“Israel é o Meu Primogênito”

“Israel é o Meu Primogênito”

O primogênito! Para uma família hebreia, sua chegada representava a confirmação da bênção de Deus para o casal através da constatação da capacidade reprodutiva. O primeiro descendente garantia a continuidade da família com a possibilidade de uma nova geração, e reunia em seu entorno as esperanças parentais quanto aos anos vindouros, conforme fosse crescendo e assumindo os encargos com a provisão, segurança e manutenção dos valores e tradições, inclusive legislando em esferas variáveis, conforme a época e a civilização, sobre os demais descendentes e agregados. Assim sendo, proteger ou destruir um primogênito equivalia à conservação ou destruição do próprio futuro. Quando o Senhor feriu os primogênitos do Egito, puniu os sonhos daquela nação e todos os seus líderes, enquanto conservava e consagrava para Si mesmo os primeiros nascidos de Israel, portanto, todo um povo. Israel deixou de ser servo de Faraó para tornar-se servo do Deus Eterno e, agora, seu futuro estaria depositado nas mãos de seu Senhor.

Devido à grande responsabilidade colocada sobre os ombros de um primogênito, a ele cabiam, igualmente, muitos privilégios. O mais conhecido é a porção dupla da herança paterna, mas essa partilha material nada seria sem estar acompanhada pela bênção do pai, que incluiria o derramar da graça necessária para que os recursos fossem não apenas bem administrados, mas estivessem debaixo da poderosa mão dAquele que envia o orvalho desde os céus e faz frutificar a terra, os animais e os seres humanos. Além disso, a primogenitura envolvia o recebimento do sacerdócio familiar como herança, ou seja, o privilégio de suceder o pai no governo da família e a honra de oficiar todo o serviço de devoção a Deus. O primogênito, portanto, não apenas assegurava a continuidade física e comunitária, mas a permanência da fé através das gerações. Quando de sua consagração, toda uma nova geração era consagrada ao serviço do seu Deus.

Um homem tinha como primogênito, claramente, seu primeiro filho, o seu ‘bekor’ – aquele que rompe – numa alusão à dinâmica do nascimento (o termo grego é ‘protótokos’, de ‘protos’, primeiro, e ‘tikto’, dar à luz). Nos casamentos poligâmicos, o primogênito poderia ser escolhido entre os primeiros filhos das várias mulheres. No caso de Jacó, pela ordem natural, Ruben foi o primeiro gerado, mas, quer pelos erros cometidos por ele em afronta a seu pai, quer pela lembrança de que, não fosse a interferência de Labão, o herdeiro principal seria o primeiro filho de Raquel, coube a José o acúmulo das funções relativas à liderança familiar. De qualquer forma, o herdeiro ao qual é atribuída a primogenitura pela ordem de nascimento é chamado primogênito por herança. Nas situações em que o primeiro filho da mulher não era, necessariamente, o primeiro filho do homem, cabia ao marido legitimar a criança como seu herdeiro principal, através da remissão, quando o bebê tivesse trinta dias de nascido. Com a quantia de cinco siclos, o pai declarava: tenho outros filhos, com outras mulheres, mas este é o meu primogênito com esta mulher e, portanto, herdeiro da porção da herança que couber à minha continuidade com ela após minha morte ou no tempo que eu determinar. Tratava-se, nesse caso, de um herdeiro por remissão. Havia, ainda, a posição do primogênito por escolha, como no caso de Efraim, declarado primogênito (Jeremias31.9) em lugar de Manassés, ou de Davi (Salmos 89.27), apesar de ser o caçula dos oito filhos de Jessé. Igualmente Israel é declarada, como nação, a primogênita do Senhor, mesmo não sendo a mais antiga das nações do mundo. De qualquer forma, sendo por herança, remissão ou eleição, a clareza do estabelecido precisava ser tal que não levantasse suspeitas posteriores. A parteira que auxiliou Tamar quando do nascimento dos gêmeos, filhos de Judá, um príncipe de Israel, procurou com zelo sinalizar o primeiro nascido, embora não contasse com a estranha manobra feita belos bebês, quando o primeiro a apontar a mão recolheu-se, tendo sido aberto o caminho para a primogenitura de Perez (aquele que rompe, que faz a rotura) em lugar de Zerah. Tais cuidados deviam-se à importância espiritual, social e material da função do primeiro filho e suas implicações para a vida comunal. Todos os primogênitos eram redimidos no trigésimo dia com o valor de até cinco siclos do santuário. O dinheiro, entregue aos filhos de Arão, representava o reconhecimento de que os levitas exerciam, pela nação como um todo, o serviço que cada primeiro nascido deveria prestar a Deus, ficando estes liberados para o serviço dentro da esfera familiar.

