou o livro O Batismo no Espírito Santo e com fogo, que chegou
à língua portuguesa em 2002. Palma se vale integralmente do método histórico
narrativo para defender os fundamentos bíblicos e a atualidade do batismo no Espírito
Santo argumentando os seus aspectos principais: subsequência e separabilidade,
evidências físicas iniciais, e propósitos e resultados do batismo no Espírito.
Palma trata este método como “teologia narrativa” chamando à
atenção a um dos seus aspectos chamado “analogia narrativa”. Essa “analogia” tem
afinidades com a aproximação pentecostal tradicional da compreensão do batismo no
Espírito com base no livro de Atos. Palma informa aos seus leitores que a “teologia
narrativa” é discutida por Douglas A. Oss no capítulo A Pentecostal/Charismatic
View em Are Miraculous Gifts for Today? (1996) e por Donald A. Johns no capítulo Some New
Dimensions in the Hermeneutics of Classical Pentecostalism’s Doctrine of Initial
Evidence em Initial Evidence (1991).
Afirma Palma que os pentecostais têm à sua disposição e
devem utilizar aproximações metodológicas legítimas que ratificam a sua
compreensão quanto a assuntos relacionados à atividade do Espírito Santo nas
Escrituras. Ele chama isso de uma aproximação “panbíblica”, que consiste em incluir,
aos métodos tradicionais de interpretação da Bíblia, a utilização de
disciplinas como teologia narrativa e crítica redacional, “corretamente
aplicadas”. Para ele, Lucas se especializou em narrativa como um meio de
estabelecer verdades teológicas. Também Lucas, diz Palma, é cuidadoso ao
utilizar fontes que irão efetivamente retratar o que ele, sob a liderança do
Espírito, deseja enfatizar.
O renomado teólogo pentecostal Robert P. Menzies, filho de
William W. Menzies, pioneiro da teologia pentecostal nos Estados Unidos,
escreveu em 2013 o livro Pentecostes – essa história é a nossa história,
aplicando o método histórico narrativo. “A hermenêutica do crente pentecostal típico
é direta e simples: as histórias em Atos são minhas histórias – histórias que
foram escritas para servir de modelo para moldar a minha vida e experiência”,
resume Menzies. Em 2016, a obra hermenêutica e exegética de Menzies chegou ao
Brasil.
Em 2004, Kenneth J. Archer em sua obra A Pentecostal
Hermeneutic for the Twenty First Century – Spirit, Scripture and Community,
argumentou que as convicções narrativas centrais estão identificadas e relacionadas
à história pentecostal, que é o contexto hermenêutico básico por meio do qual as
Escrituras são interpretadas. Para ele, a hermenêutica pentecostal está
enraizada na tradição narrativa da comunidade. A tradição narrativa pentecostal
tem uma estrutura teológica coesa e está centrada na história dramática do
envolvimento dinâmico de Deus em sua comunidade. Esse método enfatiza a importância
de uma história controlada que inclui a necessidade imediata da experiência na interpretação
da Bíblia. No entender de Archer, esta é uma autêntica hermenêutica pentecostal
atuante dentro do pentecostalismo clássico.
Nessa direção da relevância da experiência pentecostal na interpretação
hermenêutica, os teólogos pentecostais Davi Mesquiati e Kenner Terra escreveram
em 2018, a obra Experiência e hermenêutica pentecostal: reflexões e propostas
para a construção de uma identidade teológica.
Para César Moisés no capítulo “Hermenêutica Pentecostal” do seu
livro Pentecostalismo e Pós-modernidade – Quando a experiência sobrepõe-se à
Teologia (2017), o método narrativo é um método progressista com pressupostos
conservadores. Este autor encerra o capítulo com uma ampla discussão sobre a possibilidade
da Teologia Narrativa para uma Teologia da Experiência do Espírito no
pentecostalismo.
O método narrativo é citado direta ou indiretamente (em algumas
páginas ou capítulos) em várias outras obras em português: Guia Básico para a
interpretação da Bíblia (Robert H. Stein, 1999); Defendendo o verdadeiro
evangelho (José Gonçalves, 2009); A Teologia Carismática de Lucas (Roger
Stronstad, 2018); O Espírito e a Palavra (Gutierres Siqueira, 2019); e Interpretando
as Narrativas Bíblicas (Altair Germano, 2020).
