Profetas bíblicos: natureza e função

Profetas bíblicos: natureza e função


No contexto do pentecostalismo contemporâneo, aparecem cada vez mais pessoas que dizem falar em nome e no lugar do Senhor. Proclamam-se “profetas”, “arautos”, “mensageiros” e “boca de Deus”, como se o eco trêmulo de sua algazarra incerta e disfônica fosse a própria voz do Senhor. Eles se transvestem de profetas bíblicos, mas não trazem as marcas dos verdadeiros profetas. Como as Escrituras designam os profetas?

A Escritura designa-os pelos termos nabhî e hozeh, e pelo título aditivo ’ish ha’elohîm. Nabhî e hozeh correspondem aos dois modos privilegiados com o qual Deus fala ao profeta: palavra e visão. O vocábulo nabhî ocorre cerca de 315 vezes no Antigo Testamento, das quais 92 aparecem somente em Jeremias. A palavra nabhî procede de certa raiz hebraica cujo significado original traz a ideia de ferver, borbulhar, como um líquido em ebulição. Um profeta, conforme a designação nabhî, é aquele que ferve com a inspiração divina e despeja palavras por inspiração ou animação fervorosa. O termo semítico foi captado com maestria pelo vocábulo helênico prophetēs, cujo significado primário é “falar por”, “representar” e, por extensão, designa “alguém que fala em lugar de outra pessoa” (Êxodo 4.16; 7.1). Assim sendo, a função de um profeta é agir como embaixador ou mensageiro divino, comunicando a vontade de Deus para o povo, especialmente em época de crise. Os profetas falavam no lugar ou em nome de Deus, como pessoas investidas de autoridade e inspiração divinas, seja por visão (Isaías 6), seja por audição (Jeremias 1.4), empregando a expressão diplomática do Antigo Oriente, conhecida como “A fórmula do mensageiro” (“Assim diz o Senhor”) ou a “A fórmula do acontecimento da palavra” (“Veio a palavra do Senhor”).

Nabhî é um orador-profeta a quem o Senhor confiou a missão de proclamar o que recebe. Isso pressupõe que o mecanismo da inspiração profética é um ato pelo qual o Senhor coloca as palavras na boca de Seus arautos (Deuteronômio 18.18; Jeremias 1.9).

O segundo termo designativo, hozeh, quer dizer literalmente “visionário”. O vocábulo refere-se ao profeta como aquele que recebe ou tem visões. O visionário (1 Samuel 9.9; 2 Samuel 24.11; 2 Crônicas 33.18; 35.15) era sobrenaturalmente capacitado a ter visões e a enxergar o que se encontrava além do aferimento humano comum (Jeremias 23.18). O vocábulo indica o que está por trás do pronunciamento inspirado de um profeta: a visão que divinamente recebe. A credencial de uma autêntica profecia anunciada pelo hozeh era entrar infalivelmente no futuro e o revelar (Deuteronômio 18.21-22). Esse carisma e seu cumprimento autenticavam a procedência divina da mensagem do hozeh (2 Reis 17.13). Por intermédio dessa função profética, Deus chamava a atenção para o programa futuro em relação a Israel e às nações (Números 12.6,7; 1 Samuel 28.6-15; Jeremias 23.28).

O título designativo, ’is ha’elohîm (Deuteronômio 33,1; 1 Samuel 2; 27; 9,6; 1 Reis 13,1), contudo, aparece cerca de 76 vezes no Antigo Testamento, e se aplica a vários personagens importantes da tradição profética hebraica, entre eles o profeta Eliseu, a quem é atribuído o título cerca de 29 vezes. Como título honorífico, exprimia o conceito que os homens nutriam dos profetas e expressava a estreita associação da respectiva pessoa com Deus. Este título fora atribuído primariamente a Moisés como profeta normativo ou arquétipo, e seu emprego continuou até o fim da monarquia. A intenção provavelmente era expressar a diferença de caráter entre o profeta e os homens ordinários (2 Reis 4.9).

O uso de variegados termos e títulos apontava não tanto para a função e o caráter do profeta, mas para a procedência e natureza da mensagem. É a procedência e a natureza da palavra anunciada que se quer enfatizar.

De igual modo, a vocação de um profeta na Escritura é chamada pela exegese bíblica de “relatos de vocação profética”. Cedo na hermenêutica cristã, identificou-se uma estrutura literária nos relatos de vocação para o ofício profético constituída de seis episódios: (1) confronto com Deus; (2) palavra de introdução; (3) missão propriamente dita; (4) objeção do enviado; (5) reafirmação com juramento; e (6) dação de um sinal. Veja, por exemplo, os relatos de vocação de Moisés (Êxodo 3.1-4.17), Isaías (Isaías 6.1-13; 40.1-11), Jeremias (Jeremias 1.4-10), Ezequiel (Ezequiel 1.1-3.15) e, apesar de não ser profeta, o chamamento de Gideão, que inclui algumas dessas características (Juízes 6.11-24).

Na vocação profética, aquele que é chamado se esquiva ao se desculpar pela “falta de eloquência”, por ser “pesado de boca”, pelos “lábios impuros” ou por “não saber falar”; e não há razão para entender que eles tivessem qualquer dificuldade eufônica, mas, sim, há o fato de não se acharem dignos de serem portadores da Palavra de Deus ou de ter a voz do Senhor por detrás das suas. Daí a garantia divina de que será mesmo a voz de Deus que será ouvida e não a do profeta, razão pela qual o Senhor toca-lhes o instrumento profético (Isaías 6.7; Jeremias 1.9; Ezequiel 2.7;3.1-3).

O modo como o profeta recebe a comunicação não é mais importante do que a própria mensagem a ser anunciada. A mensagem que o profeta anuncia não é dele. Ele a expressa, como porta-voz, mas a palavra é divina e seu autor é Deus. As fórmulas para expressar o mistério dão conta do modo especial com que a palavra divina chega até o profeta (“veio a mim a palavra do Senhor”; “disse-me o Senhor”), e asseguram que a mensagem comunicada é transmitida pelo próprio Deus (“assim diz o Senhor”; “oráculo do Senhor”), seja em palavras, seja em ações simbólicas (Isaías 8.1; Jeremias 18; Ezequiel 4.1; Oséias 1; 3). Para os profetas, era mais importante realçar a origem divina da palavra do que expressar a experiência de ter recebido a palavra.

Portanto, é o chamamento profético que distingue o profeta da comunidade a qual se dirige e, por isso, o constitui uma exceção. O profeta entra na presença de Deus, ouve a voz divina e comunica a mensagem ao povo. O envio do profeta, no entanto, é o que o liga ao povo e o faz reconhecer seu lugar e pertencimento, como em Isaías 6.5 e Jeremias 1.13-19. Por esse motivo, os profetas são mediadores de uma história em movimento, que eles veem vir, e que interpretam para seu povo como o exercício de um juízo contra a nação. A história está em curso e o profeta anuncia um futuro lúgubre, mas a esperança de que o povo rebelde ouça a Palavra do Senhor é que o motiva. Essa missão não os torna heróis, populares e conquistadores, mas sofrentes, cuja palavra de dor se inscreve na trajetória da lamentação, como se vê em Jeremias. O profeta é alguém arrancado do seu lugar, do seu desejo. Embora participe de modo abrangente da vida da comunidade, ele se distingue dela. A chamada do profeta, por conseguinte, é sempre pessoal, dirigida a ele, e a qual deve responder.

por Esdras Costa Bentho

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