Dons de elocução

Dons de elocução


Quando lemos no original grego o apóstolo Paulo dizendo, na passagem de 1 Coríntios 12.1, “acerca dos dons espirituais”, não aparece no texto grego a expressão “dons”. Sendo assim, uma tradução possível seria: “acerca dos espirituais”. O plural genitivo πνευματικῶν (pneumatikon) pode ser neutro ou masculino. Caso seja masculino, a discussão subsequente de Paulo se concentra naqueles que se consideram espirituais, “os espirituais”. Caso seja neutro, então a discussão do apóstolo Paulo se concentra nas coisas que dizem respeito ao Espírito, como os dons (2018, p. 161). O adjetivo πνευματικóς, tradicionalmente traduzido por “espiritual”, refere-se à atividade/presença do Espírito Santo. A melhor tradução para o termo talvez seja “as coisas do Espírito”, que seria basicamente “referência às manifestações do Espírito, da perspectiva da capacitação pelo Espírito; ao mesmo tempo, apontaria para aqueles que são assim capacitados” (2019, p. 719-728). Como a expressão πνευματικóς (pneumatikós) indica “aquilo que pertence ao espirito”, ou até mesmo “dons, coisas espirituais” (1995, p. 316), conclui-se que não há nenhum problema na tradução “dons espirituais”.

Propósito dos dons

Os dons são capacidades espirituais concedidas por Deus a nós com o propósito de edificar a igreja para a realização de sua missão evangelizadora no mundo. Os dons são “concedidos gratuitamente, pela vontade soberana do Espírito, com o fim de fortalecer a igreja como organismo vivo” (2011, p. 36). Eles são a manifestação pública de Deus entre o Seu povo (2016, p. 15). Os dons não tomam o lugar da Bíblia na igreja (2020, p. 202), mas são importantes para a mesma. Rejeitar os dons, é, de certo modo, dar as costas a Deus.

Classificação dos dons espirituais

“Os dons espirituais são vários, e nenhuma lista deles no Novo Testamento pretende ser exaustiva (...)” (2017, p. 172). Ou seja, as listas de dons apresentadas são exemplificativas; sendo assim, a classificação pauta-se em propósitos didáticos. Os dons apresentados por Paulo podem ser classificados da seguinte maneira:

a) Aqueles que concedem poder para saber sobrenaturalmente: palavra de sabedoria, palavra de conhecimento e discernimento;

b) Aqueles que concedem poder para agir sobrenaturalmente: fé, milagres e curas;

c) Aqueles que concedem poder para falar sobrenaturalmente: profecia, línguas e interpretação (2009, p. 320).

Ou podemos classificá-los também como Dons de Revelação, Dons de Poder e Dons de Elocução/Expressão, conforme utilizado por Severino Pedro (1996) e Elienai Cabral (2011). Os dons de revelação expressam os pensamentos de Deus e também podem ser chamados de “dons de sabedoria” ou de “inspiração”. Os dons de poder manifestam Sua onipotência e grandeza. Os dons de elocução/expressão comunicam os sentimentos do coração de Deus (1996, p. 112).

Veremos a seguir os dons conhecidos como “Dons de Elocução”.

Profecia

Profecia é uma expressão verbal, espontânea, inteligível, que normalmente ocorre na assembleia dos crentes (2006, p. 1013). Profecia não pode ser reduzida à pregação, como alguns fazem. Craig S. Keener mostra isso, ao dizer que “no sentido bíblico, a profecia comumente depende de inspiração momentânea tanto quanto o dom de línguas. Não é apenas ‘pregação’(...)” (2018, p. 116). Severino Pedro destaca três aspectos da profecia: sua origem, valor e finalidade (1996, p. 112). Veremos brevemente esses três aspectos.

1) Origem da profecia – Ao tratar da profecia, o apóstolo Paulo diz: “E falem dois ou três profetas, e os outros julguem. Mas, se a outro, que estiver assentado, for revelada alguma coisa, cale-se o primeiro. (1 Coríntios 14.29,30). Isso mostra que a origem da verdadeira profecia é divina, pois é “revelada”. Wayne Grudem destaca que:

a) A revelação vem espontaneamente, pois acontecia enquanto o primeiro profeta ainda falava. Não se trata de um estudo ou um sermão previamente preparado, mas de algo inspirado pelo Espírito Santo de Deus.

b) A revelação vem a um indivíduo específico, a alguém que está sentado, e não à congregação inteira.

c) A revelação (apokalypsis) é de Deus, tem origem divina e não humana, pois sempre que a palavra “revelação” é usada no Novo Testamento, ela se refere à atividade de Deus, de Cristo ou do Espírito Santo (2020, p. 93-94).

Fica, portanto, evidente que, para Paulo, a origem da profecia é divina e que todos podem ser usados, mas cada um por sua vez, respeitando o princípio da ordem no culto. Paulo diz ainda que “os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas” (1 Coríntios 14.32). Segundo Gordon Fee, a expressão “espírito dos profetas” significa “o Espírito profético” pelo qual cada um deles fala por meio do seu espírito. Ou seja, a ideia é que as falas estão sujeitas a quem fala no que diz respeito ao momento em que isso acontece, e o conteúdo é entendido como o produto do Espírito Divino que inspira tais falas (2019, p. 880). Sendo assim, o profeta escolhe quando e como transmitir a mensagem que recebeu, mas não é a fonte da mensagem, pois ela procede de Deus.