Método Histórico Crítico
Archer (2004) informa que uma ala significativa de
intérpretes pentecostais abraçou a posição de que os pentecostais precisam usar
métodos evangélicos e academicamente aceitáveis (uma abordagem histórico-crítica
de modernidade modificada) que consiga impedir a categorização epistemológica e
lute por fundamentos racionalistas universalmente aceitáveis. Porém, Archer (2004)
discorda desse pensamento afirmando que há outra ala que reconhece o
pentecostalismo como um movimento cristão autêntico cuja identidade não pode estar
submersa ao evangelicalismo sem perder importantes aspectos da identidade
pentecostal. Este teólogo se posiciona ao lado desta ala.2
Frederick Dale Bruner utilizou do método histórico-crítico em
seu trabalho exegético Teologia do Espírito Santo, lançado em 1970 e traduzido
em português em 1983.
O método histórico-crítico de interpretação é um método
praticado no liberalismo teológico, que é a sua base ideológica. É também
chamado de Alta Crítica.
Este método nasceu no Iluminismo, quando os homens passaram
a achar que a própria razão, a análise crítica e racional, é o suficiente para
o homem entender o mundo e resolver os seus problemas. A filosofia predominante
era o racionalismo.
Então, no método histórico-crítico, a interpretação da
Bíblia deixou de ser uma tarefa para entender o que o autor queria dizer para ser
uma tarefa de questionamento da produção do texto. O objetivo era tirar do cânon
formal o cânon normativo. O teólogo alemão Johann Salomo Semler (1725-1791) defendia
que era preciso distinguir e separar a “Palavra de Deus” da “Escritura”. O que
ele estava querendo dizer com isso é que as Escrituras conteriam erros e
contradições ao lado de palavras que provêm de Deus. Estava implícita a
descrença na possibilidade do sobrenatural na história, devido à influência do racionalismo
e do deísmo. Rejeitava-se a infalibilidade e a autoridade das Escrituras. Esses
foram pressupostos teológicos que estabeleceram as bases ao método
histórico-crítico. Os intérpretes que os utilizam praticam as seguintes etapas:
crítica das fontes; crítica da forma; e crítica da redação.
Os já citados teólogos Railey Jr e Aker explicam que depois
da Reforma Protestante houve o desenvolvimento da crítica bíblica que se dividiu
basicamente em Alta e Baixa Crítica, duas divisões que agora são usualmente denominadas
Crítica Histórica e Crítica Textual, respectivamente. Tanto os conservadores
como os liberais trabalham em ambas as áreas porque precisam utilizar a
exegese.3 Para estes teólogos pentecostais, a crítica textual
oferece grande ajuda na compreensão da Bíblia. Mas, eles alertam: “Quando nos ocupamos
da crítica bíblica, o ideal é não atacarmos a Bíblia (embora muitos o façam).
Pelo contrário: atacamos o nosso próprio modo de entender a Bíblia a fim de
harmonizar nossa interpretação com o significado original das Escrituras”. É da
Baixa Crítica ou Crítica Textual que nasce a “crítica narrativa”, que
intérpretes pentecostais vêm empregando na sua forma mais simples.
Palma, aludindo à estrutura do método histórico-crítico de interpretar
as Escrituras, afirma que, dentro dele, a disciplina chamada crítica redacional
obteve ampla aceitação em anos recentes. A premissa básica é de que o escritor
bíblico é um editor e que seus escritos refletem sua teologia. O escritor
bíblico pode examinar o material que tem em mãos e adequá-lo de modo a
apresentar sua agenda teológica pré-determinada. Então, Palma considera a crítica
redacional como uma ótica legítima e necessária. Porém, ele diz que, na forma
mais radical, permite que o autor modifique e distorça fatos, até para criar e apresentar
uma história como factual, com o objetivo de promover suas propostas
teológicas. Palma é convicto: “O Espírito Santo não permitiria que um escritor
bíblico apresentasse como fato algo que não tivesse realmente acontecido”.
César Moisés (2017) lembra que, no caso do cessacionismo, a
utilização do método histórico-crítico se torna conveniente, porque seus
pressupostos “antissobrenaturais” desconstroem a leitura que o pentecostal faz
dos textos bíblicos.
Método Histórico-Gramatical
Mais recentemente, o método histórico-gramatical vem sendo reafirmado
como uma reação ou alternativa em relação ao método histórico-crítico, que foi intensamente
difundido no século XX.
Na história da hermenêutica pentecostal norte-americana, o uso
dos métodos histórico-gramatical e histórico-crítico começou especialmente
quando a Assembleia de Deus dos EUA foi integrada ao National Association of Evangelical
(NAE), cujos traços são neo-ortodoxos e barthianos, notadamente pelo uso construtivo
e piedoso das ferramentas exegéticas modernas, um tipo de “criticismo
moderado”.
