Relacionada à Doutrina da Salvação, a santificação é apresentada no Novo Testamento como ocorrente na experiência humana em três momentos: passado, presente e futuro. Tais momentos correspondem, respectivamente, aos três aspectos da santificação: posicional, progressivo e pleno ou perfeito (GILBERTO, 2021, p. 364). Cristo consumou sua obra salvífica na cruz (João 19.30; Hebreus 9.26-28; 10.11-14). Esta obra começou em nós através da regeneração e da justificação pela fé, quando nos tornamos “santos em Cristo” – a santificação posicional (1 Coríntios 1.2; 6.1; Colossenses 2.10; Filipenses 1.1; Hebreus 10.10) – e segue sendo realizada pelo Espírito Santo através da santificação progressiva (2 Coríntios 3.17,18; 7.1; 1 Pedro 1.15,16; Hebreus 12.14), estendendo-se até a glorificação, quando se dará a santificação completa, a libertação do corpo do pecado (Efésios 5.27; 1 Tessalonicenses 3.13; 1 Coríntios 15.52). Como escreveu Paulo, “aquele que em [nós] começou a boa obra a aperfeiçoará até ao Dia de Jesus Cristo” (Filipenses 1.6).
A mortificação da “carne” (sarx, no grego: “natureza
humana”, como em Romanos 8.5-13) tem lugar no aspecto progressivo da santificação,
que se dá no tempo presente. É uma obra realizada em nós pelo poder do Espírito
Santo para que possamos vencer diariamente as inclinações de nossa natureza
pecaminosa, que é “uma realidade contínua para o cristão; a propensão ou
orientação em direção ao pecado e ao afastamento da vontade de Deus que
persegue o crente até o fim de sua vida terrena” (LOWERY in ZUCK, 2018, p. 289).
A santificação progressiva ou contínua tem, na origem, o impulso indispensável da
graça de Deus, mas precisa contar com uma cooperação ativa e permanente de
nossa parte. É, portanto, resultado da conjugação da imprescindível operação
divina e da disposição de vontade, decisões e atitudes humanas (GRUDEM, 2021,
pp. 628-631).
Conforme J. Rodman Williams (2011, p. 441), “a santificação também
é tarefa do homem: Deus não opera sem o nosso envolvimento. Não é que Deus faz uma
parte, digamos 50%, enquanto o homem é chamado para realizar o restante, os
outros 50%. É, antes, Deus inteiramente através de todo o caminho do homem”. O
mesmo teólogo diz, contudo, que “é preciso observar cuidadosamente que não é o Espírito
Santo que executa a tarefa de mortificação, entretanto ele é claramente o
potencializador. É, por outro lado, o próprio crente quem, por meio desse poder,
executa a mortificação. Portanto, o Espírito Santo não é apenas oposto à carne;
ele é também a força potencializadora na ação de mortificação contínua do
crente” (p. 442).
Um dos textos nos quais Paulo trata claramente dessa
teologia da mortificação é Romanos 8.13: “Porque, se vocês viverem segundo a
carne, caminharão para a morte; mas, se, pelo Espírito, mortificarem os feitos
do corpo, certamente viverão” (NAA). Na NVI, a tradução é ainda mais clara
quanto ao papel humano nesse processo, ao dizer: “Se pelo Espírito fizerem morrer
os atos do corpo, viverão”. Cabe ao cristão, através de disciplinas espirituais,
buscar e permitir que o Espírito Santo atue em seu ser, mortificando a carne, a
fim de que esta não produza suas terríveis e nefastas obras (Gálatas 5.19-21).
Em lugar delas – das obras da carne –, o Espírito passa a produzir em nós, simultaneamente,
o seu fruto – o fruto do Espírito –, que é manifesto em virtudes espirituais,
como listadas em Gálatas 5.22: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade,
fé, mansidão e domínio próprio.
O perigo da justiça própria
O esforço meramente humano de vencer as inclinações da carne
leva o homem a confiar em sua própria justiça, através do rigorismo ascético,
do legalismo e de atitudes penitentes e de autoflagelo, como faziam os monges
nos monastérios e, ainda hoje, alguns cristãos insistem em fazê-lo, ainda que em
práticas menos radicais, tanto de caráter físico quanto mental ou intelectual.
Mas não é possível fazer morrer a carne sem a ação direta do Espírito de Deus!
