Vivemos um fenômeno contemporâneo em que muitos cristãos, influenciados pelas idealizações promovidas sobretudo nas redes sociais, têm abandonado suas igrejas locais em busca de um estilo de vida supostamente semelhante ao dos “primeiros cristãos”. Avessos a qualquer forma de controle, enxergam na tradição o principal obstáculo para uma leitura mais autêntica da Bíblia e para uma vida cristã genuína. No entanto, as tradições, sendo um elemento humano, sempre dialogaram com as Escrituras, e a comunidade de fé foi essencial para a preservação do Evangelho. Hoje, nosso desafio é discernir, à que da Palavra de Deus, o que nos aproxima de Cristo, sem idolatrar ou rejeitar as tradições, mantendo sempre a centralidade das Escrituras.
A palavra latina traditio significa tanto o ato de
transmitir algo quanto o próprio conteúdo transmitido. No contexto teológico,
ela representa a passagem de doutrinas e práticas de uma geração para a outra,
o que reflete a importância de se preservar o legado da fé (GONZÁLES 2015). A
tradição cristã não é meramente um conjunto de regras obsoletas, mas, sim, o
resultado de séculos de transmissão dos ensinamentos. Ela teve um papel
fundamental na preservação da integridade do Evangelho, assegurando que os fundamentos
da fé fossem mantidos ao longo do tempo.
Sinceros e honestos, muitos cristãos almejam viver uma fé “original”.
Para isso, acreditam que a tradição dificulta a interpretação correta das Sagradas
Escrituras. Nessa busca pelo “elo perdido”, muitos pensam que podem viver sem
as comunidades tradicionais, considerando que estas favorecem equívocos na
leitura do texto sagrado. Assim, acabam sucumbindo à solidão e, por fim,
abandonam a fé em Cristo. Contudo, se olharmos para a história do Cristianismo,
veremos que os reformadores também enfrentaram esse dilema. O que eles fizeram,
porém, não foi desqualificar a “tradição” por si só, mas submetê-la à prova. Para
eles, a solução não era o abandono da igreja, mas o retorno às Escrituras.
Somente as Escrituras deveriam ter primazia sobre qualquer
tradição. Contudo, isso não significava viver uma fé de forma desigrejada. Lutero
não se propôs a contradizer ou alterar a tradição da Igreja. Pelo contrário,
sentia um grande respeito por essa tradição. Contudo, ao perceber que muitas práticas
daquela igreja contrariavam as Escrituras, ele passou a reconhecer a
necessidade de rejeitar parte da tradição. Foi nesse contexto que surgiu o conceito
de Sola Scriptura (GONZÁLES, 2011).
Se recuarmos um pouco mais no tempo, vamos perceber que
todos nós lemos as Escrituras a partir de uma tradição interpretativa ou de uma
mistura delas. De acordo com Joseph A. Fitzemyer (1997), desde o início, a
interpretação das Escrituras foi profundamente influenciada por tradições
anteriores e por contextos sociais e históricos distintos. Nos primeiros três
séculos de nossa era, basicamente três tradições teológicas distintas à identificadas
por Justo Gonzalez (2011) como literalidade moral (A), alegoria espiritual (B)
e narrativa histórica pastoral (C) à subsidiaram as abordagens interpretativas
dos primeiros cristãos a respeito das Escrituras.
Tertuliano (160-240 d.C..), um cristão de Cartago, cidade
antiga situada no litoral norte da África, viveu uma fé ancorada na tradição do
tipo A. Considerado o mais antigo escritor cristão latino com obra conservada,
Tertuliano era adepto de uma leitura mais literal do texto sagrado. Mesmo com
suas aproximações em relação ao montanismo, ele se tornou um dos principais expoentes
da teologia ocidental até os dias de hoje (LIÉBAERT: 2000).
De igual modo, Orígenes de Alexandria (185-254 d.C.), um dos
principais intelectuais da segunda maior cidade do Império, foi o autor da
Hexapla (uma edição do Antigo Testamento em seis versões diferentes, alinhadas
lado a lado). Representante máximo da teologia do tipo Orígenes, influenciado
pelo platonismo, buscava nas Escrituras a verdade oculta por três das coisas
mutáveis percebidas pelos sentidos (BRAY: 2017).
