Por que as ações corretivas de Deus ao povo do Antigo Testamento são diferentes das de hoje?

Por que as ações corretivas de Deus ao povo do Antigo Testamento são diferentes das de hoje?

A hermenêutica das ações de Deus no Antigo Testamento sempre foi um desafio tanto para a tradição judaica quanto para a tradição cristã. Na sinagoga e na igreja, essas ações divinas são interpretadas em seu aspecto histórico e teológico com profunda reverência, piedade e paixão por ouvir o texto como Palavra de Deus.

A teologia das ações do Senhor é insofismável e muito bem desenvolvida na Primeira Aliança. Em Josué 24.31 e Juízes 2.7, o texto original afirma que “todo o feito que IHWH fez” era conhecido por todos. Essas narrativas descrevem o agir de Deus na história e o testemunho de pessoas reais que sabiam (yádha) e viram (ra'ah) em sua realidade e circunstância os feitos do Senhor (Êxodo 13.8; 18.8-12). Não é que por trás da história de pessoas reais está o agir de Deus, mas que o agir de Deus é concomitante com a realidade e circunstância de pessoas reais (Isaías 26.12), que experimentaram e testemunharam o agir de Deus na história (Êxodo 13.14). O Senhor não é apenas o Senhor da história, mas também o Salvador na história e da própria história (Êxodo 14.13-14). Ele é o Deus Salvador (Salmos 3.8; Isaías 43.11-12; Oséias 13.4). Para Israel, a história dos feitos de Deus é a verdadeira história, que abarca toda atividade humana (Salmos 126.3; 34.8). Desse modo, a narrativa das Escrituras apresenta Deus como personagem maior e principal (Números 23.23; Isaías 45.15). É o Senhor, em vez dos grandes heróis da fé, o realizador dessa história (Deuteronômio 26.7-9; Isaías 26.12; Hebreus 11). Nisso, a forma como Israel narra sua história é distinta da maneira como as antigas religiões do Antigo Oriente descreviam-na (a partir de mitos que fundamentavam e autorizavam as narrativas nacionais). O Deus de Israel é atuante na história do próprio povo. A promessa, a fidelidade e os feitos do Senhor induzem a história ao seu desenvolvimento e realização.

Um dos termos hebraicos usados com frequência para descrever a teologia das ações do Senhor é pō’al, que significa “obra”, “feitos”, “realização”, “fabricar”, “fazer”. O vocábulo apresenta várias ações operadas pelo Senhor, principalmente como agente. A forma verbal é aplicada às obras salvíficas (Salmos 74.12) e aos feitos operados por Deus para trazer as pessoas a si (Jó 33.29).

No contexto veterotestamentário, o modo como o narrador descreve a ação de um personagem é para revelar a natureza, o caráter e a personalidade do agente (Gênesis 27.36; 1 Samuel 25.25). Assim, o agir do Senhor é perfeito, pois Sua natureza é santa e justa (Deuteronômio 32.4). Os vários adjetivos empregados para os prodigiosos atos do Senhor, como “santo” (qōdhe) e “terrível” (yāre’), qualificam esses atos como procedentes de uma ação justa, de um Deus justo e temível (Êxodo 15.11; Salmos 77.13-15).

Todavia, no Antigo Testamento, o agir de Deus – isto é, obra e feito – não está restrito ao desenvolvimento histórico-salvífico, mas açambarca a devida retribuição, bênçãos e castigos dos atos, feitos ou obras más dos homens (Gênesis 6.5; Êxodo 34.6-7). É no contexto da justa retribuição das obras más que se insere o tema da justiça divina e as dificílimas passagens da vingança de Javé (Salmos 94), do Deus que fulmina (1 Samuel 6.12 cf. Números 4.19-20), da obstinação de faraó (Êxodo 9.12,34-35) do extermínio de povos (Deuteronômio 20.16-20), do espírito mal da parte do Senhor (1 Samuel 18.10), do recenseamento pecaminoso (2 Samuel 24.1-4 cf. 1 Crônicas 21.1-4), entre outras relacionadas à moralidade do Antigo Oriente Próximo. De igual modo, ainda há questões incomuns como o ordálio (Números 5.11-31), a força de Sansão residir em sua cabeleira (Juízes 16.17) e no mistério do sofrimento de Jó, o justo (Jó 2.3).