E é isto que o Novo Testamento nos ensina, especialmente as cartas paulinas, sendo
Romanos a principal delas. Não por acaso, foi este, por excelência, o livro
redescoberto durante a Reforma Protestante, no qual Lutero encontrou a grande
chave para sua verdadeira conversão a Cristo: “O justo viverá da fé” (Romanos
1.17).
Para um monge agostiniano que vivia afligido em sua consciência,
aturdido pela culpa do pecado e golpeado por suas fraquezas carnais – crises
das quais as muitas penitências não podiam livrá-lo –, entender essa revelação
operou uma profunda transformação em seu interior e refletiu no seu viver diário.
Convicto da salvação pela graça, Lutero não mais confiaria em seu próprio esforço
e obras (incluindo os autoflagelos) para vencer o pecado e ser aceito por Deus.
Agora, salvo pela graça, por meio da fé (Efésios 2.8), viveria sob a
dependência do Espírito, buscando diariamente a mortificação da carne, a suplantação
da natureza pecaminosa e suas inclinações.
A responsabilidade humana na mortificação
A parte humana no processo de mortificação é, como já afirmado,
a prática de disciplinas espirituais, entre as quais estão a vigilância (o
afastar-se do mal e de tudo quanto o aparenta), a oração, o jejum e a leitura e
meditação na Palavra de Deus (Mateus 26.41; Mateus 6.16-18; Atos 10.9,10,30; 1 Coríntios
7.5; 2 Coríntios 11.27; João 15.3; 17.17; Colossenses 3.16; 1 Tessalonicenses
5.22). Precisamos reconhecer nossa insuficiência pessoal e nos dedicar a uma
vida de piedade e devoção, nos abstendo dos prazeres carnais e desejando
frutificar no Espírito. Há um evidente aspecto ativo ou prático na busca pela
mortificação, mas a disciplina inclui não apenas o fazer, mas também o deixar
de fazer. Salmos 101.3 diz: “Não porei coisa má diante dos meus olhos; aborreço
as ações daqueles que se desviam; nada se me pegará”. Assim, progredimos no
processo de mortificação da carne quando nos afastamos de todo o mal, livrando
os nossos sentidos (especialmente olhos e ouvidos) de tudo o que possa aguçar
nossos desejos e gerar o pecado dentro de nós.
Tiago adverte: “Havendo a concupiscência concebido, dá à luz
o pecado; e o pecado, sendo consumado, gera a morte” (Tiago 1.15). Jesus nos alertou
de que todo o pecado sai de dentro de nós (Mateus 15.19). Exatamente por isso, o
processo de mortificação da carne é imprescindível para evitar que sejamos
vencidos pelas tentações. Como escreveu Donald Stamps (BEP, p. 1926), “a
tentação provém, em princípio, dos desejos e inclinações do nosso próprio coração
[...]. Se o desejo mau não for resistido e purificado pelo Espírito Santo, levará
ao pecado e, depois, à morte espiritual” (Romanos 6.23; 7.5,10,13).
Para vencermos o mal, isto é, a nossa própria inclinação ao pecado,
é preciso que o processo de mortificação de nossa natureza carnal seja contínuo.
Não se trata de uma tarefa instantânea, mas de uma obra que precisa ser mantida
e ampliada diariamente. À luz de 2 Coríntios 4.10, a mortificação é condição sine
qua non para que a vida de Jesus se manifeste em nós e através de nós. “Vivo,
não mais eu, mas Cristo vive em mim”, disse o apóstolo dos gentios (Gálatas
2.20).
Estágios do processo de mortificação
O capítulo 3 de Colossenses é um dos mais belos textos
bíblicos que tratam dos aspectos posicional e progressivo da santificação.
Nele, Paulo faz um paralelo entre morte e vida para expressar essa profunda verdade
espiritual: “Porque já estais mortos, e a vossa vida está escondida com Cristo em
Deus” (Colossemses 3.3). Podemos ver aqui uma correlação precisa com o aspecto
posicional da santificação: em Cristo, já estamos mortos. Trata-se de uma
imersão inaugural na obra vicária, recebendo o sacrifício de Jesus em sua
plenitude. A partir do versículo 5, contudo, Paulo começa a tratar do aspecto
progressivo: “Mortificai, pois, os vossos membros que estão sobre a terra”.
Mesmo já tendo, pela fé, abraçado integralmente a obra da cruz, descobrimos que
nossa natureza pecaminosa ainda existe e apresentará muitas resistências que precisarão
ser vencidas diariamente no processo de contínua mortificação.
