Assassinato silencioso

Assassinato silencioso


Em muitos países hoje, o aborto já não é visto como crime, mas como opção da mãe. Há países que, para refrear o crescimento populacional, constituem como crime a prática de se ter mais de dois filhos, penalizando com o aborto o infrator de “tal crime”. Não resta dúvidas que vivemos em um mundo no qual há inversões de valores, onde o certo é errado e o errado é certo.

A palavra aborto tem sua origem no latim abortus, (1) que significa “morrer”, “perecer”. O Grande Dicionário Brasileiro de Medicina (2) reza que aborto é “a expulsão espontânea ou provocada do feto antes do sexto mês de gestação, isto é, antes que o feto possa sobreviver fora do organismo materno”. De acordo com Reifler, (3) “o aborto espontâneo é aquele que ocorre alheio à vontade, por inadequações materno-fetais diversas (infecções, genéticas), geralmente durante o primeiro trimestre de gravidez”. Enquanto que o “aborto provocado”, comenta ele, “é aquele desencadeado intencionalmente ou não por agentes externos (cureta, lesão corporal, drogas)”. Para o Dr. Cipriani, (4) o aborto é visto como “a interrupção da gravidez, com expulsão do embrião ou feto”. Já para Dr. Roberval C. Belinati, (5) é “a interrupção da gravidez, com a consequente destruição do produto da concepção” e a “eliminação da vida intra-uterina”.

Com relação ao “aborto espontâneo”, não há restrições, visto que ele ocorre devido a uma série de circunstâncias naturais ou anormais no organismo materno ou fetal. No entanto, o “aborto provocado” deve ser visto com restrições. Ainda que no Brasil esteja se discutindo sobre a lei para regulamentar o aborto, convém ressaltar que toda preocupação está girando em torno dos direitos da mãe, e poucas são as pessoas que falam dos direitos do embrião. O inconcebível é que os defensores do aborto não falam do embrião como pessoa e ainda querem convencer a população de que a prática do aborto é correta.

Em uma época em que valores éticos estão sendo invertidos, menosprezados e rejeitados, e isso muitas vezes devido a interesses próprios, deve-se ter equilíbrio e sensibilidade para com um assunto tão delicado como esse, pois envolve vidas. No Antigo Testamento, por orientação de Deus, Moisés instituiu uma lei na qual é dito que se dois homens brigassem e ferissem uma “mulher grávida” (6) e o feto nascesse antes do tempo e não viesse a morrer, o culpado deveria pagar indenização ao marido da mulher (Êxodo 21.22, TEB); porém, se houvesse morte da mãe ou do feto, o homicida deveria pagar com a própria vida (Êxodo 21.23, TEB).

Para alguns defensores do aborto, esse texto diz que, se a criança morresse, se pagaria apenas uma indenização aos pais; e se houvesse “dano grave” em que a mãe viesse a morrer, seria vida por vida. Nesse caso, eles entendem que o feto não poderia ser considerado pessoa por ser exigido apenas indenização e não pena de morte para o infrator. Tal interpretação do texto está correta? Comentando esse assunto, Norman Geisler (7) afirma: “A palavra hebraica para ‘a criança sair’ [i.e., nascer] é yāṣā’, que significa ‘dar à luz’, é a mesma expressão hebraica regularmente utilizada no Antigo Testamento para designar o nascimento de bebês vivos. Dessa forma, nessa passagem, a expressão se refere ao nascimento prematuro de um bebê vivo e não há referência a um aborto espontâneo. O hebraico possui outra palavra para designar um aborto espontâneo, šākol, e esta não é usada nesse contexto. O termo usado para descrever o fruto do ventre materno aqui é yeled, que significa ‘criança’. Esta é a mesma palavra usada para descrever bebês e crianças pequenas (Gênesis 21.8; Êxodo 2.3). Se qualquer dano fosse sofrido pela mãe ou pelo bebê, uma mesma punição deveria ser aplicada: ‘vida por vida’ (v. 23). Isso nos revela que o nascituro era considerado como possuindo o mesmo valor que sua mãe”.

Após essa explicação clara, convém ainda apresentar a tradução de Êxodo 21.22,23 feita pelo estudioso judeu Umberto Cassuto, (8) a qual diz: “Quando homens lutarem e atingirem, sem intenção, uma mulher grávida, e a criança nascer, mas sem danos — isto é, a mulher e a criança não morrerem —, aquele que a machucou certamente será punido com uma multa. Mas se qualquer dano acontecer, isto é, se a mulher ou a criança morrerem, então pagará vida por vida”. (9) Geisler enfatiza que essa tradução de Cassito “torna caro o significado da passagem, que afirma, com todas as letras, que os nascituros têm um valor idêntico ao dos seres humanos adultos”. Como se vê, essa passagem em nada apoia os defensores do aborto. Pelo contrário, é totalmente contra a tal prática, por considerá-la crime.

Em momento algum, o feto, embrião ou zigoto deve ser considerado um ser inferior, pois, em qualquer momento após a fusão nuclear dos gametas, ele deve ser visto como uma unidade psicossomática, ou seja, uma pessoa em desenvolvimento. Observe agora um dos documentos mais importante da igreja, a Didaquê. (11) Ela apresenta instruções com relação ao amor ao próximo, rejeitando o aborto em qualquer circunstância. No capítulo II, verso 2, é dito: “Não matarás; não adulterarás; não praticarás sodomia; não praticarás imoralidade sexual; não roubarás; não praticarás mágica; não praticarás feitiçaria; não matarás a criança na corrupção [i.e., no ventre (12)], nem tendo sido gerada a matarás; não desejarás as coisas do próximo”. (13) Ou seja, o aborto é um crime em qualquer fase do desenvolvimento do zigoto, embrião ou feto.

Notas bibliográficas

(1) REIFLER, Hans Ulrich. A ética dos dez Mandamentos: um modelo de ética para os nossos dias. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 130.  

(2) Apud REIFLER, op.cit., p. 131.

(3) Idem.

(4) CIPRIANI, op. cit., p. 96.   

(5) Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, op. cit., p. 111.

(6) Êxodo 21. 22,23 In: Bíblia Tradução Ecumênica. TEB. São Paulo: Edições Loyola. 1994.

(7) GEISLER, Norman L. Ética cristã: opções e questões contemporâneas. São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 170.

(8) Apud GEISLER, op. cit., p. 171.      

(9) Criança nesse texto em hebraico é yelādeâh. Se o autor tivesse a intenção de falar apenas de aborto, teria usado a palavra shakêlâh – aborto (cf. Êxodo 23.26; Gênesis 31.38) ou o termo nēfel – aborto (nascer morto; cf. Salmos 58.9; Eclesiastes 6.3). SCHÖKEL, op. cit.

(10) GEISLER, Idem. 

(11) É a forma aportuguesada da palavra grega didachê (lê-se didarrê), significa “instrução” ou “doutrina” (Atos 2.42; Marcos 4.2; 2 Timóteo 4.2). É um escrito cristão do século I d.C. IZIDRO, D. F. Didaquê: constituição e catecismo da igreja primitiva. Edição bilíngue Grego/Português, Brasília: Editora Os Semeadores.

(12) A palavra “corrupção” é a tradução da grega fthorâ, traduzida em algumas versões como “ventre” ou “seio”. IZIDRO, op.cit. Consulte também, DIDAQUÉ: o catecismo dos primeiros cristãos para as comunidades de hoje. 18 ed. São Paulo: Paulus, 2011.

(13) IZIDRO, op. Cit.

por Éder Machado

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