2) O valor da profecia – A profecia é extremamente importante, pois foi umas formas escolhidas por Deus para se revelar a nós, e também para falar conosco. Paulo disse: “Procurai com zelo os dons espirituais, mas principalmente o de profetizar” (1 Coríntios 14.1). Paulo também orientou a igreja de Tessalônica a não “extinguir o Espírito”, a “não desprezar as profecias” e a “examinar tudo” e “reter o bem” (1 Tessalonicenses 5.19-21). Sobre esta última passagem paulina, Sam Storms destaca que a atividade do Espírito de transmitir visão reveladora da vontade de Deus é comparada por Paulo a um fogo que não devemos apagar com a água do ceticismo, da religiosidade ou do medo. Mas, em vez de apagar o Espírito Santo ou desprezar as profecias, devemos examinar tudo (2016, p. 129).

3) A finalidade da profecia – Paulo destaca que a profecia tem algumas finalidades: edificar, exortar e consolar (1 Coríntios 14.3). A profecia é maior que o dom de línguas, quando não há interpretação, porque “o que profetiza edifica a igreja” (1 Coríntios 14.4) e o que fala em línguas sem interpretação edifica a si próprio. Exatamente por isso, o dom de profecia é superior. “E eu quero que todos vós faleis em línguas”, diz Paulo, “mas muito mais que profetizeis; porque o que profetiza é maior do que o que fala em línguas, a não ser que também intérprete para que a igreja receba edificação” (1 Coríntios 14.5).

Dom de línguas

“E a outro a variedade de línguas” (1 Coríntios 12.10). A “variedade de línguas” se refere ao dom de falar em línguas desconhecidas e nunca dantes aprendidas pelos locutores, e é frequentemente chamado de "glossolália" (2016, p. 1014). Antes de vermos a posição de Paulo sobre o dom de línguas, é bom termos em mente alguns aspectos da posição de Lucas sobre o assunto.

1) Línguas em Atos dos Apóstolos – Em Atos, “o falar em línguas é como um tipo especial de discurso profético” (2019, p. 41). Lucas mostra que a igreja é “a comunidade de profetas dos últimos dias”, que foi batizada e empoderada pelo Espírito (2018, 115-142). A delegação do Espírito Santo de Jesus aos discípulos no Dia de Pentecostes espelha a antiga delegação do Espírito Santo de Moisés aos anciãos (Atos 2.15ss; Números 11.25). Além disso, do mesmo modo que a profecia é o sinal por excelência da delegação do Espírito no Antigo Testamento, no Dia de Pentecostes, são o falar em línguas e o profetizar (Atos 2.4,17) (2020, 222). Em Atos, as línguas são apresentadas como evidência inicial do batismo no Espírito Santo, pois dos quatro relatos da descida do Espírito, três explicitamente citam a glossolalia como seu resultado imediato (Atos 2.4; 10.44-46; 19.6), e o outro insinua isso fortemente (Atos 8.14-19). Elas representam “falas proféticas emitidas pelos mensageiros de Deus dos tempos do fim”. Na visão de Lucas, todo membro da igreja é chamado (Lucas 24.45-49; Atos 1.4-8; Isaías 49.6) a receber poder (Atos 2.17-21; cf. 4.31) para profetizar (2019, p. 42-59), ou seja, todo crente pode manifestar esse dom espiritual. Lucas apresenta o falar em línguas (glossolalia) como um sinal poderoso e edificante: um sinal que nos lembra de nosso chamado como profetas do tempo do fim e que testemunha a majestade e o status glorificado de Jesus (2019, p. 146).

2) Línguas em Paulo – Paulo, diferentemente de Lucas, está tratando de um problema específico na igreja de Corinto. Ao que tudo indica, alguns dos coríntios parecem ter visto as línguas como uma expressão de um nível superior de espiritualidade. Assim, valorizavam as línguas acima de outros dons e, no contexto das reuniões institucionais, seu elitismo espiritual frequentemente encontrava expressão em explosões ininteligíveis que interrompiam as reuniões e não edificavam a igreja (2019, p. 147). Paulo mostra que as línguas são importantes, pois o próprio Paulo falava em línguas mais do que todos (1 Coríntios 14.18) e desejava que todos falassem em línguas (1 Coríntios 14.5). Mas, no contexto do culto público, onde o objetivo é a edificação do corpo, ele diz: “Todavia eu antes quero falar na igreja cinco palavras na minha própria inteligência, para que possa também instruir os outros, do que dez mil palavras em língua desconhecida” (1 Coríntios 14.18,19). Paulo mostra que “no culto, nem todos são chamados para fazer uma verbalização pública em línguas” (2011, p. 81), quando diz: “Falam todos diversas línguas?” (1 Coríntios 12.30). Ele não está proibindo o uso das línguas, pois ele mesmo disse: “Eu quero que todos vós faleis em línguas” (1 Coríntios 14.5). E “não proibais falar línguas” (1 Coríntios 14.39); e até disse que no culto “tem língua, tem interpretação” (1 Coríntios 14.26). Portanto, Paulo não estava restringindo todo o uso das línguas, mas apenas um uso equivocado das línguas no culto público. Paulo não exclui o falar em línguas em um nível pessoal e discreto no culto ("...fale consigo mesmo e com Deus" (1 Coríntios 14.28), além de se referir à função autentificadora do falar em línguas. Pode haver línguas no culto, desde que não interfiram na ordem do culto, a não ser que haja interpretação.