Apesar da dificuldade que essas questões ainda apresentam para alguns leitores modernos do Antigo Testamento, a Teologia Bíblica, a Exegese e Arqueologia do Antigo Oriente Próximo já apresentaram respostas suficientemente satisfatórias a respeito de cada uma dessas aparentes dificuldades bíblicas. Nossa Declaração de Fé não vê em quaisquer desses contextos teológicos e culturais motivos para não se atestar insofismavelmente a inspiração verbal e plenária da Bíblia, sua inerrância, infalibilidade, poder e autoridade (2 Timóteo 3.26; 2Pe 1.19-21), porquanto, à medida que o estudante consciencioso da Bíblia se familiariza com a linguagem, a cultura, e as formas literárias da Sagrada Escritura, mais e mais percebe a relação da inspiração verbal e plenária da Bíblia com seus gêneros literários e sua autoridade em tudo o que afirma. Portanto, apesar de haver métodos de leituras restritivas – que reduzem o Antigo Testamento à mera história da religião judaica – e anacrônicas, que consideram o Antigo Testamento como literatura ultrapassada e sem qualquer valor efetivo para o cristianismo, o cristão deve ler organicamente a Escritura, crendo em sua inspiração divina, inerrância e revelação da vontade de Deus para a Igreja. O Antigo Testamento, por conseguinte, não é uma revelação secundária e antiquada a qual os cristãos modernos podem ignorar, dispensar ou contestar.

Logo, antes de se responder à questão, é necessário compreender que o Antigo Testamento fala à Igreja de hoje tanto quanto falou a Jesus, aos apóstolos e à Igreja Primitiva nos primeiros séculos. Doutra forma, há de se perceber que mesmo em o Novo Testamento encontramos alguns testemunhos que, de alguma forma, ainda se conformam ao rigor e à especificidade veterotestamentários. A morte instantânea e misteriosa de Ananias e Safira em Atos 5 lembra a de Nadabe e Abiú em Levítico 10. A morte de Herodes em Atos 12. 21-23, embora se resguarde sua especificidade, aponta para a ação do anjo do Senhor na morte dos primogênitos (Êxodo 12.12, 23), na lepra de Uzias (2 Crônicas 26.16-21), e na doença do rei babilônio (Deuteronômio 4.29-37); a imprecação de Paulo contra Elimas (Atos 13.8-11) recorda a mão ressequida de Jeroboão (1 Reis 13). Todavia, permanecem as diferenças. Os 102 soldados que foram buscar Elias por ordem de Acazias foram fulminados por “fogo do céu”, em honra as imprecações do profeta (2 Reis 1.9-12 cf. Salmos 58; 139.19-24); contudo, Jesus reprova a imprecação dos discípulos contra os samaritanos, “porque o Filho do Homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las” (Lucas 9.51-56). Paulo recomendou: “Abençoai e não amaldiçoai” (Romanos 12.14). Por fim, em 1 Coríntios 10.6, Paulo afirma que o fracasso de Israel no deserto são “figuras”, “tipos” (typoi) ou advertências proféticas para a Igreja e, portanto, o cristão deve “considerar a bondade e a severidade de Deus” com os que “caíram”, e os que “permanecem” devem atentar para que não sejam “cortados” (Romanos 11.22). Aos desobedientes no Antigo Testamento, Deus sempre os chamou “com cordas de amor” (Oséias 11.4) ao “arrependimento” e “perdão” (Isaías 1.18), à prática do bem e da justiça (Isaías 1.16-17). Sua misericórdia foi estendida “todos os dias a um povo rebelde” (Isaías 65.2). O castigo atribuído nada mais era do que consequência da dureza do coração humano (Atos 17.51-56). O motivo pelo qual Deus não age hoje como fizera antes é devido ao Seu infinito amor revelado em Jesus Cristo (João 3.16), nosso Advogado perante o Pai, Verdadeiro Deus, Verdadeiro Homem (2 João 2.1). Todavia, o Senhor, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, aguarda a adesão do homem ao seu infinito amor revelado.

Por Esdras Costa Bentho.

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