Aprendendo a lidar com a ira

Aprendendo a lidar com a ira


Na maioria dos casos, as pessoas se enchem de ódio contra tudo e contra todos sem um motivo aparente

O ódio ou a ira come-ça com a queda do primeiro homem na terra. A primeira citação bíblica sobre a ira está no capítulo 4 de Gênesis, quando Deus confrontou o primeiro homem nascido de mulher na terra, Caim. Ele ficou irado por causa da inveja pelo fato de Deus ter recebido a oferta de Abel e recusado a dele. Em Genesis 4.3, está escrito: “Mas para Caim e sua oferta não atentou. E irou-se Caim fortemente e descaiu-lhe o semblante”. Este momento de ira levou Caim ao primeiro ato de violência na história da humanidade: o homicídio de Abel pelo seu próprio irmão. Considerando como começou essa emoção negativa e o que produziu, podemos imaginar que a ira é um dos piores sentimentos que existe na natureza humana.

O ódio/ira é um veneno que destrói de dentro para fora, produzindo amargura que corrói nossos corações e mentes. Quem se deixa mover por esse sentimento pode viver um circuito destruidor: primeiro, acontece um ressentimento, que pode se transformar em ira/ódio; depois vem uma raiz de amargura, que evolui para a amargura e depois se transforma em desejo de vingança, que acaba se transformando em vingança. Veja o que aconteceu com Saul. Ele tinha um moço chamado Davi que tocava harpa para ele se libertar de uma opressão demoníaca. Ele gostava de Davi. Até que, um dia, o rei vinha com Davi de uma guerra e um grupo de mulheres começou gritar: “Saul matou milhares e Davi dezenas de milhares”. Aí nasceu o ressentimento, que vai evoluindo até o rei pensar em se vingar de Davi. Bom lembrar que o primeiro sentimento do rei foi de inveja, depois de ressentimento, ódio e vingança, intentando matar Davi.

O que causa o ódio? Nos casos de Caim e Saul e os irmãos de José, foi a inveja. Jonas teve um ressentimento contra Deus (Jn 4.4) pelo seu desejo de vingança contra os ninivitas, o qual foi frustrado pela misericórdia divina. O ódio de Abalão contra seu pai, o rei Davi, reflete algum trauma familiar, pois ele já nutria esse ódio havia algum tempo, chegando a tentar tomar o trono e matar o seu pai. A ira das autoridades judaicas contra Jesus se baseou no medo de perder poder político.

Vamos pensar em algumas prováveis causas da ira. Primeiro, consideremos que a primeira pessoa que matou o irmão movido pela ira o fez como resultado de uma ação diabólica que começou com a Queda de Adão. Em segundo lugar, podemos afirmar que a inveja também inspirou o ódio de Caim. Então, a inveja, decorrente da nossa natureza pecaminosa e fruto da Queda, é uma causa importante no processo de ódio, amargura e vingança. Em terceiro lugar, podemos afirmar que o ódio faz parte da natureza humana, principalmente considerando o temperamento e/ou a personalidade. Por exemplo, uma pessoa melancólica tem uma tendência clara para o ressentimento, pois pessoas assim têm uma probabilidade maior à baixa autoestima, bem mais que pessoas com outros temperamentos. Ainda podemos pensar que pessoas ví-timas de violência como abusos na infância podem desenvolver uma violência inconsciente e inexplicável, que pode levar a pessoa a odiar gratuitamente e a nutrir um sentimento de vingança permanente. Como psicólogo e conselheiro, lido com muita gente cheia de ódio contra tudo e contra todos sem nenhuma explicação óbvia. Isso é algo intrínseco ao sujeito.

Em quarto lugar, podemos a f i r ma r que ex i ste u m ód io aprendido. Pessoas que foram criadas em ambientes tóxicos ou em famílias disfuncionais podem aprender a ser odiosas e violentas, pois esse tipo de família pode ser também muito violenta. Como exemplo de ódio aprendido, vemos muitas vezes pessoas que se aproximam de murmuradores na igreja e em pouco tempo se tornam um deles, aprendendo deles esse horrível hábito.