O objetivo deste método é achar o significado de um texto
sobre a base do que suas palavras expressam em seu sentido simples, à luz do
contexto histórico em que foram escritas. Então, o trabalho de interpretação é executado
de acordo com regras gramaticais e semânticas comuns à exegese de qualquer texto
literário, baseada na situação do autor e do leitor de seu tempo. Esse tipo de exegese
demanda um conhecimento dos antecedentes linguísticos, históricos, culturais e geográficos
da passagem. A interpretação histórica se refere ao contexto em que os livros
da Bíblia foram escritos e às circunstâncias em jogo. A interpretação gramatical
se refere à apuração do sentido dos textos bíblicos mediante estudo das
palavras e das frases em seu sentido normal e claro.
Em termos simples e objetivos, há três estágios para o método:
observação (o que diz o texto), interpretação (o que quer dizer o
texto) e aplicação (o que o texto quer dizer para nós).
Na história do cristianismo, este método teve seus
antecedentes na Escola de Interpretação de Antioquia, no século IV (Teodoro de
Mapsuéstia e João Crisóstomo), e foi posteriormente revitalizado durante a Reforma,
no século XVI. Tanto Lutero como Calvino insistiram em que a função do intérprete
é expor o texto em seu sentido literal, a não ser que a natureza do seu
conteúdo exija uma interpretação diferente (figurada).
Para Lutero, uma interpretação adequada das Escrituras deve
proceder de uma compreensão literal do texto. O intérprete deve considerar em
sua exegese as condições históricas, a gramática e o contexto. Lutero acreditava
também que a Bíblia é um livro claro (a perspicuidade das Escrituras). Segundo Calvino,
“a primeira tarefa do intérprete é deixar que o autor diga o que ele de fato
diz, em vez de atribuir-lhe o que pensa que ele deva dizer”.
Os movimentos pietistas (séc. XVII e XVIII) se uniram a um profundo
desejo de entender a Palavra de Deus e apropriar-se dela para as suas vidas por
meio da apreciação do método histórico-gramatical.
Os defensores desse método na hermenêutica pentecostal argumentam
que a intenção autoral propagada pelo método histórico-gramatical é testada pelo
tempo (desde os primórdios da igreja com a escola de Antioquia) e ideal para um
sadio método de interpretação bíblica pentecostal.4
A proposta de uma estratégia hermenêutica contemporânea
Em sua obra, Archer (2004) propõe uma estratégia hermenêutica
contemporânea que considera muito seriamente a antiga identidade pentecostal e
as práticas hermenêuticas. Para este teólogo, a estratégia não pode ser
reduzida a um método rígido ou na tentativa de retorno ao antigo pré-crítico
Método de Leitura da Bíblia. A estratégia abraçaria a História Pentecostal como
o contexto hermenêutico básico reapropriando-se criticamente de práticas
interpretativas incisivas dos pentecostais iniciais em uma estratégia hermenêutica
contemporânea.
A estratégia hermenêutica seria uma abordagem narrativa da interpretação
que abraçaria uma negociação tridática de significação entre o texto bíblico, a
comunidade pentecostal e o Espírito Santo. O significado seria alcançado por meio
do processo dialético fundamentado na relação dialógica interdependente entre as
Escrituras, o Espírito e a comunidade. Haveria a preocupação de envolver outras
comunidades (tanto cristãs como não cristãs) por meio do diálogo. Então, esta estratégia
hermenêutica e a interpretação das Escrituras estariam abertas à crítica de outras
tradições. Para Archer a articulação de uma hermenêutica pentecostal não é uma tentativa
de blindar os pentecostais das críticas nem é uma tentativa de se ter algum
método neutro que por si só demonstre a validade da doutrina pentecostal (tais como
línguas como a evidência física inicial do batismo no Espírito Santo). A
estratégia seria crítica e se basearia nas preocupações hermenêuticas
acadêmicas contemporâneas. A hermenêutica pentecostal seria ofertada como uma estratégia
para interpretar as Escrituras e a realidade de uma maneira crítica. O método
hermenêutico seria, por fim, produto da comunidade pentecostal, tornando-se
assim numa estratégia de hermenêutica pentecostal.5
Mais recentemente, o teólogo pentecostal Craig S. Keener
lançou uma obra que procura apresentar também uma proposta contemporânea de
hermenêutica pentecostal: A hermenêutica do Espírito - Lendo as Escrituras à
luz do Pentecostes, lançada em 2016, nos EUA, e em português no ano de
2018.
Notas
1 Nota do Editor: A expressão “Método Histórico
Narrativo” foi cunhada para designar o uso dos métodos tradicionais de
interpretação da Bíblia (Método Histórico-Gramatical) acrescidos de ferramentas
de crítica redacional e de narratologia (mais especificamente, analogia
narrativa e, daí, teologia narrativa). Essa é a metodologia hermenêutica
majoritária entre os teólogos do pentecostalismo clássico hoje, e é ligada à
chamada “Escola de Springfield”. Sobre esta, ver entrevista com Dr. Robert
Menzies nesta edição.
