Pentecostalismo: a Segunda Revolução Protestante


Para os pentecostais, esse anseio por recuperar a vitalidade, a simplicidade e o dinamismo da Igreja do primeiro século representam uma “reforma” fundamental em sua eclesiologia (a doutrina da Igreja) e em sua prática devocional

A história do Cristianismo é marcada por momentos de profunda transformação e renovação, como a Reforma Protestante do século 16, que é, sem dúvida, o exemplo mais paradigmático de um movimento que redefiniu a fé, a doutrina e a prática eclesiástica. Contudo, no alvorecer do século 20, emergiu um novo fenômeno global de proporções igualmente impactantes: o pentecostalismo. A ideia de conceber o pentecostalismo como uma “nova reforma” ou como um movimento com características de reforma é um ponto de debate e reflexão importante no campo da teologia histórica e contemporânea.

Não se trata de uma afirmação unânime, mas de uma perspectiva que encontra eco em alguns círculos teológicos, sobretudo pentecostais. Este ensaio propõe-se a explorar a tese de que o pentecostalismo, com sua ascensão mundial e suas características distintivas, pode ser compreendido como uma “nova reforma” ou, ao menos, como um movimento de caráter reformador que continua o programa divino de regeneração e renovação da Igreja através do Espírito Santo.

Entre vários estudiosos que discutem a questão, destacam-se Walter Hollemweger, Harvey Cox e Philip Jenkins, três dos mais influentes estudiosos do fenômeno religioso contemporâneo. Eles abordam o pentecostalismo não apenas como mais um movimento religioso, mas como uma força com a capacidade de reconfigurar o Cristianismo de modo global, evocando paralelos com eventos históricos de grande magnitude, como a Reforma Protestante do século 16.

Walter Hollenweger, na obra The Pentecostals, demonstrou uma compreensão profunda do pentecostalismo como um fenômeno de impacto global. À partir do modelo dos estudos culturais, descreve-o não como uma denominação, mas como um movimento vibrante e popular antielitista e profundamente experiencialista. Ele destaca a capacidade do pentecostalismo de florescer entre as camadas menos privilegiadas da sociedade, democratizando a espiritualidade o rejeitar o monopólio clerical e encorajar a participação ativa de todos os crentes. O cerne do movimento reside na experiência direta e vívida do Espírito Santo e seus dons, o que confere uma energia e dinamismo que radicalmente transformam a forma como a fé é vivida e contextualizada em diversas culturas globais. Embora não empregue a expressão “nova reforma”, ele analisa o pentecostalismo como um fenômeno global de impactos na sociedade.

Outro estudioso é Harvey Cox. Em Fogo do Céu: O Pentecostalismo e a Remodelação da Religião no Século XXI, ele compara o pentecostalismo à Reforma Protestante. Para Cox, a analogia reside menos em similaridades doutrinárias e mais no “impacto global e na natureza transformadora” de ambos os movimentos. Ele vê o pentecostalismo como uma “insurgência religiosa” que está remodelando a paisagem religiosa mundial e enfatiza a “desinstitucionalização” e o “caráter popular” do pentecostalismo – sua capacidade de florescer fora das estruturas eclesiásticas tradicionais e de apelar diretamente às massas, especialmente no Sul Global. Para Cox, essa espontaneidade e a ênfase na experiência direta com o divino representam uma ruptura e uma redefinição da prática religiosa, lembrando o ímpeto renovador das origens da Reforma.

