Lutero e a pandemia em Wittenberg

Lutero e a pandemia em Wittenberg

Entre julho a novembro de 1527, Wittenberg, na Alemanha, foi assolada pela Peste Negra e muitos saíram da cidade fugindo da morte. Amigos íntimos de Lutero, tais como Justo Jonas e Melanchthon, deixaram a cidade com suas respectivas famílias. À própria universidade foi transferida para cidade de Jana, retornando as aulas somente em abril do ano seguinte. A residência de Lutero transformou-se num hospital em que o próprio reformador teve que transformar-se num “médico”, bem como a esposa, cuidando dos doentes e moribundos. Os moradores de Wittenberg, poucos anos depois, o acusariam de disseminar a peste na cidade. Morreram ali 18 pessoas, com várias delas tendo recebido cuidados em sua residência.

Somados a estes problemas, Lutero enfrentava uma doença tão grave que não acreditavam mais em sua recuperação; e o filho Hans, por sua vez, de apenas um ano, também adoecera gravemente. A esposa Catarina estava grávida do segundo filho que nasceria em dezembro, Madalena. Ela morreria 13 anos depois. Somavam-se a estes problemas as inúmeras controvérsias que seus opositores lhe lançavam.

Diante dessa situação crítica para toda a Wittenberg, alguns pastores escreveram a Lutero pedindo orientação se deveriam ou não sair da cidade, pois muitos assim estavam fazendo. Encontrava-se Lutero assoberbado e doente. Ele tinha múltiplas atividades. Em fins deste mesmo ano e início de 1528, ele concluiu duas grandes obras: Da Ceia de Cristo e Apontamentos à Primeira Epístola a Timóteo. E em dezembro de 1527 nasceu-lhe a filha Elizabeth, que faleceria em agosto de 1528.

Lutero responderá ao pedido de orientação dos pastores em novembro de 1527. Ele escreve uma carta aberta sob o título “Se as pessoas devem fugir de uma peste mortal”. Ao responder, ele não procura uma resposta simplista, dizendo um “sim” ou “não”, mas apresenta conselhos razoáveis para uma situação tão complexa, envolvendo questões éticas, morais e teológicas.

Percebe-se em Lutero um exemplo de altruísmo quando ele aconselha que seus amigos e líderes, tais como Melanchthon, se retirem de Wittenberg em função da peste para que o movimento reformador não fique sem liderança, mas que ele próprio – Lutero – continuaria na cidade. Trechos desta carta aparecerão a seguir entre aspas. Eles foram extraídos da obra Além das 95 Teses, de Stephen Nichols (São José dos Campos, SP: Fiel, 2017, pp. 161 a 164).

A carta de Lutero começa afirmando que “algumas pessoas têm a firme opinião de que não se deve fugir de uma praga mortal. Em vez disso, como a morte é um castigo de Deus, temos que nos submeter ao que Ele manda sobre nós por nossos pecados e, com uma fé verdadeira e firme, aguardar pacientemente pela nossa punição”. Diante deste posicionamento, Lutero evidencia a “fé firme” e afirma que “merece nossa recomendação”. Porém, deve-se observar com zelo o cuidado para não ferir a “fé” de muitos cristãos que não têm essa convicção, pois “são fracos” e “não se pode simplesmente colocar o mesmo fardo sobre todas as pessoas”. Na verdade, afirma Lutero, este posicionamento não necessariamente “representa uma verdadeira vida de fé”.

Ele destaca que o leigo ou gente comum poderia fugir da peste, mas os pastores e autoridades governamentais devem “permanecer firmes diante do perigo da morte (...) Pois, quando o povo está morrendo, é nesse momento que mais necessita de um ministério espiritual que o fortaleça e conforte sua consciência”. Caso haja número de ministros suficientes para atender aos necessitados, poderá haver entre eles uma avaliação para ver quem sai ou fica. Também declara Lutero que os que “exercem um ofício público, como prefeitos, juízes e outros, têm a obrigação de permanecer”. Ressalta ele ainda que “abandonar toda uma comunidade cujo chamado recebeu para governar e deixá-la sem autoridade ou governante, exposta a toda espécie de perigo, como incêndios, assassinatos, levantes e todo desastre imaginável, é um grande pecado”. Deve-se observar a relação que Lutero faz destes ofícios como uma atribuição de Deus.

Cita o reformador também outros grupos que estão presos aos deveres, tais como servos e senhores que não devem ir embora, se não por consentimento mútuo. Ele argumenta questões éticas como amar ao próximo, em especial aos órfãos. “Ninguém deve ousar abandonar o próximo até que existam outros para cuidarem dos doentes. (...) Em casos tais, temos de respeitar as palavras de Cristo: ‘Estive enfermo e não fostes me visitar’”. Havendo um número suficiente para cuidar das pessoas, uns grupos poderiam fugir. "Devemos sempre preservar a vida e evitar a morte".

O equilíbrio de Lutero é percebido na atitude que ele assume diante da peste em relação à utilização do abuso da fé. Ele recomendava “recorre à medicina; toma porções que possa ajudar; fumiga tua casa, quintal e rua; evita pessoas e lugares sempre que teu vizinho não tiver necessidade de tua presença ou se já estiver recuperando”. Como prova de seu bom senso, colocou sua própria casa em quarentena, após ter servido como hospital. Seu princípio fundamental é amar o semelhante, não somente nos tempos bons, mas nas piores horas. Disse ele: “Um homem que não queira ajudar ou suportar os outros, só o fazendo se não puser em risco a própria segurança ou propriedade, jamais ajudará ao próximo”. E concluiu: “A piedade nada mais é do que servir a Deus. O serviço a Deus e o serviço ao próximo”.

Pode-se dizer que Lutero não somente pregava ou ensinava aos alunos, fiéis, autoridades e oponentes, mas praticava através de seu próprio exemplo. Sempre equilibrava o bom senso com o uso de uma confiança em Deus através da fé. Percebe-se também nesta carta que seus admiradores ou seguidores o viam não somente como um líder religioso, mas como um orientador para questões circunstanciais da vida. 

Por, Vantuil G. dos Santos.

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