A passagem bíblica de Êxodo 32.15-20 têm sido o estímulo para várias análises e discussões rabínicas ao longo dos séculos. O impacto que nos causa o fato de as tábuas de pedra, “feito de Elohim”, contendo o “escrito de Elohim” terem sido quebradas, melhor dizendo, espalhadas como se dá o espalhar das cinzas (hebr. ‘efer’) conduz a inúmeras tentativas de explicações sobre o tema. Alguns estudiosos hebreus solucionam o impasse com a poética narrativa de que as letras sagradas teriam literalmente voado das tábuas diante do pecado dos filhos de Israel. Dessa forma, Moisés apenas quebrou tábuas vazias do conteúdo sagrado. Para outros, os fragmentos foram todos recolhidos e guardados zelosamente na Arca da Aliança, juntamente com as novas tábuas escritas no Sinai. Os que assim solucionam a questão encontram base nas páginas do Talmude: “Mostre respeito para com um idoso que esqueceu seu aprendizado não por culpa própria, pois aprendemos que os fragmentos das antigas tábuas foram mantidos junto com as novas tábuas na Arca da Aliança” (Talmude Babilônico, Berachot 8b).
Outras e criativas soluções tentam tirar-nos o espanto de
que a escritura do Altíssimo tenha jazido esfacelada aos pés do monte. Nada responde,
no entanto, a secura do texto lido de forma literal, além do conhecimento de
que, uma vez quebradas as pedras, ao menos pequenos estilhaços teriam sido
espalhados pelo impacto do movimento furioso sobre um solo rochoso e áspero. Em
nossos dias, somos ensinados a preservarmos os lugares naturais por onde
venhamos a peregrinar, seja por trânsito necessário, seja por uma divertida excursão
familiar, evitando deixar, no lugar onde acampemos, restos de alimentos,
vasilhames, lixos plásticos e outros. Assim, nada retiramos do lugar e nada deixamos
– o espaço utilizado para nosso trânsito ou lazer agradece. No entanto, os
israelitas deixaram algo em sua peregrinação pelo deserto – ao pé do Monte
Sinai, lugar da revelação do Senhor, ficaram deitados sobre a terra os
fragmentos das antigas tábuas. O espanto dos que não podem aceitar tal infração
não compreende que o próprio Escritor das tábuas tenha vindo, Ele mesmo, para
ser quebrado e moído por amor dos homens.
Se tomarmos as Palavras como sementes, então podemos conceber
que, simbolicamente, aquela materialização da quebra do pacto de um povo com
Seu Deus tenha obtido como resposta da parte desse mesmo amoroso Deus uma nova oportunidade.
As tábuas são reescritas, reenviadas e, agora sim, guardadas e ensinadas para
que todos possam obedecer às sagradas leis.
O movimento de retorno às antigas tábuas está vivo em Israel
e faz-se necessário. O visitante à Terra Santa que chegue à cidade de Jerusalém
verá, com alegria e emoção, a postura respeitosa dos religiosos em busca da
comunhão com o Eterno em suas orações e clamores junto ao Kotel (Muro das Lamentações),
nas sinagogas, nas várias yeshivot (escolas rabínicas), no trajar com decência
e no amor pelos livros sagrados. Mas, basta afastar-se dos centros religiosos para
surpreender-se com a crescente mundanização de um povo imerso no pecado, nas
ideologias de gênero, nos vícios e em toda sorte de práticas ocultistas.
Recente discussão encontrou defensores e opositores para as celebrações
de Bar e Bat Mitzvah. A prática define o limite entre a criança e o adulto
responsável para os judeus. O menino torna-se Bar (filho) Mitzvah ([do]mandamento)
aos 13 anos, para a menina, 12 anos é a idade para se tornar Bat (filha)
Mitzvah ([do]mandamento). A antiga prática privilegiava a leitura de um trecho
da Torah, segundo a leitura separada para aquele dia (Haftarah). Em seguida, o
adolescente fazia uma pequena explicação baseada no texto lido. O momento era
de extrema alegria para os integrantes da sinagoga, pois, mais um filho ou
filha de Sião estava pronto para cumprir com os compromissos de sua fé e estava
restabelecida, na nova geração, o pacto do povo com a Lei de Deus. No entanto,
com o passar dos anos, ainda que se mantenha a cerimônia na sinagoga, a festa mais
aguardada é a celebração no fim do dia, com Djs, luzes, comidas variadas,
cantores e cantoras convidados, muita música e danças. Os pais gastam
verdadeiras fortunas nessas comemorações e, no dizer de alguns rabinos,
desloca-se o foco da Mitzvah para o Bar ou Bat, tornando-os as verdadeiras
estrelas da ocasião. Sabemos de festas de 20 ou 30 mil dólares e de cantora que
cobrou 150 mil dólares para comparecer a uma celebração de Bat Mitzvah. Nessas
ocasiões, ficam esquecidos ao pé do monte os fragmentos das antigas tábuas.
