A visão bíblica é contra a alienação e a teologia do domínio; devemos ter cuidado com a legislação eleitoral e estar atentos a ataques à liberdade religiosa
Sabemos que o Reino de Cristo “não é deste mundo” (João 18.36) e que devemos ter cuidado para não misturarmos demais fé com política, mas darmos “a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22.21). Porém, isso não significa alienação política, pois ser discípulo de Cristo não é algo que diz respeito apenas à vida espiritual, mas também a todas as esferas nas quais seus discípulos estão inseridos: “Vós sois o sal da terra; e se o sal for insípido, com que se há de salgar? Para nada mais presta senão para se lançar fora, e ser pisado pelos homens. Vós sois a luz do mundo; não se pode esconder uma cidade edificada sobre um monte; nem se acende a candeia e se coloca debaixo do alqueire, mas no velador, e dá luz a todos que estão na casa. Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus” (Mateus 5.13-16).
Uma dessas esferas em que estamos inseridos e na qual devemos
também ser luz e sal é a esfera política. Logo, os cristãos podem e devem se
preocupar com a política, todavia de forma equilibrada, tendo como diapasão a Palavra
de Deus.
A visão bíblica evita os extremos na questão política
O pastor Douglas Baptista, presidente do Conselho de Educação
e Cultura da Convenção Geral dos Ministros das Igrejas Evangélicas Assembleia
de Deus do Brasil (CGADB), ressalta que a política – como qualquer outra área
da vida humana – deve ser tratada pelo cristão sempre dentro da perspectiva
bíblica, para se evitar extremos. Frisa ele que, sem essa perspectiva, a
política será tratada pelo cristão ou a partir do extremo da alienação, ou a
partir do extremo da chamada “teologia do domínio”, em que se acredita que os
cristãos devem buscar, pelos meios políticos, submeter toda a sociedade à sua
visão de fé. “Nesse sentido, a Assembleia de Deus tem oficialmente se
posicionado de forma equilibrada. As Assembleias de Deus buscam ocupar o seu
espaço de forma legítima e democraticamente na esfera pública. A visão
institucional da denominação, como apresentada em sua Declaração de Fé, difere
dos extremos que acusam os pentecostais de alienação ou da tentativa teocrática
de impor valores pela via do poder público”, enfatiza pastor Douglas.
Sobre a participação dos assembleianos e evangélicos de forma
geral na política, pastor Douglas lembra que “o modelo de estado laico adotado
na Constituição do Brasil é colaborativo e benevolente com a religião. O texto
constitucional não é hostil ao fenômeno religioso, mas, pelo contrário,
diversos dispositivos constitucionais protegem a religiosidade do povo
brasileiro. Assim sendo, as Assembleias de Deus evocam o direito à liberdade religiosa,
de crença, de pensamento e de expressão, por meio de um programa próprio de
cidadania que atua na defesa de agendas conservadoras tanto de ordem social
como de ordem moral”.
Pastor Douglas frisa ainda que “na confissão de fé das Assembleias
de Deus, a existência do estado é reconhecida como um dom e uma ordem divina;
assim sendo, os que assumem cargos públicos possuem uma autoridade divinamente
delegada, mas não uma autoridade soberana. Nesse aspecto, os pentecostais enfatizam
a soberania divina e não a humana, e desse modo professam que tudo procede do Altíssimo.
Nessa compreensão, o povo pentecostal não é doutrinado para aceitar
passivamente todo tipo de governo, nem tampouco é impedido de questionar as
autoridades constituídas ou instigado a prestar-lhe cega obediência. Quanto ao
limite da submissão ao estado, a Declaração de Fé das Assembleias de Deus faz
importante ressalva: ‘Enquanto organização civil, a Igreja está submetida ao Estado,
tendo como limite de tal submissão os preceitos bíblicos, de sorte que, em caso
de conflito entre as normas emanadas do Estado e a Bíblia, esta prevalece sobre
aquelas’. Essa ênfase doutrinária estabelece o ethos pentecostal que irá
nortear a ação política dos assembleianos na esfera pública. Nesse contexto,
quando o governo requer aquilo que Deus condena, ou proíbe aquilo que Deus
requer, de alguma forma a desobediência civil será instaurada entre os cristãos
autênticos, conforme Atos 4.18-31 e 5.17-29. Aliás, tal postura foi adotada
pelos mártires cristãos, que perderam suas vidas por não obedecerem ao estado
em alguma questão civil contrária à Palavra de Deus. Ressalva-se, porém, que
para os pentecostais a democracia é o convívio pacífico de ideias divergentes,
resguardado o direito constitucional à escusa de consciência”.