Em quinto lugar, a ofensa. Em seu livro a Ofensa: A Isca de Satanás, John Bevere afirma que “pessoas ofendidas geralmente produzem muitos frutos, como a dor, a ira, o escândalo, os ciúmes, o ressentimento, as disputas, a amargura, o ódio e a inveja” (Bevere, 2009, p. 14). Sentir-se ofendido e não conseguir perdoar pode gerar muita ira em quaisquer pessoas. Ninguém está isento. Uma ofensa pode ser fruto de uma injustiça, de uma calúnia, de um desrespeito, de um maltrato ou de coisas do gênero.

A ira não resolvida pode ser, na verdade, uma forte arma de Satanás contra os servos de Deus, podendo nos levar a cometer coisas terríveis, até mesmo pecar contra o Senhor. Vamos pensar em algumas consequências de nossa ira.Em primeiro lugar, sob a égide do ódio, podemos perder nosso equilí brio emocional e espiritual, levando-nos a reações inimagináveis. A ira pode rebaixar nossa capacidade de perdoar, de refletir e de agir com sabedoria. Pessoas mansas podem se tornar violentas, pessoas santas podem se tornar profanas, pessoas éticas podem falar barbaridades, líderes podem perder o bom senso e se tornar autoritários ou se comportarem como um neófito. Veja o que aconteceu com Saul por causa do ódio contra Davi. Ele abandonou o trono e entrou em guerra com um grande exército contra um garoto. Foi o fim do seu reino. Quantos homens de Deus fazem como Saul: por causa do ódio contra uma pessoa ou um grupo opositor, se descontrolam, se desgastam, adoecem e perdem tempo precioso, dei xa ndo de cuidar do rebanho, entrando em guerras desnecessárias.

Em segundo lugar, podemos afirmar que o ódio prejudica nossa relação com Deus. Caim não obedeceu a Deus. Para ele, seu ódio era maior do que o que Deus lhe dissera. Antes de matar seu irmão, Deus falou com ele, questionando-o, em Genesis 4.6: “Por que te iraste? Por que ficastes triste?”. No versículo 7, Deus lhe deu uma oportunidade de se libertar do ódio com outra pergunta: “Se fizeres bem, não haverá aceitação para ti?”. Como Deus falou no futuro condicional, Ele estava dando uma nova chance para Caim, porém este deu lugar ao ódio e o ódio não permitiu a mudança. O ódio pode prejudicar profundamente a vida espiritual de um servo de Deus, o distanciando de Deus e do Seu propósito para a sua vida.

Em terceiro lugar, a ira adoece as pessoas. Dr Fernando Gomes, con su ltor médico da rede de notícias CNN, declarou em um programa o seg ui nte: “Existe um balanço que acontece dentro do nosso cérebro que dita nosso comportamento. No sistema límbico, temos uma estrutura chamada amígdala, que é responsável pela reposta quando nos sentimos agredidos. Quando ela é estimulada, o indivíduo pode sentir medo ou raiva. O que freia esse comportamento são os lobos frontais e também o córtex pré-frontal, que faz com que a gente tenha juízo – você até tem vontade de fazer, mas não faz porque mede as consequências”, explicou o médico. Vemos nesta informação que nosso cérebro é atacado pela ira, e que as partes atingidas são: o sistema límbico (sistema das emoções), notadamente na amígdala cerebral, que ajuda a fixar nossas memórias, emoções e o ar ma zena mento de nossas recordações; e o córtex pré-frontal, responsável por nosso planejamento e tomada de decisões. Logo, entendemos que a ira descontrola parte do nosso cérebro. Quando a ira dura muito tempo, ela pode afetar nossa memória e gerar um est resse exagerado, liberando cortisol, que é o hormônio do estresse, resultando em problemas emocionais e físicos, como dores no corpo, problemas estomacais e inflamação corporal, prejudicando seriamente a imunidade do nosso corpo. Odiar também pode trazer problemas cardíacos. Veja o que diz a pesquisa desta psicóloga:

“Com mais de 35 anos de prática clínica, a psicóloga Suzana Avezum decidiu ir atrás da conexão entre sentimentos negativos – como ressentimento, raiva, injustiça e mágoa – e eventos cardíacos. ‘Na nossa cultura ocidental, o coração é o símbolo das emoções. Mas e se essa relação fosse mais do que figurada?’, diz Suzana, que, durante dois anos, estudou 130 pacientes – metade saudável e metade já tinha sofrido um infarto do miocárdio – para analisar seus perfis, a disposição para o perdão e a relação com a espiritualidade”.