2 Nota do Editor: Sobre essa posição polêmica de
Archer, denominada “Escola de Cleveland”, ver entrevista com Dr. Robert Menzies
nesta revista. Archer está certo em sua resistência ao método histórico-crítico
(ver primeiro artigo desta série, do professor Torralbo, e a sequência deste
artigo do professor Isael de Araújo), mas entendemos que se equivoca ao
entender que tanto o método histórico-crítico quanto o método
histórico-gramatical sejam “racionalistas”, e ao apresentar uma proposta
radical de hermenêutica pentecostal, a qual é mais subjetiva, centrada no
leitor e na comunidade (ARCHER, 2004, p. 133 e 141).
3 No caso específico do uso da Crítica Histórica
por parte de teólogos conservadores, este se dá, como frisam Railey Jr e Aker,
apenas em relação à consulta de “fontes primárias”, como “a própria Bíblia, as
obras de historiadores seculares e descobertas arqueológicas”, e de “fontes
secundárias”, como “as obras de vários intérpretes, tanto antigos quanto
modernos”, com o objetivo de “conhecer com mais exatidão o contexto social e
cultural de um texto ou livro da Bíblia, levando-nos a interpretá-lo com mais exatidão”.
O uso que teólogos conservadores fazem de Crítica Histórica não envolve, por
exemplo, “modernas teorias sobre a história, que usualmente envolvem a negação
do aspecto sobrenatural” (HORTON, 1996).
4 Nota do Editor: Via de regra, os acadêmicos
pentecostais que usam o método histórico-gramatical o fazem adotando também,
como frisa o professor Isael, o “criticismo moderado”, de maneira que, na
prática, sua metodologia pouco se distingue do que é cunhado de Método
Histórico Narrativo.
5 Para uma crítica à proposta de Archer, ver
nesta edição a entrevista com Dr. Robert Menzies.
Notas Bibliográficas
ARAUJO, Isael de. Dicionário do movimento pentecostal.
Rio de Janeiro: CPAD, 2007.
ARCHER,
Kenneth J. A pentecostal hermeneutic for the twenty-first century - Spirit,
Scripture and Community. New York, USA: T&T Clark International,
2004. Em <
https://books.google.com.br/books?id=QXZ8UX1R9p4C&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false>
Acesso em: 15 de jul. 2020.
BENTO, Esdras Costa. Hermenêutica Fácil e Descomplicada.
Rio de Janeiro: CPAD, 2003.
CARVALHO, César Moisés. Pentecostalismo e pós-modernidade
– Quando a experiência sobrepõe-se à Teologia. Rio de Janeiro: CPAD, 2017.
FEE, Gordon D.; STUART, Douglas. Entende o que lês? Um
guia para entender a Bíblia com auxílio da exegese e da hermenêutica. São
Paulo: Vida Nova, 1984.
HORTON, Stanley M. Teologia Sistemática – uma perspectiva
pentecostal. Rio de Janeiro, CPAD, 1996.
KEENER, Craig S. A hermenêutica do Espírito – Lendo as
Escrituras à luz do Pentecostes. São Paulo: Vida Nova, 2018.
KUNZ, Claiton André. Método histórico-gramatical - estudo descritivo. In: Via teológica. Curitiba: FTBP, 2008. Nº 16, vol. 2, p. 23-53. Em < portalfbp.weebly.com> Acesso em: 20 de jul. 2020.
LUND, E.; NELSON, P. C. Hermenêutica - princípios de
interpretação das sagradas escrituras. São Paulo: Editora Vida, 1968.
MENZIES, Robert P. Pentecostes - Essa história é a nossa
história. Rio de Janeiro: CPAD, 2017.
OLIVEIRA, David Mesquiati de; TERRA, Kenner Roger Cazotto. Experiência
e hermenêutica pentecostal: reflexões e propostas para a construção de uma
identidade teológica. Rio de janeiro: CPAD, 2018.
OLSON,
Adolf. A centenary history. Illinois, USA: Baptist Conference Press,
1952.
PALMA, Anthony D. O batismo no Espírito Santo e com fogo
- os fundamentos bíblicos e a atualidade da doutrina pentecostal. Rio de
Janeiro: CPAD, 2002.
SOBRINHO, Antonieto Grangeiro. Hermenêutica Bíblica.
Rio de Janeiro: CPAD, 1981.
por Isael de Araujo
Compartilhe este artigo. Obrigado.
Postar um comentário
Seu comentário é muito importante