Ataques à liberdade religiosa no Brasil
No que tange à liberdade religiosa, o jurista gaúcho Jean
Regina, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR),
frisa a distinção entre a liberdade de crença e a liberdade religiosa, que é
algo mais amplo e que abrange também a liberdade de crença. “A liberdade
religiosa é o efeito e o resultado da liberdade de crença. A liberdade de
crença é o belief, a convicção, enquanto a liberdade religiosa é o action, a ação,
protegendo a pessoa religiosa tanto em sua crença como em suas liturgias. A
liberdade religiosa protege a conduta da pessoa religiosa. Na paleta de
direitos da liberdade religiosa, encontramos: a liberdade de expressão da fé, a
liberdade de defesa da fé – ou seja, a apologética –, a objeção de consciência
religiosa, a liberdade de proselitismo, a liberdade de ensino, a assistência
religiosa, a liberdade de culto e a liberdade de organização religiosa”,
explica.
Dr. Regina destaca que, embora haja amparos constitucionais
e legais para a liberdade de culto no Brasil, algumas ameaças têm surgido aqui
e acolá, nas áreas jurídicas e legislativas, de limitação da manifestação da
liberdade religiosa no país. “Em última instância, a liberdade religiosa não
garante apenas os nossos direitos de expressar a nossa fé, mas também a própria
democracia, pois só há espaço para ser diferente quando há espaço para crer
diferente. Logo, preocupam algumas ameaças à liberdade religiosa que temos
visto, tanto de fora como desde dentro. De fora há pessoas que odeiam a Cristo e
a Sua Igreja – é o espírito da época. Desde dentro há a falta de conhecimento
dos nossos irmãos sobre direitos e deveres, o que enfraquece o exercício da fé e
consequentemente a liberdade religiosa em si”, afirma Dr. Regina. Cuidados das
igrejas quanto à legislação eleitoral.
Este é um ano de eleições. Logo, é preciso relembrar os
cuidados que as igrejas no Brasil devem ter quanto à legislação eleitoral. O pastor
Valmir Nascimento, presidente de Conselho de Educação e Cultura da Convenção de
Ministros das Assembleias de Deus no Estado do Mato Grosso (COMADEMAT), 3º
vice-presidente acadêmico do Instituto Brasileiro de Direito e Religião, e
analista judiciário do Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso, chama a
atenção para os principais cuidados. Antes de tudo, ele esclarece que não existe
no Brasil a figura jurídica do “abuso de poder religioso”, como andou sendo
propalado um tempo atrás e que ensejaria a perda dos direitos políticos de
religiosos. Na verdade, houve uma tentativa de se instituir essa figura
jurídica em nosso país há pouco tempo, mas isso não foi para frente.
“Nem a Constituição Federal e nem a legislação eleitoral contemplam
essa figura. E o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ainda manifestou esse
entendimento em pelo menos duas decisões importantes. A primeira foi no Recurso
Ordinário nº 65308, de relatoria do ministro Henrique Neves, ressalvando,
porém, a possibilidade de configuração de abuso de poder econômico e do uso
indevido dos meios de comunicação, conforme as circunstâncias verificadas. A
outra decisão ocorreu no Recurso Especial Eleitoral nº 82-85.2016.6.09.0139 (Classe
32 – Luziânia – Goiás), no qual o relator, o ministro Edson Fachin, propôs em
seu voto que o TSE assentasse a viabilidade do exame jurídico do abuso de poder
de autoridade religiosa no âmbito das ações de investigação judicial eleitoral.
Depois de intensos debates, a tese foi rechaçada por seis votos a um. Na
legislação, só existem três tipos de ilícitos eleitorais capazes de gerar a
perda dos direitos políticos, sendo eles o abuso do poder econômico, o abuso do
poder político e o uso indevido dos meios de comunicação”, explica.
