Sapatos sobre a terra: questão de autoridade

Sapatos sobre a terra: questão de autoridade

Dentre os livros que compõem o Antigo Testamento, cinco há cuja apresentação, para a comunidade judaica, ainda mantêm, a forma de rolos (meguillot). Um deles narra os eventos ocorridos com a família do belemita Elimeleque (meu Deus é rei) e de sua esposa Noemi (agradável). Em nossa organização, o livro está colocado entre os livros de Juízes e Samuel, provocando um deslocamento nos relatos focados no macrocosmo político e social para a vida simples do povo. Temos, inserida entre duas narrativas que envolvem guerras, exércitos, trombetas, conquistas, vitórias e prantos de derrota, o cotidiano e os costumes daquele tempo. A Palavra, mais uma vez, chama a nossa atenção para o fato de que, independentemente do curso das nações e das decisões dos poderosos, precisamos lembrar que a vida continua: nascemos, trabalhamos, moemos o pão que nos alimenta, casamos, celebramos nossas festas e sofremos nossas perdas. A vida prossegue inevitavelmente.

O drama dessa família que se desloca, num tempo de escassez, para a vizinha Moabe, é detalhado de maneira a podermos absorver a riqueza dos simbolismos presentes. Nas terras dos descendentes de Ló, morrem Elimeleque e seus filhos Malom (fraco) e Quiliom (falho). Alguns pesquisadores supõem que os nomes dados pelo chefe de família aos seus filhos foram devidos à fragilidade das crianças em seu nascimento, o que reforçou a decisão de deslocarem-se de sua pátria, buscando futuro melhor. Após um período de cerca de dez anos, restam vivas apenas as viúvas Noemi, Ruth e Ofra. A matriarca decide pelo retorno à terra ancestral, no que é seguida, ao menos no início da jornada (“e indo elas caminhando” 1.7) por suas noras. Logo, a senhora insiste com as jovens para que a deixem fazer o retorno sozinha.

Na tentativa de convencimento, Noemi apresenta uma sequência de quatro argumentos para a desistência do caminho. O primeiro é o argumento afetivo: “Ide, voltai cada uma à casa da sua mãe” (1.8). Todo caminhante, mesmo o mais decidido, precisa enfrentar o convite para voltar aos braços antigos, àquilo que um dia deixou, e ter, no passado, o lugar de seu pertencimento (“sua mãe”). A despeito da proposta, as moças permanecem firmes. O segundo argumento é racional: “Tornai, minhas filhas, por que iríeis comigo?” (1.11), e ressalta a inexistência de razões suficientes para abraçar a jornada que se apresenta. A mente, se não estiver sujeita à vontade superior, argumentará internamente – ambas as noras permaneceram em silêncio – sobre os motivos para uma tão importante e arriscada decisão. No terceiro argumento, de ordem circunstancial, a própria Noemi lista motivos para que seja deixada no caminho: “Tornai, filhas minhas, ide-vos embora porque...” (1.12). A problematização é feita pela mulher com a força da total ausência de perspectivas para suas jovens noras. O discurso está esvaziado de esperança. Nesse ponto, Ofra despede-se e apenas Ruth permanece. Mas, existe agora um quarto argumento e Noemi não tarda a usá-lo, trata-se do argumento testemunhal: “Eis que voltou tua cunhada ao seu povo e aos seus deuses; volta tu também após a tua cunhada” (1.15), cuja palavra chave é “também”, ou seja, outros voltam, você não será a primeira a desistir, não há porque ser diferente. É Ruth quem encerra o discurso do abandono, com a magistral resposta registrada nos versículos 16 e 17.

A atualidade da apresentação dos motivos para desistir do caminho é provada em que, até hoje, cada um que tenha abraçado o caminho da fé seja, de tempos em tempos, convidado a desviar os seus olhos da carreira proposta e voltar a costumes antigos. A vigilância deve ser constante e nunca é excessiva. Com tristeza contemplamos o afastamento de alguns que cederam às argumentações propostas e decidiram mal. Ora, fica bastante claro, no decorrer do livro, que permanecer com Noemi foi a melhor decisão que Ruth poderia ter tomado. Aliás, ela não apenas abraçou sua sogra, assumindo um compromisso de companhia e de cuidado, mas aliançou-se com o Deus de Israel, expressando numa verdadeira profissão de fé, as palavras que fizeram dela parte de um 

povo e de uma herança. Mal sabia Noemi que estava a serviço do Rei para conduzir ao lugar de seu propósito a futura bisavó do rei Davi, uma das ancestrais do Messias de Israel. Noemi era uma transportadora de futuro e não a amarga sofredora de um passado doloroso. Aquele momento de sua vida não a definia como pessoa, pois as circunstâncias não devem ter o poder de mudar nosso nome, nossa identidade. Noemi, sob o comando de Deus, conduziu Ruth ao resgatador. A moça mostrou sua dignidade em que não desistiu do caminho. O Senhor revelou Sua fidelidade fazendo brotar, naqueles dias de colheita de cevada e de trigo, as sementes que prepararam a vinda do pão da vida ao mundo.

