Os desafios de ensinar doutrina bíblica

Os desafios de ensinar doutrina bíblica

Ensinar doutrina bíblica nos dias atuais se constitui um grande desafio. Essa dificuldade passa por três elementos: o estudo paciente e sistemático da doutrina, a compreensão e aplicabilidade da doutrina e, finalmente, a receptividade da doutrina. Neste artigo, enfoco este terceiro ponto: a receptividade da doutrina.

A própria palavra doutrina já assusta, especialmente os jovens. Dá ideia de algo opressor. O dicionário a define como o conjunto de princípios que servem de base a um sistema religioso, político filosófico, cientifico etc. Portanto, a doutrina está presente em vários sistemas. No entanto, ela só é muitas vezes ridicularizada e combatida no campo religioso  Isso acontece por causa do processo de ideologização das palavras. As palavras, não sendo neutras,  podem trazer junto de si ações no tempo e no espaço. Baktin' afirma que“  a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico universal”. É assim que a palavra  doutrina é associada: com opressão, algo que inibe, castra e poda.

Para invalidar a necessidade de se ensinar doutrina, muitos dizem: “O que vele mesmo é o amor”. Assim, conveniente e estrategicamente, o amor é visto como substituto da doutrina apela-se para os aspectos  romantizados e emocionais do amor inclusive citando textos como 1 Coríntios 13 fora do contexto, e aplicando-o  não como expressão da doutrina, mas como opositor a esta e acrescentando que, ao longo dos séculos, urna das principais cansas das guerras e conflitos no mundo foram doutrinas religiosas.

Segundo Alister Macgrath, há quatro dimensões em relação a natureza da doutrina: a doutrina é um demarcador  social; é gerada pela narrativa; interpreta a experiência; e faz afirmações da verdade.

Como demarcador social, a doutrina define, identifica e distingue um grupo. Historicamente, o cristianismo teve  que se definir e diferenciar inicialmente do judaísmo, depois do gnosticismo, do platonismo e, com a  conversão” de Constantino, teve que formular suas crenças, que ganharam importância política já no período medieval, a fé cristã passa a ser vista pela nomenclatura “cristandade” e a doutrina passa a perder a função de  demarcador social, pois igreja e sociedade se tomaram difíceis de distinguir nesse período. A igreja tinha doutrina, mas esta deixou de ter um caráter de demarcador social mais intenso, que votou a termais relevância na Europa no período da Reforma, surgindo o fenômeno da “confessionalização”, com as formulações doutrinarias.

Outra dimensão da doutrina é a interpretação da narrativa nesse caso, a narrativa fundamenta a doutrina. Isso se  vê claramente no Novo Testamento. O relato da morte de Jesus, por exemplo, se toma doutrina, objeto de confissão de fé e ritual litúrgico nas Epistolas. A narrativa concentra no relato do fato e a doutrina, na  sistematização do fato. Então, há uma transição da narrativa para a doutrina, e isso acontece pelos pressupostos  que são identificados na própria narrativa e que se transformam em axiomas. A narrativa fornece a estrutura conceitual, que por sua vez se vale da correlação escriturística e inferência.

A doutrina tem outra dimensão que é a interpretação da experiência. O Cristianismo é eminentemente experiencial. Assim, as formulações doutrinárias procedem de experiências. No entanto, como uma experiência pode ser expressa em palavras?

A pergunta acima tem gerado uma tensão entre o sentir uma experiência e expressá-la em palavras, bem descrita pelo solipsismo. No entanto, é típico da própria experiência sempre apontar para algo mais. Isso  acontece com a poesia, por exemplo, e com a doutrina cristã: ela é obrigada a expressar em formas históricas, em palavras, aquelas coisas que, por sua própria natureza, se recusam a ser reduzidas a essas formas.

Não podemos caricaturar a doutrina como mero jogo de palavras, pois as aceitamos na poesia, por exemplo,  momento em que as palavras comunicam emoção. A experiência é expressa, comunicada e desperta o outro somente quando é afirmada em formas cognitivas utilizando as palavras, proposições, embora o fato dessas  palavras serem às vezes incapazes de apreender a experiência na sua totalidade é algo inevitável, típico de quem  vive na história e se comunica em formas históricas, não sendo privilégio apenas da comunicação da  doutrina bíblica, mas de toda forma de comunicação no tempo e no espaço. Para ser interpretada,  criticada e sentida, a doutrina precisa ser expressa em palavras e proposições. É a relação, embora imperfeita, da  emoção com a cognição.

A doutrina também é vista como a afirmação da verdade. A definição de verdade e a busca por ela têm sido muito  debatidas pela filosofia. Embora o termo seja “alitheia” no grego, “ernunah” no hebraico ou “veritas” no latim, ele  tem muitas nuances, sendo uma das mais comuns a definição de que verdade é aquilo que corresponde à realidade. Assim, a fé cristã se relaciona com a verdade pois corresponde á verdade revelada das Escrituras.