Philip Jenkins, em The Next Christendom, embora não utilize a expressão “nova reforma” como um rótulo, constrói uma tese que posiciona o pentecostalismo como o coração e a força motriz da “próxima cristandade”. Ele demonstra que o centro demográfico e vital do Cristianismo se deslocou para o Sul Global, e que o pentecostalismo é a forma dominante e mais dinâmica dessa nova realidade. Jenkins argumenta que o crescimento explosivo do pentecostalismo no Sul Global constitui uma “revolução religiosa” de proporções e impactos similares às grandes transformações do passado. Para ele, essa ascensão não é apenas um fenômeno numérico, mas uma “reconfiguração fundamental do cristianismo no século 21”, que moldará a teologia, a prática e a influência global da fé cristã em um futuro próximo. Jenkins, com muita propriedade, descreve que a história da Igreja não é estática e reducionista, mas progressiva, adaptativa, inovadora e imprevisível. Ele demonstra que o Cristianismo, longe de ser um fenômeno monolítico ou preso a paradigmas passados, é uma fé em constante movimento. Sua análise, especialmente no que tange ao crescimento do Cristianismo na África, América Latina, Caribe e Ásia (Sul Global) e ao papel do pentecostalismo, sublinha a capacidade de a Igreja se adaptar a novos contextos, inovar em suas expressões e seguir caminhos muitas vezes imprevisíveis. É uma visão da história do Cristianismo que valoriza o dinamismo do Espírito Santo na história.

Esses estudiosos veem o pentecostalismo como um catalisador de mudanças profundas e abrangentes que justificam sua perspectiva como uma “nova reforma”, tanto pelo seu caráter interno – trazer uma nova configuração da fé – quanto pela sua natureza externa – impactar as sociedades globais. Eles destacam tanto a natureza insurgente e remodelagem da espiritualidade quanto a reconfiguração demográfica e geopolítica do Cristianismo mundial impulsionada pelo pentecostalismo.

Compreendendo a “Reforma” e a Tese Pentecostal

Ao falarmos em “reforma”, a referência imediata é o século 16 e os pilares de Sola Scriptura (Só a Escritura), Sola Fide (Só a Fé), Sola Gratia (Só a Graça), Solus Christus (Só Cristo) e Soli Deo Gloria (Só a Deus a Glória). Estes princípios revolucionaram profundamente a teologia e a eclesiologia. O pentecostalismo, surgindo séculos depois, no início do século 20, não propõe uma nova soteriologia ou um desafio fundamental a esses “solas”. Pelo contrário, os pentecostais consideram-se herdeiros legítimos da Reforma Protestante. Todavia, a teologia pentecostal não se limita a replicar as ênfases da Reforma Protestante, mas as expande, incorporando uma dimensão pneumatológica que é central para sua identidade: o Solus Spiritus Sanctus (Só o Espírito Santo). Essa contribuição singular pode ser percebida na forma como o pentecostalismo resgata o protagonismo do Espírito Santo, introduzindo conceitos que complementam os pilares reformados. David Mesquiati ilumina essa perspectiva. Ele argumenta que, embora os pentecostais abracem os quatro princípios cardeais da Reforma, eles o fazem com uma ênfase tão marcada na pessoa e obra do Espírito Santo que se pode postular um Solus Spiritus Sanctus (Só o Espírito Santo). Essa quinta premissa não busca substituir ou hierarquizar a fé, a Palavra, a graça ou Cristo; pelo contrário, opera em correlação inseparável com elas. Conforme Mesquiati, seria inconcebível o pleno proveito do Sola Scriptura sem a iluminação explicativa do Espírito Santo, ou a atualização e universalização da obra do Solus Christus sem a atuação do Espírito. O Espírito “atravessa inseparavelmente os quatros ‘sola’”, legitimando sua ação fundante. Ao conceito do Solus Spiritus Sanctus, o autor, refletindo a tese de Bernardo Campos, acrescenta a “pentecostalidade”, que se manifesta como um princípio norteador da teologia pentecostal que complementa as quatro marcas clássicas da igreja (una, santa, católica e apostólica). A pentecostalidade significa assumir a ação do Espírito de maneira ativa na igreja e na teologização, reconhecendo sua pessoalidade divina, sua presença e seu poder, de tal modo que a igreja é uma, santa, católica, apostólica e pentecostal. A tese de que o pentecostalismo é uma “nova reforma” reside em seu impacto transformador e na redescoberta das dimensões pneumatológica e experiêncial da fé cristã que não foram percebidas profundamente ou então foram negligenciadas e até mesmo perdidas ao longo da história cristã.