No passado, quando os sepultamentos em Israel se tornaram verdadeiros
séquitos reais, um homem sábio, o Rabino Gamliel, solicitou que, ao morrer,
apenas envolvessem seu corpo num lençol de linho e o sepultassem de maneira singela,
sem pompa, apenas com as orações devidas e a gratidão ao Eterno por Sua
misericórdia. Atendido o pedido do Rabi, a prática alcançou o coração dos
demais israelitas, de tal maneira que se estabeleceu a prática, permanecendo
até os dias de hoje. Pode parecer estranho que o ‘povo do Livro’ precise
retornar ao Livro, mas nada é mais verdadeiro agora para Israel. É necessário
recolher os cacos das tábuas quebradas. Ser judeu é mais do que celebrar as
marcações de datas festivas, fazendo delas apenas motivo para dar vazão aos
prazeres humanos. É preciso voltar ao Sinai, à revelação de Deus, à aliança
estabelecida e à pessoa desse Deus, eterno, justo e misericordioso.
O profeta Isaías (28.10-12) lembra que a Palavra precisa ser
ensinada “tsade letsade”, “cof lecof”, ou seja, letra por letra, “zeêr sham,
zeêr sham”, um pouco lá, um pouco lá. E avisa, na continuação do texto, que os
preceitos, dados para serem lugar de descanso para o exausto, tornar-se-iam
embaraço para os pés daqueles que a eles resistissem. Notemos que o texto fala
em resistir e não em ignorar. Israel não ignora a Palavra de Deus mas, na
atualidade, são muitos os filhos de Israel que a ela resistem.
O Senhor referiu-se a Abraão como um ensinador: “Porque eu o
tenho conhecido, que ele há de ordenar a seus filhos e a sua casa depois dele,
para que guardem o caminho do Senhor, para agirem com justiça e juízo; para que
o Senhor faça vir sobre Abraão o que acerca dele tem falado” (Gênesis 18.19).
Através de Moisés, o Eterno instruiu: “Estas palavras, que hoje te ordeno, ...,
tu as intimarás a teus filhos e delas falarás assentado em tua casa, e andando
pelo caminho, e deitando-te e levantando-te” (Deuteronômio 6.7). Aliás, apesar
de Moisés ter sido instruído em toda a ciência dos egípcios (Atos 7.22), foi
enviado à casa de Israel para transmitir os ensinamentos do Eterno: “... o
Senhor me disse: Ajunta-me este povo, e os farei ouvir as minhas palavras, e
aprendê-las-ão” (Deuteronômio 4.10). Mesmo sendo um homem extremamente culto para
sua época, Moisés precisava cumprir seu ministério, ensinando a Palavra de
Deus.
Tenha sido pela repetição e pelo exemplo (Deuteronômio 11.19),
pela leitura em público (Deuteronômio 31.10-13), mediante o emprego de cânticos
e das celebrações espirituais (Deuteronômio 31.19a), através das perguntas e
respostas dos filhos e dos alunos, com perseverança e com continuidade zelosa a
Palavra chegou até nós. Ensinados pelos pais, pelas mães, como foi ensinado o
rei Lemuel (Provérbio 31.1), no Templo, nas sinagogas, o povo de Israel manteve
sua Aliança com a Torah. Em 75 a.C., Simão benSetah introduziu a educação
elementar compulsória em Israel, começando por Judah, para os meninos de 6 a 16
anos. Enquanto os meninos gregos dedicavam-se aos ensinos básicos e,
posteriormente, à literatura, à filosofia e à retórica, os meninos judeus,
venciam os rudimentos da escrita e da matemática ao mesmo tempo em que meditavam
nos ensinamentos santos. Jesus viveu em dias posteriores à reforma implantada
por Simão benSetah, tendo sido exposto às Escrituras desde tenra idade. O professor
poderia ser o ‘hazan’, oficial da sinagoga, um ‘rabi’, escriba dedicado ao
ensino ou um ‘hakan’, doutor da Lei. É especial a passagem em que um ‘hakan’ como
Nicodemos vai consultar um modesto ‘rabi’ itinerante e é por Ele advertido –
afinal, é um doutor da Lei e não sabe determinadas e simples coisas do reino do
Espírito.
A humildade do Mestre dos Mestres explica, afinal, que as pedras
partidas não se perderam. Ficaram como sementes de ensino em Israel, foram
transmitidas por pais, mestres, profetas, povoando simultaneamente o palácio
dos reis e as casas mais simples. O Escritor das tábuas manteve o ensinamento vivo.
Posteriormente, veio em carne, verbo feito carne, pão vivo descido dos céus. O
autor das tábuas ministrou em Israel, deixou-se quebrar e, ao ser quebrado,
uniu multidões a Si num só corpo. Subiu aos céus e deixou-nos Seu Espírito para
nos guiar a toda a verdade. Agora, o Autor ainda escreve seus preceitos, embora
tenha trocado de material – preteriu as pedras – escolheu tábuas de carne dos
corações humanos. Oremos por Israel. Se há uma nação e um povo que necessita voltar
ao Livro, essa é a nação e esse é o povo. Os sons do arraial confundiriam Josué
e provocariam ira a Moisés. Israel precisa, antes que os dias se findem,
recolher do solo em que foram atirados os fragmentos das antigas tábuas, de sua
própria identidade como povo de Deus. Volta, Israel, ao Senhor!
por Sara Alice Cavalcanti
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