A Igreja experimentava ainda seus primeiros passos e já a perseguição grassava à sombra da águia romana. Lançados para entretenimento das massas, nossos irmãos foram entregues às feras e testemunharam com sangue sua fé em Jesus. Talvez lhes houvesse ocorrido, no momento derradeiro, que o Senhor operaria algo sobrenatural e glorificaria Seu nome através de uma manifestação de poder e força. Todavia, aprouve a Ele permitir a manifestação da resistência do fraco diante dos poderosos e a nobreza de não negá-lo, mesmo diante da morte iminente. Deus permitiu e os leões os mataram.
Davi era tão somente um dentre os menores pastores de uma pequena
casa da tribo de Judá. Cuidava de ovelhas de pouco valor, dedicando-se a cuidar
de animais malhados, inúteis para os rituais dos sacrifícios, fato de especial
destaque quando se sabe que era especialmente da região de Belém que procediam
os animais para o serviço do Templo. O jovem cuidava dos rejeitados para o
serviço mais digno com o mesmo zelo que devotaria aos valiosos animais sem
mácula, se seu pai os possuísse. Uma das marcas de sua dedicação está em que lutou
contra um leão e o derrotou. Teria valido uma luta dessa natureza para proteger
um rebanho de menor importância? Certamente que sim. Davi lutou por aqueles que
lhe foram confiados e, tendo sido fiel no pouco, foi posto sobre o rebanho do
Pai, o povo de Israel. Deus permitiu e o filho de Jessé matou o leão.
Leões nos matam, se esse for o propósito do Senhor. Matamos leões,
se assim a Ele aprouver. Porém, não apenas de vida e de morte é estabelecida nossa
relação com esses grandes felinos. Segundo a mesma soberania, por vezes é estabelecido
que as feras permaneçam vivas, porém dormentes. Foi o que aconteceu nos dias do
rei Dario. O monarca vivia a experiência renovadora de um governo descentralizado,
com a divisão do reino em 120 províncias, sendo seus 120 governadores liderados
por três príncipes, dentre os quais Daniel, servo de Deus, e esses três sob as ordens
diretas do rei. A funcionalidade de tal estrutura foi desafiada pela proposta, à
contramão do projeto real, de se fazer chegar toda e qualquer petição – e, portanto,
resolução – dos domínios persas à presença do rei. Uma proposta certamente inviável,
mas bem ao gosto da vaidade de um líder, talvez atemorizado diante da aparente perda
de poder que a descentralização traz. A forma distribuída do poder decisório cedeu
lugar à exclusividade judicial de um homem, sob os aplausos dos aduladores.
Nesse contexto, Daniel é acusado e lançado à cova. Provavelmente, bastaria um
leão faminto para destruir-lhe a vida, mas o texto cita uma pluralidade que não
iremos desconsiderar. O que o texto não cita, mas podemos imaginar, são os seus
nomes. Vaidade, esse deve ter sido um dos nomes dos leões da cova. Não fosse por
vaidade, Dario, sendo tão sábio, não teria cedido aos apelos dos inimigos de
seu servo, mas as palavras deles foram-lhe agradáveis aos ouvidos. Vaidade não estava
só; com ela, Inveja também povoava o ambiente da prova de Daniel. Seus inimigos
reconheciam-lhe a excelência em muitos aspectos e não podiam suportar que sobre
todo o império, abaixo do rei, ele se destacasse. Por inveja tramaram a
destruição de sua vida. Some-se a isso um leão chamado Falso Amigo – é companheiro
de Traição e também reparte os despojos com a Inveja. A Bíblia não diz que
Daniel saiu a público para fazer suas orações. Era na intimidade de seu quarto que
o servo do Senhor orava, portanto qualquer que o tenha visto gozava de certo
acesso à sua casa e aos cômodos interiores.
Daniel foi traído por pessoas que lhe eram próximas. Tais leões
unem-se a outro, o Ódio aos Altos Padrões, fera recorrente nos ataques aos santos
do Altíssimo no decorrer da História. Ele desafia a Santidade, pois não a
tolera, tampouco a compreende. Dessa forma cercado, que resultado senão a morte
traria o amanhecer do dia seguinte? Qual não foi a surpresa de todos, inclusive
do arrependido monarca ao ouvir a voz de seu príncipe? Deus decidiu: os leões não
matariam Daniel; tampouco Daniel os mataria; o previsível sucumbiria nesse episódio
e os leões dormiriam.
O Deus que pode adormecer feras pode destruí-las prontamente.
No entanto, há momentos e razões para mantê-las vivas e negar-lhes o banquete. Do
ocorrido, algumas máscaras foram arrancadas e as intenções revelaram os verdadeiros
leões. Talvez o Altíssimo houvesse decidido segundo um raciocínio do próprio Daniel
que, ao contemplar os animais famintos pode ter sido consolado com a certeza de
que as verdadeiras bestas estavam fora da cova.
Medito estas coisas enquanto examino os últimos acontecimentos
relativos aos manuscritos do Mar Morto. Cedidos ao governo do Canadá por Israel
para uma das muitas exposições que circulam no mundo para o acesso a essa descoberta
do maior número de pessoas, foram requisitados pelo governo da Jordânia que
alegou direito de posse do material. Segundo o blog Shalom Israel, “a acusação
é feita pelos árabes de que Israel se apossou dos manuscritos, na altura guardados
no Museu Rockfeller, e os transferiu para o Museu de Israel”. O conjunto de
cerca de 900 documentos e textos bíblicos compõe uma das maiores descobertas arqueológicas
do século 20, incluindo algumas das únicas cópias conhecidas de textos bíblicos
escritos antes do ano 100 a.C. Os documentos foram copiados por uma comunidade
judaica num tempo de presença indiscutível dos judeus na Terra Santa. Apesar
disso, Israel jamais alegou ser “dona” dos documentos, mas sua “guardiã”, detendo
o direito de conservação e exibição. O Canadá já declarou que as divergências sobre
a propriedade dos manuscritos deveriam ser resolvidas entre Israel, a Jordânia e
as Autoridades Palestinas, não cabendo ao seu governo interferir. A exposição
encerrada no domingo último no Royal Ontário Museum trouxe à tona a verdade de alguns
leões ocultos de vaidade, inveja e traição que assustam pela ousadia, mas não detém
poder para destruir. Anoréxicos dormirão e o Senhor guardará Israel da fúria dos
destruidores.
por Sara Alice Cavalcante
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