As marcas “reformadoras” do Pentecostalismo

A analogia com uma “nova reforma” pode ser observada em algumas das características do pentecostalismo, as quais mencionamos a seguir:

1) A reafirmação da experiência e do poder do Espírito Santo

Se a Reforma Protestante buscou resgatar a salvação pela fé e a autoridade das Escrituras, o pentecostalismo buscou restaurar a experiência direta e palpável do Espírito Santo, conforme descrita no livro de Atos. Isso inclui a manifestação dos dons espirituais (línguas, profecia, cura), a demonstração do poder divino e uma fé vibrante que se traduz em vida e ação. Trata-se de uma “reforma da pneumatologia” ou uma redescoberta da plenitude da vida do Espírito para todos os crentes, e não apenas para um período apostólico limitado. É uma insistência de que a fé não é apenas intelectual ou formal, mas também experiencial e poderosa.

2) Interpretação Literal e Hermenêutica do Espírito

Se a Reforma Protestante contribuiu com o resgate da interpretação literal e com o método histórico-gramatical, como elementos indispensáveis para uma hermenêutica bíblica, a reforma pentecostal acrescentou uma perspectiva que, embora presente, não foi devidamente acentuada: a Hermenêutica do Espírito. Para os reformadores, o sentido literal (sensus literalis) era a bainha com a qual a espada do Espírito fora transmitida por meio das línguas originais. Matthias Flacius Illyricus (1520-1575), contrário aos anabatistas e católicos, que consideravam a Bíblia de natureza obscura e de difícil compreensão, desenvolveu o método histórico-gramatical num esforço sistemático para estabelecer uma base objetiva para a interpretação bíblica, garantindo que a Escritura falasse por si mesma, opondo-se, assim, às imposições da tradição eclesiástica católica e das inconstâncias da experiência subjetiva de alguns anabatistas. Os pentecostais são herdeiros dessa hermenêutica e reafirmam tanto a harmonia e a unidade da Escritura quanto o método histórico-gramatical. Contudo, destacam a experiência pneumatológica como elemento necessário para uma interpretação mais viva e dinâmica da Escritura, sem ignorar os postulados objetivos da hermenêutica bíblica.

Craig S. Keener é um exemplo dessa perspectiva. Ele argumenta que o Espírito não é apenas o autor da Escritura, mas também seu intérprete ativo, concedendo iluminação para a compreensão e aplicação da Palavra. Essa ênfase na contemporaneidade dos dons e da atuação do Espírito na interpretação é vista como um rompimento com o cessacionismo que havia se tornado dominante em muitas tradições protestantes.

Para os pentecostais, o Espírito não apenas “inspirou” no passado, mas “ilumina” e “capacita” no presente, tornando a Palavra viva e eficaz. Aqui os pentecostais não se confundem com o obscurantismo e subjetivismo anabatista pelo fato de aplicar à interpretação da Escritura metodologia objetiva para compreender o sensusliteralis, como também reconhece a importância da experiência, da afetividade e da ação pneumática como pressupostos necessários à compreensão da voz de Deus por meio do Espírito. Na hermenêutica do Espírito, a voz de Deus na interpretação se revela no encontro do método com o Espírito.

3) O Sacerdócio Universal de Crentes e o Leigo

Assim como a Reforma Protestante enfatizou o sacerdócio de todos os crentes, o pentecostalismo, em sua gênese, democratizou a experiência espiritual e o ministério. A manifestação dos dons espirituais não era restrita ao clero ou a uma elite espiritual, mas acessível a todos os crentes, homens e mulheres. Por meio dos carismas, o Espírito capacita toda e qualquer pessoa para o exercício do ministério, independentemente de sua posição clerical. Isso gerou um ativismo leigo sem precedentes, onde cada crente podia ser um canal do Espírito, pregando, curando e evangelizando. Essa é uma extensão prática e vívida do princípio do sacerdócio universal.

4) Foco na “Igreja do Novo Testamento”

Há um forte e inerente desejo pentecostal de retornar aos padrões e à experiência da Igreja Primitiva, tão vívida e explicitamente descrita no livro de Atos. Esse primitivismo não é um anseio por um retorno ingênuo ao passado, mas um fervoroso “retorno às origens”. Ele se manifesta na busca incessante por avivamento contínuo, um missionarismo fervoroso que sempre leva a mensagem de Cristo aos confins da Terra e uma dependência mais explícita e palpável da ação do Espírito. Essa ação é a manifestação do poder divino que permeou a vida dos primeiros cristãos. Para os pentecostais, esse anseio por recuperar a vitalidade, a simplicidade e o dinamismo da Igreja do primeiro século representam uma “reforma” fundamental em sua eclesiologia (a doutrina da Igreja) e em sua prática devocional. É uma busca por resgatar a paixão, a unidade e o poder demonstrado pelos apóstolos, a fim de que a Igreja contemporânea possa refletir a plenitude da presença de Deus e cumprir sua missão com a mesma eficácia dos primórdios.