Os achados da pesquisa, apresentada no 40º Congresso da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo, foram surpreendentes: quem tinha mais dificuldade para perdoar apresentava um histórico de problemas cardiovasculares. Além disso, 31% dos que já tinham infartado confessavam uma perda significativa de fé, Já entre os que não apresentaram problemas de coração, o índice foi de apenas 9%. “Lembranças ruins provocam estresse. Ruminar os acontecimentos antigos faz com que eles se tornem presentes. Ou seja, todas as vezes que você relembra, sente tudo de novo. O efeito prolongado disso bombardeia o organismo com substâncias que podem prejudicar a saúde”, explica a psicóloga”.

Essa pesquisa nos ajuda a entender por que muitos líderes sofrem e até morrem precocemente com problemas de coração, haja vista que no ministério somos atacados, e muitas vezes de forma cruel e irresponsável. Se não perdoarmos, sofreremos duplamente: com a maldade das pessoas e com as consequências em forma de transtornos mentais e doenças físicas, principalmente doenças cardíacas.

Quem nutre a ira pode destruir parte de sua vida em todos os aspectos. Quem perdoa cura sua mente, alegra sua alma, equilibra hormônios e neurotransmissores, bem como traz saúde para o corpo. Pense nisto: existem muitos pastores e membros de igreja que levam uma vida de angústia pelas feridas que lhes fizeram. Precisamos rever nossos conceitos sobre o que a Bíblia e a ciência dizem sobre o assunto.

A quarta consequência par a qual chamo a atenção é de ordem espiritual. Uma pessoa magoada, ferida e cheia de ira não produz fruto espiritual. A ira faz parte das obras da carne citadas por Paulo em Gálatas 5.16-21. Desde os primórdios da humanidade, o ódio cria contendas, guerras, p or f i a s, ado e c e, e nt r i st e ç a e até leva ao assassinato, como é o caso de Caim. Ainda é bom lembrar que por inveja e ódio levaram Jesus à cruz. No ministério, a ira faz muito mal. Muitos líderes, por ódio, dividem o rebanho, destroem sonhos, expulsam gente da igreja, tratam mal suas ovel has, perdem a comu n hão com Deus, perdem autoridade espiritual, entristecem a igreja, promovem injustiça, causam escândalos e muitas outras coisas negativas até destruírem seus ministérios e estragar o rebanho do Senhor. Tanto membros como a liderança precisam guardar seus corações.

Como se libertar da ira? Muitas pessoas têm um momento de ira por uma questão isolada, outros têm uma ira santa contra o pecado. Até Deus tem ira e a Bíblia fala muito sobre o Dia da Ira do Senhor, e de outros momentos em que Deus teve ira pelo comportamento do Seu povo. Podemos afirmar de forma pontual que Deus também se ira, mas é uma ira santa, porque tudo de Deus é santo. Em linhas gerais, a ira é uma coisa negativa e é sobre esta ira que estamos falando. É sempre um desafio superar sentimentos e emoções negativas como esta, mas nada é impossível para quem confia no Senhor.

Há algumas ações que podemos fazer para nos libertar da opressão do ódio/ira. Em primeiro lugar, precisamos reconhecer que somos iracundos ou que estamos en frentando um momento de ira e que alguma coisa está nos incomodando, nos afastando de Deus e das pessoas. Reconhecer é confessar. João afirma em sua primeira carta: “Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para perdoar os nossos pecados e nos purificar de toda injustiça” (1Jo 1.9). Tudo começa quando entendemos que precisamos nos libertar do que está nos oprimindo.

Em segundo lugar, precisamos nos libertar da ira. Para nos libertarmos de algo tão sério, devemos perdoar e sermos perdoados. O perdão nos liberta e nos cura. Quem busca perdão precisa compreender o perdão:

• Perdão não é um sentimento nem uma emoção. É uma decisão.

• Perdão é uma ação do Espírito Santo em nossa vida.

• Perdão é uma determinação de Deus. “E, quando estiverdes orando, perdoai...” (Mc 11.25).

• Perdão gera perdão. “E perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores” (Mt 6.12).