Como podemos ver pelo contexto de 1 Coríntios 14, Paulo não está falando sobre o papel do dom de línguas no geral, mas apenas do seu uso sem interpretação na assembleia pública (2016, p. 159). Silas Daniel destaca que “o propósito de Paulo nesses versículos é tratar da ordem no uso das línguas no culto público e não da proibição de se falar em línguas no culto público” (2020, p. 289). Obviamente Paulo não está propondo a abolição das línguas na reunião, mas apenas mostrando que deve haver um predomínio do discurso inteligível para a edificação de todos na assembleia. A preocupação de Paulo não é “com o falar em línguas em si no culto, mas com o espaço exagerado que as línguas estavam ganhando na adoração pública, perturbando a ordem do culto e tomando o lugar das mensagens inteligíveis: cântico, pregação e orações (1 Coríntios 14.6-11, 16, 19)” (2020, p. 289). Fica evidente que as línguas, assim como a profecia, estão disponíveis a todos da comunidade dos crentes, todos podem falar em línguas, e até devem buscar isso (2011, p. 81), mas de forma a resguardar o princípio da ordem no culto.

Concluindo, Paulo mostra que as línguas são importantes e ajudam na edificação pessoal. Ele não permite a proibição das línguas, e deseja que todos falem em línguas, mas também deseja que no culto público haja interpretação para que todos sejam edificados. Paulo mostra que o “dom de línguas” está disponível a todos, assim como Lucas, mas, diferentemente de Lucas, não aborda a questão da evidência inicial, pois não era o seu propósito.

3) Oração em línguas – A oração em línguas é uma graça especial ao crente manifestada através do Espírito Santo, que ensina o nosso espírito interior a orar a Deus, independentemente do intelecto. “Não é o Espírito Santo que ora. É o espírito do crente que ora impelido pelo Espírito Santo e fala em mistérios com Deus” (2011, p. 26). Paulo reconhece o valor da oração em línguas, mas também destacou que enquanto orava em línguas o seu espírito era edificado, mas o entendimento ficava sem fruto. “Então, que farei?”. Paulo responde: “Orarei com o espírito [ou seja, orarei em línguas], mas também orarei com o entendimento”, ou seja, as duas coisas. Paulo não renunciou à experiência de orar em línguas, mas buscou o equilíbrio para que o entendimento não ficasse sem fruto. “Claramente, Paulo acreditava que uma experiência espiritual além do alcance da sua mente ainda era profundamente proveitosa. Paulo acreditava não ser absolutamente necessária uma experiência ser racionalmente cognitiva para ser espiritualmente benéfica e glorificar a Deus” (2016, p. 154).

Interpretação de línguas

A interpretação de línguas se faz necessário, pois o objetivo da reunião não é apenas louvar e orar, mas também instruir, encorajar e edificar os membros do Corpo. Portanto, tudo que acontece no âmbito do culto público precisa ser inteligível. Paulo insiste na interpretação de línguas, para que todos possam compreender e sejam edificados (2016, p. 156). Quando Paulo diz: “se não houver intérprete, esteja calado na igreja” (1 Coríntios 14:28), Paulo não está dizendo “se não houver intérpretes não pode haver línguas na igreja em hipótese alguma”, ou seja, Paulo não está afirmando que só pode ter línguas no culto se houver interpretação. O que ele diz, segundo Silas Daniel (2020, p. 290), é que se “uma pessoa fala em línguas na congregação de forma a chamar a atenção para si, proferindo línguas ressonantemente, como uma intervenção na ordem do culto”, então tem de haver interpretação. Se alguém fala em línguas discretamente, “em momentos de louvor e adoração congregacionais, sem perturbar a ordem do culto”, e “sem chamar a atenção para si” então não se faz necessário o uso de intérpretes. Fica evidente que Paulo não pretende restringir o uso das línguas no culto público, mas direcionar o seu uso de forma correta para que não haja abusos.

Sobre a interpretação de línguas, “Paulo não considera a possibilidade de alguém com um conhecimento adquirido da língua falada estar presente e ser capaz de interpretá-la. Pelo contrário, ele insiste que só se pode interpretar essas línguas se alguém tem um dom especial do Espírito para fazê-lo” (2019, p. 167). A interpretação de línguas é uma capacitação divina para que possamos entender, de maneira sobrenatural, aquilo que está sendo dito.

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por Jonas Junior Mendes

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