O pastor Valmir destaca também que a legislação eleitoral
brasileira é bem específica em relação aos cuidados que as igrejas devem ter no
processo eleitoral. “A legislação eleitoral faz somente três menções às igrejas
e aos templos religiosos. A primeira encontra-se no artigo 37, § 4º, da Lei n.
9504/97 – a Lei das Eleições – e alude à proibição de propaganda eleitoral dentro
dos templos. A segunda, no artigo 242, inciso VIII, veda a partido e a
candidato receber direta ou indiretamente doação em dinheiro – ou estimável em dinheiro
– de entidade religiosa. A terceira, no artigo 39, § 3º, inciso III, estabelece
limites de funcionamento de alto-falantes ou amplificadores de som próximo às
igrejas”, afirma.
No que diz respeito à proibição de propaganda eleitoral em
templos, pastor Valmir explica que, na verdade, “o artigo 37, caput, da Lei n.
9504/97, veda a veiculação de propaganda de qualquer natureza nos bens cujo uso
dependa de cessão ou permissão do poder público, ou que a ele pertençam, e nos
bens de uso comum. Segundo o § 4º do referido artigo, bens de uso comum, para
fins eleitorais, são os assim definidos pelo Código Civil e também aqueles a
que a população em geral tem acesso, tais como cinemas, clubes, lojas, centros comerciais,
templos, ginásios, estádios, ainda que de propriedade privada. Por sua vez,
entende-se por propaganda eleitoral aquela que leva ao conhecimento geral, ainda
que de forma dissimulada, a candidatura, a ação política que se pretende
desenvolver ou as razões que façam inferir ser o beneficiário o mais apto para o
exercício da função pública. É relevante observar que a vedação de propaganda
nos templos não se fundamenta pelo fato do estado ser laico (artigo 19, I, da
Constituição Federal). A vedação simplesmente ocorre porque o templo se
equipara, para fins eleitorais, a bem de uso comum, acessível por qualquer pessoa
da população”.
E quanto a fazer propaganda eleitoral nas imediações ou
redondezas do templo?
“Trata-se de questão controversa, cuja resposta vai depender
das circunstâncias do episódio. O TRE-SP, na RE nº 425-31.2016.6.26.0035
(Classe nº 30 – Campos do Jordão, SP), já decidiu que é proibida a influência
religiosa para fins eleitorais, sendo indiferente o local em que a propaganda
política ocorre. Ele concluiu, no caso, que o político foi auxiliado por um
pastor com propaganda distribuída nas redondezas da igreja, às vésperas da
eleição. O pastor teria anunciado, durante o culto, que, ao final, entregaria
uma carta a cada um dos fiéis presentes. Na carta, o líder religioso pedia
ajuda dos congregados para ‘escolher o nosso representante para o poder legislativo’
e sugeria que cada fiel conseguisse a colaboração de mais três pessoas que não
são membros da igreja. O julgamento do TRE-SP equivocou-se ao fundamentar a condenação
na ‘influência religiosa para fins eleitorais’, bem ainda ao reconhecer o abuso
de poder no caso. Isso porque, ao proibir a propaganda em templos, a legislação
está preocupada com o local e não com a natureza do discurso, seja ele
religioso ou não. A questão mesmo é que a proibição da propaganda eleitoral nos
limites do templo engloba até mesmo o seu pátio. A vedação atinge a propaganda
eleitoral realizada fora do templo, logo após anúncio e no contexto do evento
religioso, porque, nesse caso, há uma conexão entre o anúncio feito dentro do
templo, onde a propaganda é proibida, e o ambiente externo – via pública, local
em que, em regra, não há vedação da propaganda eleitoral. Todavia, tal conduta
deve ser avaliada sob a ótica da propaganda irregular, e não sob a perspectiva
de abuso de poder”, explica pastor Valmir.
“Situação diferente ocorre se a propaganda eleitoral
acontece numa rua em frente ao templo religioso, sem qualquer anúncio ou
vínculo com a cerimônia. Nesse caso, não existe qualquer dispositivo legal que
proíba tal prática. Isso vale para o templo religioso, mas também para qualquer
outro local de acesso ao público (cinemas, clubes, lojas, centros comerciais,
templos, ginásios, estádios etc.)”, acrescenta.