A relação da doutrina bíblica com a verdade é, em primeiro lugar, pelo fato de os eventos bíblicos serem históricos. As proposições e conceitos das doutrinas bíblicas têm como referentes eventos históricos e a reflexão subsequente desses eventos, refletindo, portanto, a realidade.

Além de históricos, os eventos bíblicos são transmitidos em forma de narrativa literária, que pode expressar  estrutura, tempo e história. Com isso, queremos dizer que pela própria natureza dos eventos bíblicos, eles proporcionam confiabilidade e compreensão da realidade.

Como verdade, a doutrina bíblica é produto da coerência interna das afirmações da verdade do Cristianismo. As doutrinas bíblicas não foram inventadas para atender a funções sociais, mas como expressões da verdade elas, além de corresponderem à realidade, geram comunidades de fé, que, por sua vez, além de geradas, são  demarcadas e sustentadas por essas doutrinas.

Dentre as dificuldades para alguns aceitarem as doutrinas bíblicas está o fato de que, segundo eles, a doutrina está situada na história e, sendo condicionada por esta, pode mudar e perder a validade com o tempo.  Embutido nesse pensamento está a visão de que o passado é algo estranho que adentra ao presente, trazendo-lhe elementos desfocados, Isso é sofismático, porque o passado insiste em estar no presente e lhe modela,  fornecendo conceitos perenes que ultrapassam o tempo, tendo autoridade sobre o presente mais do  que imaginamos.

Um dos desafios está relacionado ao conceito de Relativismo Cultural. Nessa visão, nenhuma doutrina ou documento cristão pode ser considerado inteligível ou válido de forma permanente por causa do relativismo  cultural. Nessa visão, todo conceito doutrinário é histórico e ideológico e consequenternente sujeito à evolução e à erosão.

Outro desafio provém da sociologia do conhecimento. Concebida como o estudo das condições sociais de produção do conhecimento, seu enfoque abarca as condições sociais na produção do conhecimento. Nessa visão, as estruturas da racionalidade são socialmente e historicamente localizadas. Assim, tais estruturas não  são universais. Marx, por exemplo, entendia que o pensamento e o conhecimento são essencialmente uma  superestrutura erigida sobre uma realidade social subjacente ou impulsionada por ela. Seguindo os ditames  dessa visão, se pergunta: “Que autoridade tem o passado para estabelecer doutrina?”

A questão acima, referente à autoridade religiosa do passado, toca na questão da autoridade referente à autoridade religiosa do passado, toca na questão da autoridade religiosa do passado especialmente na época do Iluminismo, que, discussões à parte, marca o início da “modernidade”. Até então, não se tinha consciência  histórica, já que as mudanças eram lentas. Tal consciência só veio com o desenvolvimento dos conceitos  de tempo e espaço. Assim, percebeu-se que o passado era diferente do presente e passou-se a ter consciência histórica do passado. O passado não era apenas passado, estava presente e servia de paradigma para o presente.

Foi assim que se tentou voltar aos ideais deste passado, saltando a Idade Media, voltando às fontes. Tais fontes  deveriam ser lidas com um espirito novo e com uma nova percepção de história. Foi assim que se voltou ás Escrituras  nos originais e não à Vulgata latina, por exemplo. “Assim, o Renascimento lançou as bases para a Reforma Protestante.

Na verdade a ideia de inutilidade do passado é antes de tudo ideológica. Foi assim em alguns setores do Protestantismo pós-Reforma, criando expressões como “conservadora” ou “progressista”, e é assim nos dias  atuais. A tentativa é de tirar a autoridade intelectual do passado com criticas às formulações doutrinárias da Igreja  Especialmente, a Igreja alemã sofreu muito com isso em fins doséculo18 e início do 19.

A ideia de que chegará um momento em que a doutrina será considerada ultrapassada recebe influencia das  ciências biológicas. Nessa visão, a doutrina é apenas um, estágio da evolução da consciência religiosa humana e,  portanto, não tem consistência perene e faz inclusive analogia com a teoria de desenvolvimento de Piaget.

Mas, afinal, qual o futuro da doutrina? Ela vai desaparecer? Absolutamente não. Por maiores que sejam as  pressões sociais em sociedades secularizadas, a doutrina irá continuar, tanto pelo fato da sociedade por mais  secularizada que seja não conseguir “sepultar” Deus, como pelo fato da doutrina estar associada a outros aspectos. de uma comunidade de fé como liturgia prática pastoral, discussões teológicas, apologética etc,  consequenternente saindo do ambiente acadêmico. É o apelo e recorrência o passado doutrinário que gera tradição e tradição gera identidade. É assim que pela própria natureza da doutrina cristã o passado é inevitável.

Por, Adejartan Ramos.

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