Contrapontos à comparação com a Reforma Clássica

É crucial, no entanto, qualificar a comparação entre o pentecostalismo e a Reforma para evitar anacronismos ou simplificações, como, por exemplo, as diferenças de ênfase doutrinária. A Reforma foi uma reforma doutrinária sobre a soteriologia, a eclesiologia e a autoridade da Escritura. O pentecostalismo, embora não negue esses fundamentos, tem sua principal ênfase na pneumatologia e na experiência. Não é uma “reforma” que propõe um novo sistema teológico que redefine os pilares da salvação da mesma forma que Lutero ou Calvino. Outro aspecto é que se trata de um movimento de avivamento, não meramente teológico. O pentecostalismo começou mais como um movimento de avivamento e renovação espiritual do que um movimento teológico formal, com um conjunto de credos sistematicamente formulados. A teologia pentecostal, muitas vezes, se desenvolveu a partir da experiência, ao contrário da Reforma, onde a experiência foi enquadrada por uma redescoberta teológica das Escrituras. Ainda de natureza distinta é a diversidade e fragmentação. O pentecostalismo é um movimento global e multifacetado, com grande diversidade teológica e organizacional. Isso difere da estrutura inicial da Reforma que, embora fragmentada, gerou tradições teológicas mais claramente definidas (luterana, reformada, anabatista, anglicana). Mas que se destaque que enquanto a Reforma foi apenas no Ocidente, o pentecostalismo é global.

Conclusão

Embora o pentecostalismo não seja uma “Reforma” no sentido estrito e histórico do século 16, a ideia de chamá-lo de “nova reforma” ou de reconhecer seu caráter reformador tem validade em muitos aspectos. Ele representou uma ruptura significativa com o racionalismo e o cessacionismo teológico predominantes em muitas igrejas protestantes históricas. Mais do que isso, ele trouxe uma redescoberta e uma repriorização da atuação do Espírito Santo na vida do crente e da Igreja, com ênfase na experiência, nos dons e na internalização da lei divina. A contribuição teológica do “Solus Spiritus Sanctus” e da “pentecostalidade” demonstra um amadurecimento e uma singularidade que enriquecem o panorama teológico cristão global. O pentecostalismo gerou uma democratização da experiência espiritual e do ministério, fortalecendo o papel do leigo e impulsionando um fervor evangelístico e missionário mundial que está reconfigurando a paisagem cristã. Assim como a Reforma Protestante foi impulsionada pelo Espírito Santo para restaurar verdades cruciais, o pentecostalismo é uma continuação desse “programa” contínuo de Deus de regeneração e renovação na Igreja, adaptado para os desafios e necessidades dos séculos 20 e 21. É uma reforma na medida em que busca reformular e revigorar a compreensão e a prática da vida cristã à luz da plenitude da obra do Espírito, demonstrando que a voz divina que moveu o passado continua a falar e a agir, reformando e revitalizando o presente para o futuro.

BIBLIOGRAFIA

COX, H. Fire from Heaven. The Rise of Pentecostal Spirituality and the Reshaping of Religion in the Twenty-First Century. Cambridge, Da Capo Press, 2001.

JENKINS. P. The Next Christendom: The Coming of Global Christianity. 3 ed. Oxford University Press, 2011.

HOLLENWEGER, W. J. (1972). The Pentecostals. Revised ed. London: SCM Press, 2012.

MESQUIATI, D. Rev. Os pentecostais, o Espírito Santo e a Reforma in Pistis Prax., Teol. Pastor. Curitiba, v. 9, n. 2, 539-553, maio/ago.2017.

por Esdras Costa Bentho

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