A teologia do tipo C, ou a tradição interpretativa de cunho
mais narrativo-pastoral, tem como principal expoente Irineu de Lião (s.d.),
descrito por Johanne Quasten (2023) como “sem dúvida o mais importante teólogo
do século 44”. Este líder da igreja na Gália procurou interpretar as Escrituras
sob uma perspectiva pastoral e narrativa. Em outras palavras, Irineu via Deus
como um Grande Pastor, guiando Seu rebanho em direção aos propósitos divinos.
À medida que
o Cristianismo se expandiu e se institucionalizou, especialmente após a
cristianização do Império Romano no século IV, o tipo “A” tornou-se dominante,
absorvendo influências do tipo “B” e estabelecendo a base da ortodoxia
ocidental. Nesse contexto, a teologia do tipo “C”, embora tenha ressurgido em
tempos modernos, perdeu força e relevância, tornando-se menos influente na
época. Esse desenvolvimento histórico mostra que não há precedentes que
sustentem a ideia de que a solução para crises e diferenças na Igreja seja uma
vida solitária ou uma fé sem tradição, como se isso fosse realmente possível.
O Cristianismo guarda elementos interessantes: apesar das
diferenças resultantes das várias tradições, todos concordavam em um ponto
central à autoridade final das Escrituras. Nesse sentido, devemos nos precaver
contra a tendência de tratar nossas tradições cristãs de maneira simplista,
cometendo dois erros muito comuns: 1º considerar que toda tradição é falsa pelo simples fato de ser
uma tradição; 2º acreditar que a tradição deve ser respeitada a qualquer custo,
o que pode gerar uma espécie de idolatria.
A grande tarefa que se impõe à Igreja de hoje é a que Jesus
nos deu em João 5.39: “Vocês examinam as Escrituras, porque julgam ter nelas a
vida eterna, e são elas mesmas que testificam de mim” (NAA). São se trata de
descartar tradições, nem de nos desigrejarmos, mas de produzir tradições (pois
isso é inevitável) tendo como referencial as Escrituras Sagradas (1 Coríntios
11.23). A tradição, como afirmou Jaroslav Pelikan (2014), “é a fé viva do morto;
o tradicionalismo é a fé morta do vivo”. Como sempre ensinou o pastor Antônio Gilberto
(2000), a observância das Sagradas Escrituras gera bons costumes, ou seja, uma
boa tradição.
Concluímos que a tradição, tanto no passado quanto no
presente, acompanha a igreja de forma inevitável. O erro está em trata-la de
maneira extrema, seja rejeitando-a totalmente, seja colocando-a acima das
Escrituras. A Reforma Protestante nos ensinou a submeter a tradição à que da Palavra
de Deus, que é a autoridade máxima. Como vimos, ao recuarmos ainda mais na
história cristã, percebemos que a tradição não se apresenta como um bloco
monolítico, mas como um processo dinâmico, sempre em diálogo e tensão com a
revelação bíblica.
Nosso desafio, como cristãos do século 21, não é destruir ou
idolatrar as tradições, mas discernir o que nos aproxima de Cristo, mantendo a
centralidade das Escrituras. A Igreja de hoje, fruto de uma longa trajetória
histórica, deve honrar seu passado e construir o futuro sempre atenta à voz de
Deus, que nos chama a ser uma Igreja viva e fiel. No contexto atual, é necessário
discernimento para evitar a idealização do passado ou as imagens promovidas
pelas redes sociais. A solução para os desafios da Igreja continua sendo um
retorno sincero às Escrituras.
Referências Bibliográficas
ALLISON, Gregg R. Teologia histórica: uma introdução ao
desenvolvimento da doutrina cristã. São Paulo:
Vida Nova, 2017.
BIBLIA SAGRADA, (Versão Nova Almeida Atualizada).
BRAY, Gerald. História da interpretação bíblica. São Paulo: Vida
Nova, 2017.
FITZMAYER, Joseph A. A Bíblia na Igreja. São Paulo: Loyola.
1997.
GILBERTO, Antônio. Manual do CAPED. CPAD: Rio de Janeiro, 2000.
GONZALEZ, Justo. Tradições Cristãs. Retorno
à história do pensamento cristão. São Paulo% Habnos, 2011.
História da Literatura Cristã Antiga: os escritos cristãos
mais antigos à parte do novo testamento e seus autores. Rio de Janeiro: CPAD.
por Eduardo Leite
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