Reflexão sobre Mateus 5.21-48

Reflexão sobre Mateus 5.21-48

O capítulo 5 do Evangelho de Mateus contém 48 versículos que estão, em algumas Bíblias, didaticamente separados por entretítulos. Do versículo 1 ao 12, o entretítulo é “As Bem-Aventuranças”; do 13 ao 16, há dois entretítulos: “Os discípulos, o sal da terra” e “Os discípulos, luz do mundo”; do 17 ao 20, “Jesus não veio revogar a Lei, mas cumprir”; e do 21 ao 48, “Jesus completa o que foi dito aos antigos”, com subdivisões: do homicídio, do adultério, dos juramentos, da vingança e do amor ao próximo.

Antes de chegar no versículo 21, convêm dar uma olhada nos versículos anteriores, que nos mostram que Cristo não veio revogar a lei, mas cumpri-la. É muito comum ouvirmos por aí que vivemos no tempo da graça e que, portanto, não precisamos cumprir a lei. Também há quem diga que não precisamos procurar viver corretamente, visto que Cristo já morreu por nós, logo não precisamos realizar nenhum sacrifício, o que implicaria essa despreocupação. Ou se cumprirmos uma ritualidade externa cotidiana, estaremos cumprindo o papel a nós destinado. Mas não é o que Cristo nos fala no versículo 20: “Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus”. Que tipo de justiça é essa? E o que representavam esses dois grupos, denominados escribas e fariseus? Aqui no versículo 20 já se percebe a dinâmica da dialética em ação.

A noção de justiça no Antigo Testamento entre os judeus estava ancorada naquilo que era presente também em várias culturas da mesopotâmia e do oriente próximo: a observância de leis e ritos para uma convivência pacífica. A ideia de se pensar enquanto membros de uma coletividade traz um caráter objetivo para a experiência de justiça e remissão dos pecados. A experiência era externa, não interna. Primeiro, o que está em jogo é a coesão do grupo. Quando Moisés recebe de Deus as tábuas da lei e elabora, sob a orientação divina, o código de leis hebraico, vemos que essa lei é elaborada pensando em uma perspectiva objetiva e coercitiva, que hoje chamamos de fato social durkheimiano. De certa forma, o Código Mosaico muito se assemelha aos outros códigos existentes no período, como, por exemplo, o Código de Hamurabi. Por outro lado, entre as diferenças está o fato de que no Código Mosaico não se percebe uma divisão de classes, algo que é presente no Código de Hamurabi.

Quanto às expiações, na lei mosaica se sacrificava um animal para expiação dos pecados e não para a mortificação da própria carne de quem comete o pecado. Neste ponto, o cristianismo introduz um caráter subjetivo à experiência de retidão e justiça, onde não adianta instrumentalizar a expressão de uma observância de leis e costumes de maneira externa, como Cristo demonstra com os atos dos escribas e dos fariseus, grupos diferentes e pertencentes a graus diferentes, presentes na sociedade judaica do período.

Os escribas seriam os intelectuais do Templo, especialistas na lei, enquanto os fariseus eram observadores da lei, devotos da Torá de forma ultraconservadora. Segundo Cristo, tais atos de observação das Escrituras nada modificam no ser humano, se não ocorrer uma nova realidade espiritual oriunda de um relacionamento com Deus na vida da pessoa. Ao interpretarmos a passagem do texto de Mateus capítulo 5, versículos 21 a 48, percebemos que Jesus procede uma construção argumentativa trabalhando com os conceitos da dialética e da didaqué. Dialética é um conceito percebido de forma primeira na filosofia grega, com o pré-socrático Heráclito. Ele dizia que tudo é um devir, ou seja, um vir a ser, uma constante, uma incompletude. Dizia ele que você não põe os pés no mesmo rio de forma igual duas vezes, pois tudo está em um constante processo de mudança. Dialética é mudança, movimento, o que está presente no trecho de Mateus 5.21-48. Portanto, o decurso narrativo não é kerigma, palavra usada no Novo Testamento para indicar mensagem, pregação. Este excerto do capítulo demanda um modelo de construção narrativa aos moldes da didaqué, onde Cristo, através da dialética, ensina Seus discípulos a como proceder dentro de uma nova compreensão que advêm dEle. Ora, se Ele veio para cumprir os desígnios de Deus e a lei se manifestou de forma completa nEle, logo a vivência da lei se toma um novo sentido através dEle. Uma vivência que requer dos homens uma nova vida pautada em um relacionamento sincero com Deus.

A metodologia da dialética pode ser demonstrada nesta passagem: “Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo (como disseram os antigos). Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos” (Mateus 5.43-45). Tal passagem demonstra a presença de uma nova dialética em Cristo: uma dialética que não nega a lei, mas que a completa, na medida em que a vivência do amor está pautada nEle.

O excerto demonstra uma mudança de postura necessária ao fiel, que é amar aqueles que não o amam. A lei em Cristo transcende a lei dos homens. Neste sentido, esse movimento dialético produzirá no crente sua constante transformação em busca do alvo que é Cristo. O capítulo termina no versículo 48, dizendo: “Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste”. Não significa que o crente é perfeito como Deus, mas quem pertence a Cristo pratica a piedade, que advém da transformação oriunda da graça e da perseverança na fé. Portanto, a perfeição para o cristão é o caminho que ele trilha de forma piedosa, que só é vivenciada em Jesus.

Por, Jakson Hansen Marques.

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