Algumas etapas bem distintas desse processo são vistas no
texto de Colossenses 3, a partir do versículo 5:
Colossenses 3.5-7 – No glorioso caminho da mortificação
da carne, precisamos abandonar, desde logo, o que podemos chamar de pecados flagrantes.
Paulo lista, de forma exemplificativa, a prostituição, a impureza, o apetite
desordenado, a vil concupiscência e a avareza. Espera-se que esse primeiro nível
da mortificação seja alcançado libertando o corpo da prática destes pecados. O
cristão não pode continuar vivendo sob o jugo do pecado. Seus membros não podem
mais ser instrumentos dessas práticas pecaminosas.
Colossenses 3.7-9 – Mas a mortificação não para no nível
dos pecados flagrantes. O apóstolo convida os crentes de Colossos e a todos nós
a continuar avançando. A vida da carne precisa ser suplantada e ir-se esvaindo
– a carne deve seguir o curso da morte –, de maneira que já não nos leve à ira,
à cólera, à malícia, à maledicência, a palavras torpes e à mentira. Fica
evidente, então, que o cristão não pode se conformar com uma mortificação que o
liberte apenas dos pecados mais aparentes. Precisa vencer a natureza carnal
também quanto a sentimentos ruins e práticas reprováveis nem sempre tão
percebidos de todos, mas que são males terríveis, que insistem em querer nos
dominar.
Pela dificuldade de vencer tais pecados, não é incomum alguns
cristãos se conformarem e apresentarem, como justificativa, aspectos hereditários,
principalmente quanto ao temperamento. Em vez de buscarem a mortificação da
velha natureza, justificam atitudes de ira, por exemplo, como “herança” dos
pais ou avós. Não é isso, contudo, que as Escrituras nos ensinam. Como disse Paulo,
precisamos nos despojar “de tudo” (Colossenses 3.8).
Como nascidos de novo (João 3.6; 1 Pedro 1.23), não podemos nos
conformar com pecado algum entranhado em nossa natureza. A mortificação precisa
continuar sempre. Na força do Espírito, precisamos tomar a atitude de rejeitar
o pecado e abandoná-lo, o que “não significa de forma alguma uma ação fácil:
implica libertar-se dos pecados, renegá-los, expulsá-los” (WILLIAMS, p. 445). Como
acentua HENRY (2008, p. 353), “não conseguimos fazer isso sem o Espírito
operando em nós, mas Ele não o fará sem o nosso empenho e esforço”.
Colossenses 3.12,13 – A mortificação da carne, com o
abandono de todos esses pecados já listados e de tantos outros que existam dentro
de nós, traz como resultado a possibilidade de o cristão expressar, com mais
vigor, a sua nova natureza pela vida de Cristo que agora passa a dominá-lo. Daí
ser possível vencer não apenas os pecados do corpo, mas também os da alma
(PEDRO, 2012, p. 139) e do espírito, como o orgulho, a soberba, a ganância e a ira
(2 Coríntios 7.1) (GILBERTO, 2021, p. 347), e seguir frutificando no Espírito, sendo
misericordioso, benigno, humilde, manso e longânime, tendo um coração isento de
mágoas e ressentimentos, sempre disposto a perdoar.
Colossenses 3.14-17 – O caminho da mortificação ainda
tem níveis mais sublimes para o cristão. Paulo anuncia, na sequência, a
possibilidade de o crente mortificado desfrutar e expressar o amor, que é “o
vínculo da perfeição” e ter “a paz de Deus” dominando em seu coração (Colossenses
3.14,15). Nesta fase, esse vitorioso cristão estará cheio de gratidão e terá a palavra
de Cristo habitando abundantemente em seu coração, expressando sabedoria e
alegria espiritual (Colossenses 3.16).
Este, portanto, é o processo de mortificação e a grande transformação
que ele proporciona ao cristão. De alguém antes dominado pelos mais terríveis
pecados, como a prostituição e a avareza, o cristão pode passar a viver livre
não apenas dessas práticas, tão facilmente reconhecidas, mas também de sentimentos
ruins (por vezes disfarçados e escondidos) que antes o inquietavam e dominavam,
como o orgulho, a ira e a malícia. Esse cristão terá um caráter transformado e
um temperamento controlado pelo Espírito, expressando virtudes extraordinárias,
como a humildade e a mansidão. Ao invés de dar-se a contendas, estará pronto a
perdoar e terá seu coração cheio de amor, alegria, paz e gratidão. Tudo isso somente
é possível se ele se submeter ao senhorio de Cristo, aceitando sua inteira
mortificação como um processo contínuo. Na expressão paulina, “trazendo sempre [...]
a mortificação no nosso corpo” (2 Coríntios 4.10). O advérbio “sempre”, no
grego, é o vocábulo pantote, que significa “a toda hora” ou “em todas as
ocasiões” (VINE, 2003, pp.848,983).
