Crianças mortas por zombarem do profeta Eliseu?

Crianças mortas por zombarem do profeta Eliseu?

Qual o contexto e o correto entendimento do texto bíblico registrado em 2 Reis 2.23-25?

Em busca da resposta à pergunta acima, vejamos alguns pontos:

Em primeiro lugar, como diz a boa regra hermenêutica, o contexto do texto deve sempre ser analisado. Eliseu acabara de receber a incumbência de substituir o grande profeta Elias (2 Reis 2.1–18). Diante dessa nova autoridade profética, a Escritura registra, no mesmo capítulo, dois episódios em que quem abençoa Eliseu é abençoado (vv. 19–22) e quem ameaça Eliseu é amaldiçoado (vv. 23–25). Outro ponto é que Eliseu pronuncia uma maldição semelhante à maldição da aliança de Levítico 26.21–22. Eliseu, que fala em nome de Deus, é a voz contra a desobediência de Israel. Esse grupo de “meninos” representa a oposição do povo de Israel à Palavra.

Em segundo lugar, o problema nasce quando o leitor presume que o texto retrata crianças. Não é o caso. A NVI, a CNBB e a TEB traduzem a expressão composta pelo substantivo hebraico naar (menino, jovem, criado) e pelo adjetivo qatan (pequeno, jovem, insignificante) como “meninos” (v. 23). Embora seja tradução possível, à luz do contexto parece não ser a tradução mais adequada. A ARC traduz a expressão como “rapazes pequenos” e a NVT como “adolescentes”. Mas, ao que parece, quem melhor capta o sentido do texto são as traduções NAA e BJ, que traduzem a expressão como “uns rapazinhos”. O sentido do texto é, portanto, qualitativo e indica uma espécie de gangue ou milícia juvenil. Não é à toa que o Talmude judaico interpretava esse texto indicando os zombadores como “jovens adultos que se comportavam como crianças pequenas e meninos bobos”.(2)

Em 1 Reis 12.8, vemos um exemplo de como o substantivo indicativo de idade muitas vezes é relativo ao contexto. Os colegas de Roboão são chamados de “jovens” (ARC), que traduz o substantivo hebraico yeled (o mesmo usado em 2 Reis 2.24), que também significa “menino”, “criança”, “filho”, mas sabemos que esses “jovens” já estavam na faixa dos 40 anos (1 Reis 14.21). Eles eram apenas mais jovens do que os anciãos de quem Roboão desprezou os conselhos, porém já eram homens formados.

Em terceiro lugar, em nenhum momento da história você esperaria crianças pequenas aglomeradas com outras 40 crianças na beira de uma estrada zombando de carecas. A zombaria era bem específica contra os profetas (2 Crônicas 36.16). Um grupo tão grande de jovens encrenqueiros representava um perigo real ao profeta. Era uma verdadeira turba. O contexto indica um grupo de homens com comportamento imaturo, não um grupo de criancinhas irreverentes.

Em quarto lugar, talvez Eliseu nem fosse calvo. Afinal, ele ainda era jovem quando esse episódio ocorreu. Pode ser que Eliseu tivesse uma marca (raspagem do tipo tonsura) na cabeça que o indicava como profeta ou ainda que ele, na verdade, tivesse um volumoso cabelo e os jovens o zombaram em sentido irônico contrário — como alguém que zomba uma pessoa acima do peso o chamando de “sarado”. Ou ainda Eliseu sofria de alopecia. Mas o ponto que chamo atenção é que a zombaria, embora focada numa questão estética, era um sarcasmo recorrente contra todos os profetas — como indicado no parágrafo anterior.

Observe que o texto diz que Eliseu estava viajando para Betel. A cidade de Betel era o centro religioso da realeza do Reino do Norte (1 Reis 12.29; Amós 7.13). Aqueles rapazes eram de Betel e certamente estavam cientes que Eliseu vinha para a cidade a fim de condenar o culto idólatra da realeza. O objetivo desses rapazes era impedir a viagem do profeta. O grupo era uma ameaça não apenas à integridade física do profeta Eliseu como também era um impedimento para a continuidade da missão. “Suma daqui, careca!”, diziam eles.

Os medievais viam os zombadores de profetas no Antigo Testamento como um prenúncio daqueles que zombariam de Cristo na cruz. Certamente você se lembra de uma cena do filme “A Paixão de Cristo” (EUA, 2004) em que Satanás carrega uma criança de colo com cara de um homem velho que se regozija com o sofrimento de Cristo. Da mesma forma, essa turba de jovens delinquentes queria perturbar e ameaçar o profeta com sua zombaria e agressividade.

Embora a narrativa seja muito curta, intensa e dramática, o que temos em 1 Reis 2.23–25 é apenas mais uma história de livramento do Senhor a um servo fiel.

Notas Bibliográficas:

(1) MONTGOMERY, James A. A Critical and Exegetical Commentary on the Book of Kings. 1 ed. Londres: T. & T. Clark, 1986. p 355.

(2) ZIOLKOWSKI, Eric. Evil Children in Religion, Literature, and Art. 1 ed. Nova York: Palgrave Macmillan, 2001. p 24.

Por, Gutierres Fernandes Siqueira.

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