Humilhada, sem vislumbrar qualquer possibilidade de ser resgatada da situação a que fora conduzida por seus próprios atos, uma mulher esperava. Homens à volta buscavam sua morte com tal tenacidade que deixava clara a condição exemplar da ocorrência e os humores que despertava nos corações. Teria sido sumariamente executada pela turba, não fosse a pérfida intenção de alguém de experimentar o novo Rabi nos conhecimentos da Lei de Deus e da dos homens. Jesus ensinava as multidões quando ela lhe fora trazida. Pega no próprio ato, adulterando, foi apresentada ao Mestre para que Ele pronunciasse sentença e, assim, a si mesmo se condenasse diante do Império Romano.
De leis e de direito trata a passagem. Tirando o erro óbvio,
de que, para formalizar a acusação de adultério, ambos os que cometeram o
delito teriam de ser apresentados para julgamento e condenação, outros
terríveis erros são identificados na passagem. Portanto, saindo da pergunta
primeira – “Onde estava o varão?” – partamos para a seguinte: “Onde estava a Justiça?”.
Onde estavam os homens que, conhecendo a Torah, poderiam agir de maneira misericordiosa
para com a pecadora?
Há uma chave textual apontando para a verdadeira intenção daqueles
que levaram a mulher a Jesus. Era seu objetivo apanhá-lo em algum delito. Portanto,
não se tratava de livrar Israel do pecado, mas em fazer cair em pecado um filho
de Israel. Isso porque, desde os anos 20 da Era Cristã, Roma proibira o Sinédrio
de aplicar a pena capital. Toda a questão que conduzisse o réu à morte teria de
ser julgada por tribunal romano, que aplicaria a pena romana correspondente.
Daí a existência da crucificação, prática jamais defendida pelos judeus.
O conhecimento desse fato reafirma em nós a injustiça da execução
sumária de Estevão e a maior injustiça histórica cometida em Israel, qual seja,
a condenação e morte de Jesus. Ainda que aplicada pelos romanos, a morte do
Mestre foi precedida por um agir inaceitável dentro da rotina do direito
judaico.
No momento a que nos referimos nesta meditação, envolvendo uma
pobre pecadora, o propósito bem definido dos envolvidos era provocar no jovem Rabi
uma declaração ou a favor da Torah ou a favor da dominação romana que o condenasse.
Em outras palavras, experimentavam-no para colocá-lo contra uma ou contra
outra.
Conforme Seu costume, Jesus parte do que lhe apresentaram –
o exemplo, ou ‘examplo’ – e caminha para a amplitude do assunto. Se o assunto era
adultério, quem ali o cometera? Em primeiro lugar, no entanto, é necessário
lembrar a maneira como o juízo se processava em Israel. Em lugar de provas de acusação,
buscavam-se testemunhas, necessariamente oculares (não bastava ter ouvido o caso,
mas visto), duas para os casos comuns e três para os casos envolvendo membros da
casa sacerdotal. A denúncia não era considerada uma delação no sentido como nós
hoje conhecemos, mas um ato de livramento ao povo, dado o conhecimento de situações
passadas, como o triste evento relacionado a Acã, que levou à derrota toda a
nação.
Para que situações como essa fossem evitadas, era considerado
dever de todo o judeu fazer conhecida a existência, no meio da comunidade, de
qualquer ato que pudesse provocar a ira do Senhor. Antes, porém, era conveniente
tentar dissuadir o pecador de suas práticas. Sendo bem-sucedida, a testemunha
indicava o caminho da cura através da cobertura dos pecados pelo sangue dos animais.
A testemunha que assim procedesse ganharia seu irmão e o abençoaria com a
exortação de que não pecasse mais. Caso contrário, quando era necessário
apresentar o(s) acusado(s) ao Sinédrio, esse corpo de setenta e um judeus
avaliaria o exposto, cuidando que houvesse, para cada caso, uma pessoa que procurasse
defender o acusado e outra que confirmasse a acusação. Quando possível, também uma
terceira figura mediadora seria constituída.
Outrossim, a pena jamais poderia ser aplicada no mesmo dia. Fazia-se
necessária ao menos uma noite (melhor duas ou três) para dar tempo a um melhor
exame por parte de todos. Quando fosse identificada mentira por parte das testemunhas,
a pena que seria aplicada ao réu voltar-se-ia para elas. Se confirmada a
acusação, caberia às testemunhas, nas penas de apedrejamento, atirarem as
primeiras pedras.
É maravilhoso notar como Jesus não nega àqueles homens a posição
de conhecedores da Lei. Pelo contrário, apenas muda o foco daquela nuvem de
testemunhas, voltando-lhes os olhos para os delitos interiores. Chamados à condição
de fiéis testemunhas a respeito de si mesmos, veem-se inaptos para executar
juízo e fazer Justiça. Afinal, quem traíra?
Ao perverterem as normas prescritas para o exame de uma causa,
aqueles homens tornaram-se adúlteros da Lei. Eram traidores daquilo que conheciam.
O desejo de colocar alguém em laço (um Rabi), fora maior do
que o desejo de fazer cumprir a vontade de Deus. Pervertendo a aliança com o Senhor,
tornaram-se tão adúlteros quanto a mulher. Esquecidos de que o Legislador ainda
legisla, escrevendo na terra novas histórias para cada homem ou mulher que
assim o desejar, retiraram-se mudos e autocondenados, esmagados sob a penha da
Verdade diante da qual nenhum coração está oculto.
Pouco importa que Israel esteja debaixo da acusação daqueles
que não podem discernir, por trás das falsas intenções de ajuda humanitária à
Faixa de Gaza, os reais propósitos belicosos, partes de um sonho maior de domínio
que inclui a destruição dos judeus. Nem sempre as testemunhas são fiéis.
Há, porém, quem sonde os corações e conheça os desígnios ocultos
em seu interior. Importa que o dedo que uma vez escreveu a Torah também despediu
reinos. A mesma destra escreveu um novo começo para uma adúltera. Hoje nos fala,
e a Israel, não como juiz, mas como irmão: “Nem eu te condeno; vá, e não peques
mais!”.
por Sara Alice Cavalcante
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