Aliás, a importância do posto elevou de tal maneira seu significado que o termo primogênito ganhou a estatura de título de honra. Dizer, por exemplo, que Jesus é o ‘primogênito de toda a criação’ (Colossenses 1.16,17) não significa declarar que foi o primeiro a ser criado, o que seria de todo incoerente diante da afirmativa de que todas as coisas foram criadas por meio dEle, mas tem o sentido de que exerce autoridade sobre toda a criação. A expressão ‘primogênito dentre os mortos’ também não guarda sentido cronológico, pois outras pessoas foram ressuscitadas antes do Senhor. No entanto, tais pessoas voltaram a morrer. Jesus é o primeiro dentre aqueles que morreram e ressuscitaram gloriosamente, para não mais experimentar a morte, sendo Ele as primícias (1 Coríntios 15.20) e a garantia futura de um povo que também ressuscitará. Prosseguindo, dentro do mesmo raciocínio, Jesus é o ‘primogênito entre muitos irmãos’, ou seja, é o nosso amado ‘irmão mais velho’. O termo guarda o sentido de excelência, honra, direito de exercer autoridade e capacitação para a prestação de um serviço especial a Deus.

Ainda hoje, os primogênitos de Israel com mais de treze anos aguardam o dia que antecede a celebração de Pessach (Páscoa) para um jejum especial. Com isso, lembram que o Senhor poupou os primogênitos de seu povo no Egito, preservando, assim, o futuro da nação. Também os que têm em Jesus Cristo a sua Páscoa celebram a morte do Cordeiro que, com o Seu sangue, preservou-nos com vida e selou-nos para a ressurreição e para a vida eterna.

Diante do exposto, diríamos que a primogenitura não tem preço, de que a honra de seu estatuto deve ser recebida e guardada com gratidão e senso de responsabilidade. Esaú, no entanto, ensina-nos que mesmo um bem tão precioso pode vir a ser desprezado, quando deixamos falar a voz da impulsividade, do apelo imediatista da carne, ou atentamos às racionalizações sobre a prioridade daquilo que é necessário, em detrimento àquilo que é precioso. Nessa troca de valores, a receita de um guisado de lentilhas reúne uma porção de carnalidade (Esaú foi devasso) e outra de profanação (desrespeito pelas coisas sagradas, coisas para as quais o Senhor reservou um propósito). Atraído pela receita que satisfaz os sentidos e altera os valores, Esaú vendeu a bênção, negociou a herança, minimizou o valor da unção. Diz a palavra: “E ninguém seja devasso, ou profano, como Esaú, que por uma refeição vendeu o seu direito de primogenitura. Porque bem sabeis que, querendo ele ainda depois herdar a bênção, foi rejeitado, porque não achou lugar de arrependimento, ainda que com lágrimas o buscou” (Hebreus 12.16,17).

Quando o Senhor fez saber a Faraó que Israel é o seu primogênito, afirmou a existência de um chamado, de uma bênção, de uma autoridade para a prestação de um serviço a Ele e à sua casa. O serviço cumprido pela vinda do Messias não anula a permanência do chamado para o sacerdócio ao qual foram comissionados. Não há escatologia bíblica sem Israel. Não há possibilidade humana e racional para a existência de Israel como nação fora das promessas bíblicas.

Passada a Páscoa, lembre-se Israel de seu chamado, da aliança estabelecida, para que jamais venha a sucumbir atraído pelas iguarias que fizerem perverter o caminho de Esaú. Passada a ameaça no Egito, lembre-se o povo todo que, quem é salvo da morte, o é por algum propósito. Passadas as agruras da sombra da enfermidade, que o livro de Jó declara ser primogênita da morte, reafirmemos a disposição de servir a Deus [...] no deserto, nas alturas, nas profundezas, nos lugares visíveis ou desconhecidos, honrando a graça que sobre nós foi derramada.

Por, Sara Alice Cavalcanti.

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