Depois de algum tempo, respigando nos campos de Boaz, deu-se a remissão de Ruth e dos bens da família de Elimeleque. À porta da cidade, presentes os anciãos, dá-se a tratativa. O costume, narrado no capítulo 4, versículo 7, é chamado de aliança do sapato e não estava restrito às questões relativas à lei do levirato. Naqueles terrenos pedregosos, qualquer acordo que exigisse pressa poderia ter a retirada de um dos calçados como sinal de que o proponente não demoraria a retornar e a concluir a transação, afinal, ninguém iria longe, descalço, caminhando sobre pedras. A coisa era, portanto, urgente. O sapato também simbolizava a posse de uma propriedade, o direito de pisar a terra, razão pela qual foram oferecidas sandálias ao pródigo – além de compor a vestimenta, assinalava seu retorno, de forma digna, às terras de seu pai. Quando Boaz negocia o cumprimento do dever parental para com Noemi, depara com a recusa do ‘mishpachat karov’, familiar mais próximo, que, por razões pessoais, declina do direito de remir. Seu sapato, portanto, é entregue. Ele reconhece que as terras de Elimeleque não serão dele – não terá o direito de pisá-las na qualidade de proprietário. Sua decisão, embora soberana, não é, necessariamente, boa. Passa a ser do filho de Salmon e Raabe o direito de resgatar as terras, administrá-las, desposar Ruth e levantar a sucessão de Malom, o homem fraco que, na ausência de um resgatador, não deixaria qualquer futuro. Boaz já estava decidido a fazer o resgate. Ele certamente viu, na moabita, a mesma disposição de fé que marcou a vida de sua mãe Raabe. Boaz e Ruth formam um casal que exemplifica a tomada de boas e firmes decisões.

Ruth é um livro de decisões – todas soberanas. A autonomia humana, manifestada em forma de arbítrios numerosos, mais ou menos importantes, corretos ou não, com maiores ou menores consequências, assemelha-se à soberania das nações – atributo inegável, reconhecido e defendido por toda a nação que também se queira respeitada como tal. Guardado o conceito e, repito, o respeito, o Ministério das Relações Exteriores de Israel expressou seu desagrado diante da atracação de dois navios de guerra iranianos no Brasil, nas águas da Guanabara. Um deles, o navio base avançado IRIS Makran, da Marinha da República Islâmica do Irã, e o outro, a fragata IRIS Dena. Ambos fazem parte, segundo as autoridades israelenses, “da Marinha iraniana, que trabalha em estreita colaboração e sincroniza suas ações com o Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica”. “Israel vê a atracação de navios de guerra iranianos no Brasil há alguns dias como um movimento perigoso e lamentável” (nota do Ministério das Relações Exteriores de Israel). A sugestão dada seria a de que o nosso país seguisse os passos dados pela União Europeia, os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália, o Japão e muitos outros países. Conselhos semelhantes foram dados, com ênfase, pelo governo dos EUA. A resposta brasileira ressalta nossos direitos de país soberano, o que, em momento algum, foi colocado em questão.

O momento internacional é delicado no que diz respeito ao Irã especialmente depois de emitido o relatório da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEI), revelando que foram encontradas partículas de urânio enriquecidas a 83,7% de pureza em uma instalação nuclear. Lembremos que 90% de pureza são necessários para produzir uma bomba atônica e que, no relatório trimestral anterior a agência encontrou um índice de 60% de pureza. Também a quantidade do elemento subiu de 25,2 kg para 87,5 kg (Breitbart News). A agência atômica da ONU declarou os atuais níveis “inconsistentes com o nível de enriquecimento... conforme declarado” por aquela nação. Foi solicitado um esclarecimento e Teerã respondeu que a mudança dos números deveu-se a “flutuações não intencionais”, e que elas “podem ter ocorrido” durante o processo de enriquecimento.

A ONU está ciente das intenções de Joe Biden em promover o retorno do Irã ao acordo nuclear de 2015, oferecendo a remoção de 1040 sanções impostas por Donald Trump. Enquanto isso, o governo brasileiro busca fortalecer sua posição no cenário político internacional através da diplomacia. No ano de 2010, o então presidente Lula viajou a Teerã para reunir-se com Mahmoud Ahmadinejad, propondo uma intermediação num possível acordo entre o Irã e os EUA. A ideia de uma ascensão internacional através dos meios diplomáticos, buscando uma projeção para o Brasil entre as famílias das nações retomou seu curso com renovadas forças. Trata-se de escolhas – de escolhas soberanas.

Há, contudo, um detalhe a ser acrescentado nesta reflexão: por vezes, homens são ordenados a descalçarem seus pés. Moisés recebeu tal ordem. Josué também. O ato revela, mesmo àqueles chamados para conduzir e introduzir todo um povo à terra de sua promessa, que eles não são seus verdadeiros possuidores. A terra pertence a Deus, bem como os homens que sobre elas caminham. Mesmo quando o Senhor concede título de propriedade a alguém, vale saber – e nisso a sabedoria sobrepuja a liberdade – que o poder supremo não está em humanas mãos ou em frágeis acordos. O ato extremado dos 24 anciãos coroados citados no Apocalipse, diante da glória e dos feitos do Cordeiro, lançando, isto mesmo, lançando e não apenas depositando suas coroas é a manifestação celestial de reconhecimento de que a honra, a glória, o louvor, os tronos, poderes, autoridades, soberanias, sem exceção, emanam do Trono do Altíssimo. Mesmo a quem é concedida autoridade, cetro ou coroa, cabe reconhecer a fonte de todo o poder e guardar temor no coração. No limite entre terras distintas, ao coração quebrantado, o Senhor concederá orientações que conduzam a caminhada ao melhor final. Fica, portanto, uma sugestão para nossas súplicas: que Deus conceda a nós e aos nossos governantes a humilde deposição das vontades pessoais aos Seus amorosos pés.

por Sara Alice Cavalcanti

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