O pastor Valmir esclarece ainda que “as igrejas podem
realizar palestras, seminários ou outro tipo de reunião – inclusive no templo –
com o propósito de proporcionar conscientização política às pessoas em geral e
aos seus membros em particular, desde que não configure propaganda eleitoral.
Elas podem defender, com base na liberdade religiosa (art. 5º, VI, CF) e na
liberdade de expressão e de pensamento (art. 5º, IV, CF), certos valores e princípios
morais necessários na ação política, assim como falar sobre os perfis que
entendem adequados e inadequados para a ocupação de cargos públicos, à luz de
suas convicções morais e religiosas”.
Por sua vez, é controverso na legislação brasileira se uma
organização religiosa pode realizar na igreja um evento fechado (ou seja, não
aberto ao público) para tratar de assuntos políticos. A priori, não é proibido.
“A vedação contida no artigo 37, caput, da Lei n. 9504/97, se aplica no caso em
que há acesso à população em geral. Essa é a interpretação quanto à finalidade da
norma. Se a organização religiosa realiza reunião de participação restrita, a
portas fechadas, somente com seus ministros, por exemplo, para tratar de
assuntos políticos, não há de falar-se em propaganda irregular, porquanto está
descaracterizada a sua condição de equiparação a bem de uso comum. Nessa
hipótese, a igreja preserva a sua natureza jurídica de bem particular. Até
porque, como afirma uma resolução do TER do Paraná (RE 6228, 2008), ‘a
aplicação da regra que estende a natureza de bem de uso comum aos bens particulares
deve ser vista com reservas e aplicada em casos em que há demonstração cabal de
livre acesso à população que justifique a possibilidade de a propaganda ali
afixada gerar desequilíbrio no pleito’”. O jurista assembleiano ressalva,
porém, que há decisões judiciais em contrário, nas quais se reconheceu
propaganda irregular em situações mais ou menos similar. “Portanto, é melhor
evitar”, completa.
O jurista assembleiano afirma também que “não há qualquer vedação
à apresentação de um candidato que comparece à cerimônia religiosa. Afinal, os
candidatos a cargos políticos não precisam se afastar dos eventos públicos. Porém,
tal apresentação não pode conter propaganda eleitoral, ainda que velada, por
meio de exaltação pessoal do candidato. Há decisão do TSE de 2021 nesse sentido
– ver Recurso Especial Eleitoral nº 060277359 (Acórdão, relator ministro Edson
Fachin)”.
O pastor Valmir lembra que a igreja é proibida de financiar
candidato a cargo público. “A vedação engloba, como visto, tanto a doação em
dinheiro, como estimável em dinheiro – isto é, a igreja não pode disponibilizar
pessoas, serviços e estrutura em prol do candidato. Tal conduta pode configurar
abuso do poder econômico”. Quanto à igreja declarar apoio a determinado
candidato, não é vedado pela legislação “que pastores e igrejas declarem apoio
a pretendentes a cargos eletivos, desde que não haja propaganda eleitoral,
exaltação das suas qualidades e apoio financeiro ou estimável. O TRE/SP já decidiu:
‘Acrescente-se, ainda, que o mero apoio de líderes religiosos a determinados
candidatos, como no presente caso, não é vedado pela legislação eleitoral, uma
vez que está amparado pelo manto da liberdade de expressão’. Todavia, é preciso
atentar para as circunstâncias e para a forma da declaração de apoio”.
Por fim, o jurista assembleiano pontua que ministros
religiosos, caso sejam candidatos, podem continuar a pregar em suas igrejas.
“Eles não estão obrigados a se afastarem de suas funções caso sejam candidatos.
Não estão eles sujeitos à desincompatibilização nos moldes de outras
profissões, a exemplo de servidores públicos. Sendo assim, podem manter as suas
atividades religiosas durante a campanha, com a ressalva da proibição de pedido
de votos e propaganda eleitoral no templo, mesmo que dissimulada”.
Compartilhe este artigo. Obrigado.
Postar um comentário
Seu comentário é muito importante