• Perdão gera cura. Está comprovado pela ciência que perdoar diminui o estresse, melhora o sono, melhora a autoestima e equilibra o cortisol ( hormônio do estresse). Ao perdoar ou ser perdoada, a pessoa supera a vontade de vingança.

• Devemos desenvolver o auto perdão. Jesus nos ensina que devemos amar os outros como a nós mesmos. Isso inclui nos perdoar e perdoar os outros. O perdão pessoal nos liberta do sentimento de culpa.

• Quem perdoa renova a fé e a alegria de viver.

Quem está vivendo um momento de ódio precisa se libertar para estar bem e abençoado por Deus.

Em quarto lugar, precisamos ser curados de uma personalidade iracunda. Se vivemos movidos pela ira, nunca poderemos ajudar outras pessoas. Quem não perdoa não tem exemplo e testemunho para pregar e ensinar a Palavra de Deus a outras pessoas.

Quando falamos em ódio, ira ou raiva, estamos falando de comportamentos que podem ser de forma pontual como, por exemplo, alguém que fica irado por causa de uma injustiça, mas também pode ser uma pessoa que tenha um transtorno de personalidade como borderline, narcisismo ou psicopatia. Borderline é um transtorno de personalidade que apesenta uma terrível instabilidade emocional entre amor e ódio, e este ódio pode ser intenso e sem razão alguma. Este tipo de transtorno é muito difícil de ser tratado. O outro tipo é o narcisista, um transtorno em que a pessoa desenvolve um padrão generalizado de grandiosidade. É um problema de personalidade também. O ódio dele é patológico. Essa pessoa pode tudo e nunca pede desculpa. Possui uma baixa autoestima constante, por isso quer sempre se impor sobre os outros. Se exalta e diminui os outros. Não desenvolve empatia e tem muitas dificuldades interpessoais. Na realidade, tem muitos narcisistas que são políticos, empresários ou pastores. Narcisistas têm muita dificuldade em reconhecer o erro e em se relacionar com o perdão.

O terceiro transtorno que torna difícil a pessoa perdoar ou pedir perdão é a psicopatia. Este é impossível de ser tratado. Quando falamos em psicopatas, as pessoas pensam em alguém serial killer, aquele que mata em série, mas 98% são simpáticos e encantadores. Eles conquistam, demonstram amor e depois destróem as pessoas que confiam neles. O ódio deles é intrínseco. Eles odeiam com cara de apaixonados. Além de encantadores, eles têm uma afeição superficial, comportamentos agressivos, personalidade sombria. Infelizmente, existem muitos assim por toda parte.

Observe que o borderline pode ser tratado com terapia e medicamento, mas com poucos resultados. O narcisista é muito difícil de ser tratado e o psicopata, impossível de ser tratado. E o pior disso é que alguns deles estão ocupando lugares importantes nas igrejas e nas empresas, semeando ódio, tristeza e frustração.

Se você não está entre estes três tipos, pode superar seu ódio mesmo que tenha construído padrões mentais de ódio e ressentimento. Padrões mentais podem ser mudados com um tratamento sério e no tempo necessário, mas, muito mais que um tratamento profissional, há um Deus poderoso que pode fazer milagres. A igreja precisa considerar isso, pois, na presença de Deus, até psicopatas poder ser transformados.

Cabe a nós lidarmos com os membros da igreja ensinando com persistência sobre como vencer o ressentimento, o ódio e a vingança. Ensinos consistentes e duradouros podem transformar não só o pecador em salvo, mas o doente em curado, o ódio em amor, o narcisismo em humildade e até um psicopata em empático.

Que Deus nos ajude a superar nossas desavenças, perdoando e pedindo perdão. Vamos desenvolver um ministério de reconciliação e libertação do ódio e suas consequências. Vamos viver em paz com todos, porque igreja é família e um lugar de paz. “Se for possível, quanto estiver em vós, tende paz com todos os homens” (Rm 12.18).

BIBLIOGRAFIA

Bevere, John. “A Isca de Satanás: libertando-se da armadilha mortal da ofensa”, 1a edição, Rio de Janeiro: Luz das Nações, 2009, 196 p.

“O perdão e o coração”, <www.hospitaloswaldocruz.org.br/>, 1919, acesso em 26.05.2024

por Israel Alves Ferreira

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