A mortificação e o perfeccionismo de Wesley
Apesar de ser possível ao cristão desenvolver a mortificação
e alcançar níveis espirituais gloriosos como revelados em Colossenses 3.4-17,
nunca lhe será possível eliminar sua natureza pecaminosa enquanto estiver
habitando neste corpo (MENZIES & HORTON, p. 127). Portanto, a Perfeição
Cristã defendida por John Wesley – que pregava que é possível alcançar a
santificação perfeita nesta vida –, não encontra respaldo no Novo Testamento e,
muito especialmente, na teologia paulina (GEISLER, 2017, p. 485).
O próprio Paulo, em alusão claramente autobiográfica, afirmou
na célebre Carta aos Romanos: “Porque eu sei que em mim, isto é, na minha
carne, não habita bem algum; e, com efeito, o querer está em mim, mas não
consigo realizar o bem. Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não
quero, esse faço. Ora, se eu faço o que não quero, já o não faço eu, mas o
pecado que habita em mim. [...] Miserável homem que eu sou! Quem me livrará do
corpo desta morte” (Romanos 7.18-20,24).
Paulo descreve o grave quadro do homem depois da Queda,
tanto o inconverso quanto o convertido. Para o primeiro, o problema permanece insolúvel,
pois não pode libertar-se a si mesmo. O segundo encontrou a solução na obra de Cristo:
a salvação, que opera a justificação (a libertação da culpa do pecado) e a santificação
(a libertação do poder do pecado por ação do Espírito). O que Paulo está
fazendo nada mais é que reconhecer a realidade de sua natureza pecaminosa, ao
mesmo tempo em que se refere à sua nova vida em Cristo, o “homem interior”, que
tem prazer na lei de Deus (Romanos 7.22). E é exatamente a obra do Espírito
Santo neste novo homem que o faz rejeitar o pecado e agir, de forma
determinada, para alcançar a mortificação da carne, o não atendimento de sua
própria inclinação ao pecado, processo dicotômico no qual ele celebra a vitória
do homem espiritual: “Portanto, agora, nenhuma condenação há para os que estão
em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o espírito. Porque a
lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da
morte” (Romanos 8.1,2).
Conclusão
Dos versículos 11 a 13 de Romanos 8, Paulo ensina sobre a
obra de mortificação da carne pelo poder do Espírito, confirmando que se trata
de um processo contínuo nesta vida. Aliás, a mortificação é fundamental para que
a vida espiritual siga seu curso em crescimento: “Porque, se vocês viverem
segundo a carne, caminharão para a morte; mas, se pelo Espírito, mortificarem os
feitos do corpo, certamente viverão” (Romanos 8.13).
Concluímos, assim, que a mortificação da carne faz parte da santificação
progressiva, na qual devemos estar empenhados diariamente, sob a inteira
dependência do Espírito Santo.
Referências
BERGSTÉN, Eurico. Teologia Sistemática. 13.impressão.
Rio de Janeiro: CPAD, 2013.
GEISLER, Norman. Teologia Sistemática. Vol. 2.
4.impressão. Rio de Janeiro: CPAD, 2017.
GILBERTO, Antonio et al. Teologia Sistemática Pentecostal.
16.impressão. Rio de Janeiro: CPAD, 2021.
GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática. 1.ed. São Paulo:
Vida Nova, 1999.
HENRY, Matthew. Comentário Bíblico Novo Testamento.
Atos a Apocalipse. 1.ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2008.
MENZIES,
William W. e HORTON, Stanley. Doutrinas Bíblicas. Os Fundamentos
da Nossa Fé. 1.ed. Rio de Janeiro: CPAD.
PEDRO, Severino. A Doutrina do Pecado. 1.ed. Rio de
Janeiro: CPAD, 2012.
STAMPS, Donald. Bíblia de Estudo Pentecostal. Rio de
Janeiro: CPAD.
VINE, W. E. et
al. Dicionário Vine. 2.ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2003.
WILLIAMS, J. Rodman. Teologia Sistemática. Uma
Perspectiva Pentecostal. 1.ed. São Paulo: Editora Vida, 2011.
ZUCK, Roy B. Teologia do Novo Testamento.
11.impressão. Rio de Janeiro: CPAD, 2018.
por Silas Rosalino de Queiroz
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